50 anos de golpe: embaixador americano pediu dinheiro e armas

(Vernon Walters, à esquerda, com Ronald Reagan, presidente dos EUA de 1981 a 1989)

E já que tiramos o sábado para falar do golpe, achei que vale a pena reproduzir esse artigo do Flavio Tavares. Às vezes vemos alguns almofadinhas viajaram a Miami e falarem como as ruas de lá são limpas e arrumadas. Só que eles deveriam acrescentar que boa parte do desenvolvimento econômico dos EUA se deu através da opressão de outros povos, inclusive o nosso.

Eu tenho admiração pela democracia e pela cultura norte-americanas, assim como eu gosto dos clássicos grego-romanos. Mas não podemos permitir jamais que essa admiração se dê contra a nossa cultura. Temos que ter perspectiva histórica e entender que fomos golpeados. E que nosso crescimento não é tão fácil como foi o americano porque não exploramos outras nações.

*

Embaixador dos EUA pediu dinheiro, adido militar e armas para apoiar o golpe

Diálogo entre o embaixador em Brasília Lincoln Gordon e John Kennedy ocorreu no primeiro dia de gravação de conversas com o presidente na Casa Branca, e graças a isso ficou registrado

28 de março de 2014 | 15h 05

Por Flávio Tavares, no site do Estadão.

A década de 1960 foi um tempo de aberta conspiração político-militar na América Latina. Os Exércitos pareciam destinar-se a preparar golpes de Estado, não a defender a integridade territorial. O Brasil estava nesse cenário. Além disso, a inflação galopante gerada pela construção de Brasília agravara a miséria rural do Nordeste e, desde a posse de João Goulart, em 1961, a reforma agrária ocupava o debate político.

A reforma era uma bandeira da Aliança para o Progresso (o programa dos Estados Unidos para barrar a influência da Revolução Cubana), mas os conservadores brasileiros a repeliam, vendo nela “a alavanca do comunismo”. A Guerra Fria, com o mundo dividido em áreas de domínio dos EUA e da União Soviética, exacerbava as paixões políticas e assustava todos. Entre civis e militares, esquerda e direita se enfrentavam numa disputa cega.

Nesse contexto se desenvolve a conspiração que desemboca no golpe de Estado.

Fui o último jornalista a estar com João Goulart no Palácio do Planalto, na tarde de 1.º de abril de 1964. Testemunhei seus derradeiros momentos, já em fuga da Capital. Acompanhei seus acertos e desacertos como governante, tal qual (desde a posse em 1961) tinha convivido com civis e militares envolvidos nas tramas da conspiração. Presenciei a sessão do Congresso, de apenas 3 minutos, na madrugada de 2 de abril, em que o senador Auro Moura Andrade declarou “vaga a Presidência da República”, sem qualquer debate ou votação.

Depois, como colunista político em Brasília, tentei penetrar nos desvãos do movimento que levou ao golpe e me fiz perguntas. Seria a revanche de 1961, quando os ministros militares não permitiram a posse do vice-presidente Goulart (por considerá-lo “pró-comunista”) e foram derrotados pela mobilização iniciada pelo governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola? A conspiração se nutriu das provocações da extrema esquerda, em que o deputado Francisco Julião (com dinheiro de Cuba) armava guerrilhas contra o próprio Jango, assustando ainda mais a direita? Ou tudo ardeu pela propaganda subliminal que o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) do coronel Golbery do Couto e Silva incutiu na população e nos quartéis sobre o “perigo comunista”, através dos textos e filmes de Rubem Fonseca?

Afinal, por que um golpe, se a inflação debilitava o governo e já havia três candidatos à eleição presidencial de 1965?

