Graças ao meu antenadíssimo amigo Sérgio Caldieri, companheiro de 30 anos de combates, chega-me às mãos o artigo do jornalista e escritor (brasileiro) Pepe Escobar.
Depois de ser um dos principais nomes da Ilustrada, da Folha, nos anos 80, Escobar passou a correr o mundo, morando em Los Angeles, Paris, Milão, Singapura, Bangkok e Hong Kong e escrevendo para jornais da região, entre eles a rede Al Jazeera.
Hoje, é correspondente do Asian Times e o que diz é para ser lido com a atenção que merece quem, há mais de 20 anos, vem observando o que se passa no outro lado de um mundo que, depois do fim da guerra fria, todos passaram a achar que tinha um lado só.
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O nascimento do mundo “desamericanizado”
Por Pepe Escobar
É isso. A China decidiu que “basta!” Tirou as luvas (diplomáticas). É hora de construir um mundo “desamericanizado”. É hora de “uma nova moeda internacional de reserva” substituir o dólar norte-americano.
Está tudo lá, escrito, em editorial da rede Xinhua, saído diretamente da boca do dragão. E ainda estamos em 2013. Apertem os cintos – especialmente as elites em Washington. Haverá fortes turbulências.
Longe vão os dias de Deng Xiaoping de “manter-se discreto”. O editorial da Xinhua mostra, em formato sintético, a gota d’água que fez transbordar o copo do dragão: o atual ‘trancamento’ (shutdown) nos EUA. Depois da crise financeira provocada por Wall Street, depois da guerra do Iraque, um mundo “desentendido”, não só a China, quer mudança.
Esse parágrafo não poderia ser mais explícito:
“Sobretudo, em vez de honrar seus deveres como potência liderante responsável, uma Washington interessada só em si mesma abusa de seu status de superpotência e gera caos ainda mais profundo no planeta, disseminando riscos financeiros para todo o mundo, instigando tensões regionais e disputas territoriais, e guerreando guerras ilegítimas, sob o manto de deslavadas mentiras.
A solução, para Pequim, é “desamericanizar” a atual equação geopolítica – a começar por dar voz mais ativa no FMI e no Banco Mundial a economias emergentes e ao mundo em desenvolvimento, o que deve levar à “criação de uma nova moeda internacional de reserva, a ser criada para substituir o dólar norte-americano hoje dominante”.
Observe-se que Pequim não advoga a sumária extinção do sistema de Bretton Woods – não, pelo menos, já; quer, isso sim, mais poder para decidir. Parece razoável, se se considera que a China tem peso apenas ligeiramente superior ao da Itália, no FMI. A “reforma” do FMI – ou coisa parecida – está em andamento desde 2010, mas Washington, como seria de esperar, vetou todas as alterações substanciais, até agora.
Quanto ao movimento para afastar-se do dólar norte-americano, também já está em andamento, com graus variados de velocidade, especialmente no que diga respeito ao comércio entre os países BRICS, as potências emergentes (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), que já está sendo feito, hoje, predominantemente, nas respectivas moedas. O dólar norte-americano está lentamente, mas firmemente, sendo substituído por uma cesta de moedas.
A “des-Americanização” também já está em curso. Considere-se, por exemplo, a ofensiva de charme dos chineses pelo Sudeste Asiático, que está acentuadamente começando a inclinar-se na direção de mais ação com principal parceiro econômico daqueles países, a China. O presidente Xi Jinping da China, fechou vários negócios com a Indonésia, a Malásia e também com a Austrália, apenas umas poucas semanas depois de ter fechado outros vários negócios com os ‘-stões’ da Ásia Central.
A empolgação chinesa com promover a Rota da Seda de Ferro alcançou nível de febre, com as ações das empresas chinesas de estradas de ferro subindo à estratosfera, ante o projeto de uma ferrovia de trens de alta velocidade até e através da Tailândia já virando realidade. No Vietnã, o premiê chinês Li Keqiang selou um entendimento segundo o qual querelas territoriais entre dois países no Mar do Sul da China não interferirão com mais e novos negócios. Pode-se chamar de “pivotear-se” para a Ásia.
