Sou, como diriam os jovens – aliás, nem sei se dizem mais isso – um “caretaço”.
Sou, mas comigo. Os outros são problemas dos outros, de si mesmos.
Do exibicionismo, não digo além do pleonástico: é querer aparecer.
Por isso, aqui no blog, não se dá muita bola aos exibicionismos, seja com que causa – ou sem causa – for.
Não costumo dizer que o que cada um faz de si está certo ou errado, porque não me diz respeito.
Guardo minha revolta para aquilo que é mesmo imoral: a brutalidade com o ser humano.
Hoje, a propósito das bordoadas que o jornalista Bernardo Tabak, levou da Guarda Municipal por registrar o que uma garotada estava fazendo o que, no meu tempo, se fazia no bloco Chave de Ouro, quando os blocos eram “proibidos” na manhã da quarta-feira, meu amigo Marceu Vieira pega o “gancho” jornalístico para contar uma história de vergonha da bunda. Ou do bundo, como o traseiro é dito nos dialetos sul-africanos.
É uma história de dar vergonha que não se apaga com os séculos do que os brancos fizeram aos negros.
Uma história de dar vergonha aos cultos e refinados franceses que não tiveram vergonha em expor até 1974 (!!) o esqueleto de uma mulher e um molde de seu corpo para que se admirasse sua bunda como aberração.
Alguns leitores – de boa fé, eu sei – discordaram de mim por não ver racismo ou “equívoco” numa brincadeira inocente de uma família multi-étnica.
Espero que, com este texto do Marceu, entendam para que tipo de coisa reservo minha indignação.
A bunda, o ‘bundo’ e o carnaval
Marceu Vieira
A corajosa exposição da bunda do colega Bernardo Tabak nas redes sociais, toda cheia de hematomas causados pelo espancamento da Guarda Municipal do prefeito Eduardo Paes, no domingo derradeiro de carnaval no Rio, remete a uma reflexão que me leva de volta à África do Sul, onde passei 60 dias em 2010, na cobertura da Copa do Mundo.
Antes da bunda do Tabak, todo esse debate nas redes sociais sobre sexismo masculino, machismo, feminismo, primeiro assédio, amigo secreto ou oculto, misoginia, todo esse debate, enfim, que – apesar do carnaval e de seus convites e tentações – pareceu ter esmorecido um pouco, tudo isso já havia me feito lembrar da África e daqueles dias mágicos no país de Mandela.
Durante todos aqueles dias, convivi a maior parte do tempo com um amigo que ganhei em Johannesburgo, e que mantenho até hoje, em conversas esparsas pela internet, chamado Brian Motlafi.
Grande camarada o Brian. De etnia Xhosa, a mesma de Mandela e uma das nove do país, ele era produtor do “Big Brother África” – programa, aliás, também lá, farto em exposição de bundas. Pois Brian foi produtor do “BBB Africa” até ser atraído por uma oferta de trabalho temporário, durante aquele Mundial, como motorista da equipe do “Globo”, onde eu tive carteira assinada por pouco mais de 13 anos.
Brian se tornaria nosso parceiro, intérprete dos idiomas nativos (cada etnia sul-africana tem um), professor das particularidades daquela nação, que pra mim será sempre tão querida, e, com o passar das semanas, também virou amigo.
Foi Brian quem me levou à antiga casa de Mandela, no Soweto, espécie de Morro Agudo ou de Rocinha horizontal, no subúrbio de Johannesburgo, transformada em centro de preservação da memória e do legado do Madiba, como os africanos chamavam e vão chamar pra sempre o seu grande líder.
Num país de imensa maioria negra e, de certa maneira, de modos ingleses, sem se afastar de sua cultura original (pra início de conversa, o volante dos carros fica do lado direito), Brian me ensinou, por exemplo, que, lá, como no Brasil, há uma enorme valorização da bunda. Sobretudo, claro, a feminina.
Mas a bunda não apenas como atrativo sexual. O “bundo” – que é como essa parte do corpo é chamada no país em quase todos os seus idiomas oficiais, à exceção do inglês e do africâner – é também um símbolo da luta nacional por igualdade e liberdade. Não por coincidência, as mulheres sul-africanas, em geral, têm “bundos” generosos que chamam mesmo a atenção.
Um dia, daqueles tantos, Brian me levou à Universidade de Johannesburgo, onde um professor me explicaria a razão do respeito e, ao mesmo tempo, da paixão nacional confessada pela bunda. O culto ao “bundo” na África do Sul vem de Saartjie Baartman. Ou Sarah, como seu nome seria adaptado pro inglês e ficaria mais conhecido.
