Dando continuidade ao post anterior, em que eu identifico uma constrangedora estratégia (intuitiva, acho eu) da mídia de fazer uma releitura “branda” do regime militar, gostaria de acrescentar outros comentários.
Ainda não estamos preparados para enfrentar o passado. Até mesmo alguns “ex-guerrilheiros” me parecem às vezes mais preocupados em fazer auto-críticas do que em contribuir para uma reflexão moral e política sobre o que significou a ditadura.
O ambiente não é adequado, porque as paixões acesas pela ditadura e pela resistência à ela ainda estão muito inflamadas.
Pessoas que foram torturadas barbaramente ainda estão vivas, entre elas a própria presidenta Dilma Rousseff.
Ao contrário do que dizem alguns, querendo enterrar o assunto, a ditadura não é passado. Ela é presente. Um presente palpitante, de sangue, dor, medo.
Muitos intelectuais, jornalistas ou não, precisam sobreviver, e os únicos empregadores são os mesmos patrões da ditadura.
A família mais rica e mais poderosa no país, os Marinho, fez sua fortuna às custas do regime miliar, com o dinheiro do povo. E continua aí, manipulando informações, tentando ganhar eleições e procurando asfixiar os anseios populares.
Não fizemos ainda uma reconstrução simbólica da ditadura: a maior produtora de conteúdo no país é justamente a empresa que mais ganhou dinheiro durante os anos de chumbo.
As empresas que tem recursos para pagar os repórteres mais talentosos do país para fazer matérias-denúncia sobre a tortura e o arbítrio são as mesmas que os patrocinaram.
Não desmereço o que elas fazem. Mas não consigo deixar de imaginar que é como se pagássemos a Goebbels para organizar uma série de denúncias contra o nazismo.
O debate intelectual, por sua vez, ainda é muito focado em questões pessoais: cadáveres sumidos, identificação de torturadores. E em questões factuais: qual era a correlação de forças, se houve suborno, se houve ingerência norte-americana.
Tudo isso é importante.
Chegará o tempo, contudo, que teremos de discutir algo infinitamente mais profundo.
Até o momento, ainda estamos preocupados em fechar as feridas abertas no corpo do Brasil.
Haverá um dia em que as atenções se voltarão para o espírito da nação. E aí sim, veremos que os estragos foram muito piores do que aqueles provocados no corpo.
Aí veremos que a ditadura causou danos imensos à imaginação, à coragem, à esperança de todo um povo.
É fácil fazer um gráfico sobre o número de mortos na ditadura. Impossível fazer o mesmo em relação aos sonhos destruídos de milhões de pessoas.
Mas essa luta ainda está para ser combatida. O povo brasileiro ainda espera a sua catarse, a sua revanche.
Quando milhões de jovens saíram as ruas em junho do ano passado, havia uma balbúrdia desgraçada. Uns viram ali a semente de uma revolução. Outros enxergaram o início de uma rebelião de cunho fascista. Ambos talvez se misturavam, num combinado explosivo que nos provou que a democracia é sempre um risco.
A democracia só não é um risco quando o dinheiro não pára de fluir para dentro do Estado através de golpes em outros países. A pujança democrática do império americano (e europeu) foi construída mediante a opressão de outros povos, inclusive o nosso. Assim é fácil satisfazer o povo: massacrando outros povos.
O Brasil está construindo a sua democracia com muito mais dificuldade porque não está massacrando nenhum povo estrangeiro. Ao contrário, o Brasil ajuda a América Latina e ajuda a África. Crescemos lentamente, mas ajudando o resto da humanidade.
Entretanto um grito ecoou nas ruas no ano passado, um grito que eu escuto até hoje.
“A verdade é dura, a Rede Globo apoiou a ditadura”, entoavam jovens. E eles sabem separar a Globo que produz entretenimento, alguns de qualidade, e a Globo que manipula a informação.