Em 1976, a historiadora norte-americana Phyllis Parker descobriu nos arquivos dos EUA os primeiros documentos “secretos” sobre a Operação Brother Sam – o deslocamento da frota naval dos EUA a 31 de março de 1964, rumo a Santos, em apoio ao general Olímpio Mourão Filho. Surgem, aí, as entranhas da conspiração. A cada 10 anos, os EUA liberam novos documentos e, assim, pôde-se reconstruir a participação de Washington nos preparativos e na execução de tudo, como revelo, agora, no livro 1964 – O Golpe.

Na paranoia da Guerra Fria, ambos os lados se enfrentavam com fantasias, mentiras e (até) verdades. E tudo assustava. O embaixador dos EUA, Lincoln Gordon, assustou-se não só com a nacionalização das empresas americanas de eletricidade e telefones por Brizola no Sul ou com sua dura pregação “anti-imperialista” pelo rádio, mas também com a lei sobre a remessa de lucros das companhias estrangeiras. E, até, com o Plano Paulo Freire, que alfabetizava em 40 horas/aula. Na época, analfabeto não votava e o governo teria 20 milhões de novos eleitores na eleição de 1965.

A 30 de julho de 1962, Gordon leva pessoalmente ao presidente John Kennedy um terrorífico relato sobre “o avanço comunista” no Brasil. Nesse dia, a Casa Branca havia inaugurado a gravação das audiências e telefonemas presidenciais e tudo ficou registrado: o embaixador pede US$ 8 milhões para financiar candidatos nas eleições de governador ou parlamentares, e para o Ipes, “uma organização que temos lá”.

Após dizer que Jango pensa “num golpe branco” para manter-se no poder, pede um novo adido militar à embaixada, para “fortalecer os militares democratas simpáticos aos EUA” numa eventual ação militar contra Goulart. “O atual adido militar é muito burro”, exclama o embaixador, e sugere a nomeação do coronel Vernon Walters.

Em seguida, Walters chega ao Rio, recebido no aeroporto do Galeão por 13 generais brasileiros que serviram com ele na 2ª Guerra Mundial, na Itália. Seu mais íntimo amigo, porém, está ausente: o general Castelo Branco comanda o 4.º Exército no Recife e lhe manda um abraço através do general Ulhoa Cintra. O próprio Walters assim conta no livro de memórias Silent Missions. Daí em diante, Cintra será “o contato” dos conspiradores com a embaixada, como referem as mensagens de Gordon à Casa Branca e à CIA.

Conspiração. O assassinato de Kennedy (novembro de 1963) leva à Casa Branca a “linha dura” do vice Johnson e “tudo se facilita”, conta o próprio Walters. A 21 de março de 1964, o embaixador volta de Washington, após acertar detalhes do Contingency Plan, o plano militar a aplicar no Brasil, e informa que Castelo Branco “aceitou a chefia da conspiração”. “De todos os militares que nos procuram há dois anos e meio, ele é o mais idôneo”, enfatiza.

Dias 27 e 29, sob o impacto da crise na Marinha, provocada pela revoltosa assembleia dos marinheiros, Gordon informa que “comunistas ocupam postos vitais nas Forças Armadas”. Pede provisões urgentes de gasolina e armas para “grupos civis” em São Paulo e que os EUA “se comprometam diretamente” e enviem a frota naval, com porta-aviões, “em demonstração aberta de força, não secreta”.

“Sei o quão grave é a decisão de intervenção militar, mas devemos considerar que a derrota levará à comunização do Brasil”, escreveu. Sugere que as armas cheguem em submarino e sejam descarregadas à noite, ao sul de Santos, em Iguape ou Cananéia. Os conspiradores “castelistas” haviam planejado o golpe para fins de abril e o embaixador se surpreende com a rebelião de Minas. Mas logo após, em 31 de março, Washington confirma que a frota já ruma para Santos, com um porta-aviões, quatro destróieres com mísseis, duas escoltas e navios-tanque. Cerca de 110 toneladas de munição, mais gás lacrimogêneo, irão em dez aviões cargueiros diretamente a Campinas. Cinco petroleiros levarão gasolina e diesel de Aruba a Santos.