Escravizada por uma família holandesa na Cidade do Cabo, nos anos 1800, Sarah tinha um “bundo” mais que enorme. A ponto de se tornar atração pras visitas europeias da tal família de holandeses. Levada à França pra se exibir em circos, Saartjie comeria o pão que o diabo desbundado branco amassou, até morrer em 29 de dezembro de 1815, aos 27 anos de idade, de uma combinação de pneumonia e doenças venéreas, em Paris, onde, contra sua vontade, havia sido perversamente prostituída por um domador de animais e obrigada a exibir o corpo às multidões.
O domador de animais venderia o cadáver de Saartjie ao Musée de l’Homme, de Paris. O esqueleto e um molde do corpo daquela mulher, em gesso, além de seus órgãos genitais e seu cérebro, conservados em formol, ficaram expostos no museu até 1974.
Mandela, ao se tornar presidente da África do Sul, em 1994, exigiu formalmente à França a devolução dos restos de Saartjie. O pedido só seria atendido em 6 de março de 2002, e, hoje, o que sobrou do corpo martirizado daquela mulher – que a partir do governo Madiba se tornaria personagem relevante dos livros de História da África do Sul – descansa num mausoléu em sua terra natal, Gamtoos Valley.
A lembrança de tudo isso não é só uma tentativa de mostrar que, graças ao legado de Mandela, a África do Sul é um país que o forasteiro deixa, mas nunca deixa o forasteiro.
É também uma tentativa de reflexão sobre o “bundo”, a bunda do Tabak, a nudez feminina, enfim, todo o imaginário a respeito, tão em voga nos dias de carnaval, quando, principalmente as mulheres costumam exibir mais o corpo (“meu corpo, minhas regras”).
Meu amigo Brian e todo o povo da África do Sul choram até hoje a morte do seu Madiba, o homem que resgatou a história e a dignidade de Saartjie Baartman. O homem que sacralizou o “bundo”. O homem que, sem externar rancor, quebrou em mil pedaços o vergonhoso apartheid e ensinou a seus iguais negros uma tolerância que os espancadores fardados do Rio não conhecem. Mandela conseguiu tudo isso com sua pregação de paz, mesmo depois de ter passado 27 anos na cadeia subjugado por brancos.
Mas é a história de Saartjie que interessa de verdade aqui. Não ouvi, neste carnaval que passou, qualquer história de assédio ostensivo. Nem de ostentação de bundas ou de elevação de uma delas ao posto de “a bunda” feminina de 2016.
O carnaval tem dessas coisas. Curiosamente, a imagem de bunda que vai ficar dos dias de folia, no Rio, é a do Tabak, com suas marcas roxas e sua coragem de expô-la. E a pouca vergonha não terá sido a de nenhuma nudez, mas a do espancamento sem sentido da tropa despreparada da Guarda Municipal, em seu avanço desastrado pra dispersar jovens num bloco na Praça Mauá.
Em tempo: acredito, sinceramente, que as mulheres têm direito de fazer o que quiserem com seus corpos. Cabe apenas a nós, homens heterossexuais e multigêneros que apreciamos as formas femininas, respeitá-las e admirar sua bonita visão. A campanha das moças pelas redes sociais já terá servido pra alguma (r)evolução neste sentido.
Em tempo também: a história de Sarah Baartman merece um enredo de carnaval. Talvez nos ensinasse muito.
Em tempo ainda: a agressão ao Tabak não merece nem um mísero refrão de samba de bloco. Só repulsa.
PS. Acessem o blog do Marceu. É um banho de humanidade.
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Fernando Brito, vou também dar meu "em tempo"...
Em tempo: se um Guarda Civil não tem capacidade de discernir quando está (mal) utilizando exageradamente um cacetete, imaginem com um revólver.
Tem um filme chamado Vênus Negra (Vénus Noire nome original) que conta a história de Saartjie Baartman.
É mais um dos crimes cometidos pelo homem branco contra a humanidade.
Vergonha mesmo esses que se acham superiores pela cor da pele e sabujos pelo Idioma!
Esse texto do Marceu deveria ser – perdoem a grosseria, mas é a realidade – esfregado nas fuças de seu ex-chefe, Ancelmo Gois, que por trás da imagem de colunista boa-praça que tenta cultivar, alimentava há anos, no Globo, o mercado de carne negra com o abominável concurso de Mulata do Gois. Exibindo bundas afro-brasileiras com a mesma voracidade pilantra dos boerers sul-africanos. Agora parou porque talvez foi pego em flagrante. Mas a mentalidade persiste.