E quando denunciavam a Globo, de forma quase intuitiva, não se referiam apenas à empresa do Jardim Botânico. Eles se referiam – quero acreditar – à essa questão espiritual de que falo agora. À necessidade de uma catarse simbólica. Ao esmagamento definitivo das forças do atraso e da ditadura, que ainda pairam por aí nos assombrando, como fantasmas de uma mansão na qual aconteceu um crime terrível.
Nesses cinquenta anos de aniversário do golpe, não se vê sentimentos de triunfo da liberdade sobre o arbítrio. E eu arrisco uma explicação: porque ainda estamos em luta.
A luta não respeita efemérides. O monstro da ditadura, após a sova que tomou da redemocratização, escondeu-se numa caverna.
Não morreu. Lá está ele, gordo, rico, forte, vivo.
Mas escondido.
De vez em quando, põe o focinho para fora de sua caverna e apanha os incautos que ousam passear perto da entrada.
A prova de que ele está lá, para dar apenas dois exemplos, foi sua vingança contra Dirceu e Genoíno. Aquilo nos pegou a todos desprevenidos.
A destruição de Pinheirinho foi outro exemplo. Há muitos outros. Muitos.
Talvez esse monstro permaneça vivo ainda por décadas. Talvez ele ainda receba, até hoje, ajuda estrangeira, como recebeu durante a ditadura. Quem pode saber?
Acuá-lo para dentro de uma caverna foi uma vitória fundamental, porque ganhamos o sol. A cada dia que passa escondido em seu buraco virtual, fingindo-se “democrático”, o monstro se enfraquece. Por isso ele se desespera tanto em períodos eleitorais, porque sabe que é o momento em que poderá ser empurrado para um lugar ainda mais escuro.
É o que faremos com ele este ano. Socaremos o maldito para um lugar ainda mais profundo, debilitando-o. Ainda não será nossa vitória final, mas emergiremos mais fortes e ele, mais fraco.
Um dia, quando menos esperarmos, deixaremos de ouvir a sua respiração pesada e ameaçadora, que escapa do buraco onde vive.
Deixaremos de sentir o seu hálito fétido.
Aí saberemos que ele morreu.
Aí sim, meus diletos amigos, aí sim, minhas queridas amigas, teremos o direito de fazer uma grande festa nacional.
Aí sim teremos o dever de criar um feriado nacional em homenagem à vitória definitiva do povo e da democracia!
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Para isso miguel, temos que caminhar retilinio sem desvios, esta tem que ser a maxima do proximo governo, acho que temos que fazer auto-critica, sim temos que avaliar erros com maior humildade, mais comprometimento com acoes que envolvam valores, patrimonios estatais , e sempre em busca de novos mercados, mais educacao e saude, este tem que ser o nosso norte o caminho do futuro caminho esse sem volta perunte ai quem quer retirar bolsa familia, financiamentos como minha casa minha vida, financiamentos universitaios, isto este monstro nao pega jamais so se vier retocessos ai sim ficara mal .
Parabens pelo post!
Miguel,
Não há o que acrescentar.
Parabéns pela precisão.
As forcas que querem manter o status quo sao como virus no corpo, estao sempre ali, esperando uma oportunidade, quando o organismo democratico enfraquece vem o golpe. A meu ver o melhor remedio ee consciencia politica, educacao politica, nao mera reprodutora do modo de fazer, o aprender como fazer. Me parece que o melhor remedio ee ideologia politica.i
Brito, você como sempre sensacional. Mas desta vez vc extrapolou em clareza, objetividade e nos brindou com um lindo texto literário. Parabéns e cada vez te admiro mais !!!
Fernando, você disse:
"A democracia só não é um risco quando o dinheiro não pára de fluir para dentro do Estado através de golpes em outros países. A pujança democrática do império americano (e europeu) foi construída mediante a opressão de outros povos, inclusive o nosso. Assim é fácil satisfazer o povo: massacrando outros povos".
