30 anos de passado para abastecer a marcha para o futuro

Havia um mormaço no fim de tarde em Copacabana, como se o ar copiasse o abafado no peito dos que se dividiam o apartamento-escritório que servia ao comando da campanha de Leonel Brizola, no segundo andar prédio onde ele morava no sétimo pavimento. Éramos poucos, ali, mas havia a apreensão, quase a certeza, de que havíamos, nós, brizolistas, perdido a chance de passar ao embate final com a direita, assanhada com a candidatura de Fernando Collor, que assanhava a classe média com suas promessas de moralização pública.

Ricardo Noblat, que ocupava a coluna na página dois do Jornal do Brasil, espaço que havia sido de Carlos Castello Branco, o Castelinho, havia “cometido” – como dizemos nas brincadeiras entre jornalistas – um título premonitório: “Há um cheiro de Lula no ar”, refletindo o sensível crescimento de Lula na reta final, quando Brizola ainda ocupava o segundo lugar.

E perdemos, por 490 mil votos, para começar, dias depois, o espantoso fenômeno de transferência de votos, no qual as imensas maiorias obtidas no Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul se juntariam à votação de Lula, numa soma onde 1+1 seriam muito mais que 2, pelo arrasto que isso provocou sobre o restante do eleitorado.

Daquele dia, do qual hoje se completam 30 anos, para cá, passamos muitos momentos difíceis. A rigor, 41, pois aquele 1989 era filho do renascimento dos movimentos populares, em 1978.

Veio a era do “pensamento único” dos pretensiosos fukuyamas que proclamavam o fim da história, muitos foram “cuidar da vida” até então inteiramente dedicada ao sonho da mudança e outros foram “fazer a vida” numa política degradada pelo dinheiro.

De repente, vemo-nos jogados, outra vez, no quadro de incertezas que brotou daquela eleição. Sem base política, sem partido e com apoio apenas numa massa de fanáticos que, desta vez, não o deixaram só, temos um lobo solitário, como foi Collor, instalado no Planalto, cuidando de fazer um desmonte como aquele não conseguiu, embora deixasse o caminho aberto para Itamar e Fernando Henrique entregarem o patrimônio do Estado.

Temos, porém, uma vantagem que não tínhamos naqueles dias após a derrota de 1989.

É que o povo brasileiro experimentou progresso, ascensão, inclusão. Uns, é claro, assumiram a ideologia do feitor, a falsa ideia de que é possível produzir mais ganhando menos, que progresso e justiça social não são, como dizia o velho Brizola, trilhos de um ferrovia que devem andar juntos, ou a coisa descarrilha como no Chile.

E, como aos que vivemos aquele combate de 30 anos, a esperança ganhou face num homem – talvez nem mesmo pronto para tê-la, naqueles dias.

Disso não se esquece, disso não se deserta, disso não se aparta o povão.

Beber do passado é receber o combustível para marchar ao futuro.

Não é saudade, é vontade.

Fernando Brito:

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  • Felizes aqueles, como eu, como o Brito, que presenciaram a coexistência dos dois maiores gênios políticos que o Brasil já teve - talvez Getúlio chegasse ao mesmo patamar, mas eram outros os tempos - na defesa do povo brasileiro majoritário, pobre, iletrado, vilipendiado, roubado, assassinado, vitimado pelo Estado escravagista, elitista, fascista, neofascista, opressor enfim. História é isso. Seus momentos sombrios são e serão sempre sobrepujados pelos momentos gloriosos, em que não cabem os "homens cordiais" do Sérgio Buarque, mas são, sim, povoados pelos "sertanejos da terra árida" cantados em registros diferentes, mas únicos, por Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Gláuber ROCHA, João Cabral, e, hoje, por LULA LIVRE. Que em 7 de abril de 2018 deixou de ser um homem, por vontade própria, para ser uma ideia. Ideia de união, de confluência de futuros, uma ideia de um Brasil justo. Que não cabe entre as paredes de uma cela de cadeia. Colhamos nesses instantes os momentos da História gloriosa que estão esvoejando à nossa volta, e façamos a boa colheita As sementes já foram plantadas, falta-nos regar os brotos, cuidar dos frágeis talos, ver que o fogo da intolerância e do fascismo, do ódio à inteligência e à cultura, sempre presentes, não os esturriquem, e, se não vê-los, deixá-los aos nossos descendentes. É um dos caminhos para a imortalidade.

  • Lindo comentário do sr.Armando Flavio Rodrigues,contudo também lembro março de 64,quando um BANDO DE FASCÍNORAS DEU UM GOLPE DE ESTADO,e tirante poucos do povo,o RESTO FICOU QUIETO,como PORCOS NA BATATA.E hoje,votam no LIXO QUE ASSISTIMOS,também em silencio.Povo,somente existe,com ARMAS NAS MÃOS,ai sim,ele vira POVO.Ainda assim,os que ainda esperam MELHORES DIAS,gostaria que tivessem razão.

    • Grato, Marco, pelo comentário. Gostaria apenas de lembrar que: 1. não foi um "bando de facínoras", que deu o golpe foi o Exército Brasileiro.; 2. Não foram "poucos do povo", foram assassinados milhares de brasileiros, e torturados e desaparecidos outros milhares; 3. os porcos na batata (essa eu não conhecia) prosseguiram na luta, seja clandestina, seja cultural, seja política - e persistem até esses tempos de trevas evangélicas neo fascistas. Seja duro, sem perder a ternura. E, principalmente, sem perder o amor ao sofrido povo brasileiro. Libere sua amargura e una-se ao povo na luta para superar as trevas. Grande abraço.

  • Texto primoroso. Brito está se tornando o grande cronista desta era tenebrosa que vivemos. Quem sabe em 5 anos vamos estar lendo o Brito escrever sobre o fato do presidente Lula ter perdido por 0,5% a meta de deixar o Brasil com uma renda per capita de 40 mil dólares.
    P.S.: o que um bom cronista poderia escrever de elogio a Bozo? Que finalmente aprendeu a fazer o número 2 sozinho?

  • Brito,

    bateu uma saudade da contundência do velho Briza. Como neste momento estão fazendo falta personalidades daquela estatura, que tinham uma visão de futuro para o país, porém sem esquecer dos desvalidos e esquecidos pelo estado.

  • É a energia da locomotiva procurando os trilhos do desenvolvimento.

  • Belas palavras! Por isso, e por todas as outras informações, que o Tijolaco é leitura diária obrigatória para mim.

  • Do texto formidável eu extraio a expressão "assanhava a classe média". A direita não precisa fazer muito para assanhar a classe média, pois esta é vagabunda por natureza. Basta um aceno de qualquer canalha da direita, travestido de messias, que nossa classe média rebola o rabo e vai toda vadia, se entregar ao Collor da vez. É ela, nossa classe média, a grande vilã de nossa saga melancólica. Ela com seu preconceito, sua arrogância, seu racismo, seu atraso civilizatório, nos mantém no século XIX.

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