Nada disso foi preciso. Jango desistiu de qualquer resistência e, a 4 de abril, a frota naval voltou a Norfolk, de onde partira.

* Jornalista e escritor, é autor de “1964 – O golpe”.

Fernando Brito:

View Comments (9)

  • Ha bastante tempo li um estudo de um tal instituto de estudos estrategicos da unicamp mostrando que o estatuto das forcas armadas brasileiras e muito semelhante ao das forcas coloniais inglesas na india. Depois disso nao vi mais nenhuma referencia. Enquanto nao voltar a discussao sobre o assunto e uma proposta de modificacao desse estatuto continuaremos uma republica banana. Lembro que ao contrario do que muitos pensam o status de republica banana nao e definido pelo povo e sim por uma classe dominante predatoria, entreguista e corrupta e forcas armadas entreguistas e anti-povo que garantem esses canalhas como as que temos no Brasil. Desde a proclamacao da republica as ffaa promoveram 19 golpes de estado, impediram tres presidentes eleitos de tomar posse e derrubaram outros tantos. Esta e a grande contribuicao "patriotica " das ffaa para o "progresso do atraso" no Brasil. Nao da para construir uma sociedade desenvolvida com essa canalha. Tem que haver um movimento de toda a populacao para acabar com issobde uma vez por todas.

  • Compramos um porta-aviões sucata francesa para manter uma Equadra e as Patentes de Comandantes de Esquadra.
    --
    Temos mais generais por soldados que os EUA e ou Israel.
    --
    Tem excesso de generais de tres estrelas, quatro estrelas, cinco estrelas, seis malas.

  • Lembro-me muito daqueles dias. Participava do movimento estudantil em Salvador, aqui na Bahia.
    Lendo este artigo peço aos demais leitores se há ou não semelhança com outros golpes que aconteceram e que estão sento fermentados ao redor do mundo. Venezula (vejam quais são os argumentos se não são parecidíssimos com os que foram apresentados aqui no Brasil, inclusive com financiamento para ONG's). Vejam como se processou o golpe na Ucrânia. E assim o mundo vai ficando cada vez mais subjugado aos desejos imperialistas do tio SAM e dos capitalistas parasitas.

    • Só uma ressalva:ainda existe a Rússia na balança e ,agora ,com a companhia da China e de muitos outros países fora do controle político americano.
      Acho que estou otimista!

      • Encanto os capitalistas e corporações multinacionais operam em grupo, as forças sociais, os países que estão, em parte, fora do seu controle, atuam separadamente, cada um por si. A China e a Rússia não irão lutar pelo povo brasileiro. Somos nós que teremos que fazê-lo.

        • mas inclua a força dos BRICS que ainda nem mostrou a cara.

          não temos acesso à estratégia de comunicação que está sendo desenvolvida entre essses países e suas atribuições.

          vale a aposta!

  • TORTURA NUNCA MAIS:
    Lembrar é preciso.
    Frei Tito de Alencar Lima, brutalmente torturado no carcere se suicidou na França.

    Rezemos, mesmo os sem fé, juntos o poema – Noite de Silêncio – que Tito escreveu em Paris, a 12 de outubro de 1972:
    “Quando secar o rio da minha infância / secará toda dor. Quando os regatos límpidos de meu ser secarem / minh’alma perderá sua força. Buscarei, então, pastagens distantes / lá onde o ódio não tem teto para repousar. Ali erguerei uma tenda junto aos bosques. Todas as tardes, me deitarei na relva / e nos dias silenciosos farei minha oração. Meu eterno canto de amor: / expressão pura de minha mais profunda angústia. Nos dias primaveris, colherei flores / para meu jardim da saudade. Assim, exterminarei a lembrança de um passado sombrio”.