Todos a bordo do petroyuan
Todos sabem que Pequim possui himalaias de bônus do Tesouro dos EUA – cortesia daqueles massivos superávits acumulados ao longo dos últimos 30 anos, mais uma política oficial de manter lenta, mas segura, a apreciação do yuan.
E Pequim, simultaneamente, age. O yuan está também lenta, mas em segurança, se tornando mais conversível nos mercados internacionais. (Semana passada, o Banco Central Europeu e o Banco do Povo da China firmaram acordo para uma troca de moeda (orig. swap) de US$45-$57 bilhões, que aumentará a força internacional do yuan e melhorará seu acesso ao comércio financeiro na área do euro.)
A data não oficial para a total conversibilidade do yuan cairá em algum ponde entre 2017 e 2020. A meta é clara: afastar-se de qualquer respingo da dívida dos EUA, o que implica que, no longo prazo, Pequim está-se afastando desse mercado – e, assim, tornando muito mais caro, para os EUA, tomarem empréstimos. A liderança coletiva em Pequim já fechou posição sobre isso e está agindo nessa direção.
O movimento na direção da plena conversibilidade do yuan é tão inexorável quanto o movimento dos BRICS na direção de uma cesta de moedas que, progressivamente, substituirá o dólar norte-americano como moeda de reserva. Até lá, mais adiante nessa estrada, materializa-se o evento cataclísmico real: o advento do petroyuan – destinado a ultrapassar o petrodólar, tão logo as petromonarquias do Golfo vejam de que lado ventam os ventos históricos. Então, o bate-bola geopolítico será outro, completamente diferente.
Pode ser processo longo, mas é certo que o famoso conjunto de instruções de Deng Xiaoping está sendo progressivamente descartado: “Observe com calma; proteja sua posição; lide com calma, com as questões; esconda nossas capacidades e aposte no nosso tempo; seja discreto; e jamais reclame a liderança.”
Uma mistura de cautela e escamoteamento, baseada na confiança que os chineses têm na história, e levando em consideração uma grave ambição de longo prazo – era Sun Tzu clássico. Até aqui, Pequim andou devagar; deixando que o adversário cometa erros fatais (e que coleção de erros de multi-trilhões de dólares…); e acumulando “capital”.
Agora, chegou a hora de capitalizar. Em 2009, depois da crise financeira provocada por Wall Street, ainda havia chineses que resmungavam contra “o mau funcionamento do modelo ocidental” e, em suma, contra o “mau funcionamento da cultura ocidental”.
Beijing ouviu [Bob] Dylan (legendado em mandarim?) e concluiu que, sim, the times they-are-a-changing [os tempos estão mudando].Sem que se veja nem sinal de avanço social, econômico e político – o ‘trancamento’ [shutdown] nos EUA seria outra perfeita ilustração, se se precisasse de ilustração – de que os EUA deslizam tão inexoravelmente quanto a China, pena a pena, vai abrindo as asas para comandar a pós-modernidade do século 21.
Que ninguém se engane: as elites de Washington lutarão contra, como se estivessem ante a pior das pragas. Mesmo assim, a intuição de Antonio Gramsci precisa ser atualizada: a velha ordem morreu, e a nova ordem está um passo mais perto de nascer.
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Louvado seja!
Dentro dos BRICS, Brasil e Rússia tem mais condições de lastrear uma nova moeda com commodities. O Brasil pode oferecer petróleo, minérios e alimentos em garantia. Criar a moeda mais forte do planeta. Mas para isso precisa de um escudo de tecnologias militares.
Um bom e esclarecedor artigo. Há muito que esperamos esse novo desenho geopolítico e econômico no mundo. Que venha o quanto antes. O que preocupa, no entanto, são os níveis de poluição que acompanham alguns modelos de crescimento. O planeta e a humanidade poderá sucumbir antes da boa nova.
A cada materia do Fernando, a gente percebe que tirar a Dilma do Planalto agora, e jogar o caminhao na ribanceira,com tanta coisa importante acontecendo no mundo.
A presidenta é visionária, e sabe jogar o jogo dos tronos. Se ela não pensasse tão a longo prazo como ela teria idealizada a distribuição dos royaltes para educação? (longo prazo ate 2020 rsrs).