    O calvário de Frei Tito

    Na terça-feira. 17 de fevereiro de 1970, oficiais do Exército retiraram Frei Tito de Alencar Lima do Presídio Tiradentes, onde se encontrava preso desde 1969, acusado de subversão. “Você agora vai conhecer a sucursal do inferno”, disse-lhe o capitão Maurício Lopes Lima.
    No quartel da rua Tutóia, um outro prisioneiro, Fernando Gabeira, testemunhou o calvário de frei Tito: durante três dias, dependurado no pau-de-arara ou sentado na cadeira-do-dragão -feita de chapas metálicas e fios-, recebeu choques elétricos na cabeça, nos tendões dos pés e nos ouvidos. Deram-lhe pauladas nas costas, no peito e nas pernas, incharam suas mãos com palmatória, revestiram-no de paramentos e o fizeram abrir a boca “para receber a hóstia sagrada” – descargas elétricas na boca. Queimaram pontas de cigarro em seu corpo e fizeram-no passar pelo “corredor polonês”.
    O capitão Beroni de Arruda Albernaz vaticinou: “Se não falar, será quebrado por dentro. Sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia”. A ceder e viver, Tito preferiu morrer. “É preferível morrer do que perder a vida”, escreveu ele em sua Bíblia. Com uma gilete, cortou a artéria do braço esquerdo. Socorrido a tempo, sobreviveu.
    Foi libertado em dezembro de 1970, incluído entre os prisioneiros políticos trocados pelo embaixador suíço, seqüestrado pela VPR. Ao desembarcarem em Santiago do Chile, um companheiro comentou: “Tito, eis finalmente a liberdade!”. O frade dominicano murmurou: “Não, não é esta a liberdade”.
    Em Roma, as portas do Colégio Pio Brasileiro, seminário destinado a formar a elite do nosso clero, fecharam-se para o religioso com fama de “terrorista”. Em Paris, nossos confrades o acolheram no convento de Saint Jacques, em cuja entrada uma placa recorda a invasão da Gestapo, em 1943, e o assassinato de dois dominicanos.
    O capitão Albernaz tinha razão: sufocado por seus fantasmas interiores, Tito tornou-se ausente. Ouvia continuamente a voz rouca do delegado Fleury, que o prendera, e o vislumbrava em cafés e bulevares. Transferido para o convento de I’Arbresle, construído por Le Corbusier, nas proximidades de Lyon, as visões aterradoras continuaram a minar sua estrutura psíquica. Escrevia poemas:
    “Em luzes e trevas derrama o sangue de minha existência / Quem me dirá como é o existir / Experiência do visível ou do invisível”.
    Os médicos recomendaram-no suspender os estudos para dedicar-se a trabalhos manuais. Empregou-se como horticultor em Villefranche-sur-Saône e alugou um pequeno cômodo numa pensão de imigrantes, o Foyer Sonacotra, cujas despesas pagava com o próprio salário. O patrão o percebeu indolente, ora alegre, ora triste, sugado por um tormento interior. Em seu caderno de poemas, Tito registrou:
    “São noites de silêncio / Vozes que clamam num espaço infinito / Um silêncio do homem e um silêncio de Deus”.
    No sábado, 10 de agosto de 1974, frei Roland Ducret foi visitá-lo. Bateu à porta de seu quarto, na zona rural. Ninguém respondeu. Um estranho silêncio pairava sob o céu azul do verão francês e envolvia folhas, vento, flores e pássaros. Nada se movia. Sob a copa de um álamo, o corpo de Frei Tito dependurado por uma corda, balançava entre o céu e a terra. Ele tinha 28 anos.
    Em março de 1983, seus restos mortais retornaram ao Brasil. Acolhidos em solene liturgia na Catedral da Sé, em São Paulo, encontram-se enterrados em Fortaleza, sua terra natal. O cardeal Aros frisou que Tito afinal encontrara, do outro lado da vida, a unidade perdida.

Related Post