ELa também tem programas de investimentos, pra reduzir o custo brasil, e fala direto em reforma tributária, assim o custo de vida dos brasileiros vai reduzir, a infra estrutura será melhor pelo programa de investimentos de concessões, Assim sobrando mais dinheiro para o governo investir na saúde, (a educação será com os royaltes de petróleo, acima de 100 bilhões de doláres até 2025), no setor militar (precisamos), e em ciência ajudando o planeta, a encontrar a cura das doenças e melhores modos de se viver.
yeah..
Não importa a cor do gato, mas q coma o rato, então o gato chinês dominará a cena. Avante China!
Passos nesse sentido já foram dados por Lula, em seu tempo e por Dilma na atualidade, mas cabe a pergunta, estaremos preparados?
Ao final do primeiro mandato de Fhc, assisti a uma entrevista com tres militares que afirmaram ser o Dolar papel pintado com lastro em poderio militar. O Brasil e o Pais mais rico do mundo.
Eu tinha visto este editorial da Xinhua no domingo, e quase não acreditei. Fiquei impressionado pelo tom agressivo do editorial.
Mas gostei.
Os Estados Unidos são o único país do mundo que utilizou uma bomba atômica contra uma população civil, em Hiroshima.
Os americanos utilizaram napalm e outras armas químicas contra civis no Vietnã.
Os Estados Unidos patrocinaram inúmeros golpes de estado contra governos democraticamente eleitos, em países como Irã, Indonésia, Grécia, e claro, aqui no Brasil em 64.
Os Estados Unidos mentiram descaradamente sobre “armas de destruição em massa”, e inclusive forçou a demissão do brasileiro Bustani da presidência da Opaq, para poder ter pretexto para invadir o Iraque, em uma guerra que causou a morte de mais de 100 mil civis iraquianos.
Nenhum outro país é uma ameaça maior à paz mundial e à civilização do que a besta norte-americana.
Então, é passada a hora de destruir a sua hegemonia baseada no dólar.
A única coisa que mantém a a besta norte-americana de pé é o status do dólar como moeda internacional do comércio, e de reservas.
Se o dólar deixar de ter este status, o gigante de pés de barro desmorona. É chegada a hora dos BRICS impulsionarem a substituição do dólar por uma nova moeda internacional para o comércio e para as reservas cambiais.
Concordo.
Mas enquanto a Chicago Mercantile Exchange, sediada nos EUA, continuar sendo a principal bolsa de commodities do mundo, o dólar ainda vai manter sua hegemonia.
É preciso criar uma concorrente de peso para a Chicago Mercantile Exchange, sediada fora dos EUA, e cujos preços não sejam cotados em dólar, mas em euros ou alguma outra moeda.
Outro aspecto importante é em relação ao futuro "Banco dos BRICS", uma espécie de BNDES internacional que vai concorrer com o Banco Mundial, e que está sendo acordado para ser lançado na próxima reunião dos BRICS, realizado no Brasil no ano que vem.
É importante que esse Banco dos BRICS não faça empréstimos denominados em dólares. O Banco dos BRICS deve trabalhar apenas com yuan, rublo, real e rúpia, e nunca trabalhar com dólares. É preciso começar a quebrar essa cultura de utilização do dólar em operações de crédito internacionais.
O Banco dos BRICS pode lançar uma moeda lastreada em commodities com valor inicial equivalente a uma sexta delas, ficando responsável pelo custeio dos estoques de garantia. Quem quiser resgatar as mercadorias com os títulos fica responsável pelos custos de transporte do depósito até o local de destino.
Tenho medo. Tenho MUITO medo.
Caro amigo. Com todo respeito. Se voce sobreviveu a zona que os tucanos fizeram no Brasil, nao precisa ter medo de mais nada!
Tem razão, amigo. Peguei o inferno FHC no seu pior, quase que eu e meus colegas entramos pelo ralo neoliberal. Visto por essa perspectiva, o demônio chinês fica um pouco mais palatável...
Segura aí que a primeira providência dos chineses no Brasil será comer criancinhas...