Agora veja o que disse o senhor Dean Acheson sub-secretário de estado americano , em 1944 " A estabilidade doméstica, disse ele a um comitê do Congresso, era impossivel sem mercados adequados no exterior.É preciso reconhecer que a produção do pais é usada e vendida segundo arranjos financeiros que tornam possivel tal produção".
Agora, veja o cinismo do senhor Michael Ignatieff, professor que Harvard.Ele escreveu no início de 2003 no New York Times "O império do século XXI é uma nova invenção nos anais da ciência política, um império leve, uma hegemonia global cujos ornamentos são mercados livres(olhas eles aí de olho na Petrobrás), direitos humanos e democracia." E muita gente fica extasiado quando os representantes do tio SAM falam nessas tres coisas. Os nossos empresários da grande mídia, muitos políticos demagogos e vendidos ficam realmente babando iguais a crianças quando vêem doces. São os vendilhões do pais posando de democratas.É essa turma que fala que faltam em direitos humanos e democracia na Venezuela e em outros paises onde eles estão
financiando golpes.
"...A democracia só não é um risco quando o dinheiro não pára de fluir para dentro do Estado através de golpes em outros países. A pujança democrática do império americano (e europeu) foi construída mediante a opressão de outros povos, inclusive o nosso. Assim é fácil satisfazer o povo: massacrando outros povos" PERFEITO! Percebi isso há uns 15 anos, analisando o déficit americano. Tenho certeza que a "ditadura perfeita" que hoje domina os EUA não sobrevive 20 dias sem o dinheiro de seu capitalismo exportado às custas de vidas e exploração suave.
Não será fácil cortar o cordão umbilical com a "ditadura pois graças ao longo período de "abertura lenta, gradual e segura as estruturas econômicas engendradas pelo Golbery foram consolidadas.
Golbery estudioso da História planejava para o Brasil a continuação da "era Vargas" um sistema semelhante ao prussiano ou ao japonês com forte presença do Estado no finaciamento ou mesmo gestão de empresas estratégicas.
A idéia era usar os Fundos de Pensões das Empresas Estatais como polo indutor dessa parceria , não por acaso foi esse setor um dos poucos cujos privilégios foram ampliados durante o longo período inflacionário, inclusive graças à sua aproximação com a CUT e o PT para legitimar suas demandas
Paradoxalmente o governo de fhc ,aquele que afirmou o fim da era de Vargas, foi aquele que no epsódio das privatizações graças a criatividade de Dantas permitiu que os Fundos, todos eles quebrados fossem capitalizados, inclusive com a "canibalização" da Vale do Rio Doce.
Hoje os Fundos possem em seu portifólio ações de empresas de todos os setores desde mortadela , passando pelo setor de comunicações eo energético.
O PT tornou-se proprietário, portanto também ele , ou parte dele não deseja a queda da Selic o que explica seu pouco ou nenhum entusiasmo pelo governo Dilma.
A cobertura do O Dia, do Rio, está bem legal. É o maior concorrente do Globobeira. Os donos são portugueses, não sei a linha deles em Portugal, por aqui, é bem mais isento. Quase não fala de CPI do Fim do Mundo. Também é um jornalismo bem mais regional.
Segue o link: http://especiais.odia.ig.com.br/noticias/50-anos-do-golpe/index.html
Esse monstro com objetivos e rostos de gente, que a gente conhece de cor e salteado, que o mantém e que nossos antepassados também conheceram em outras versões, tem nome. Portanto é passada a hora de não mais fugirmos da realidade que esse monstro é nosso inimigo, de fato, nunca, jamais, foi adversário, e o nome que o identifica desde sempre e que deveríamos colar nos condôminos que hoje o sustentam, é CASA GRANDE, para melhor focarmos a luta política contra o manjado inimigo. O resto é conversa mole por cagaço em cutucar o monstro CASA GRANDE, com a desculpa da tal de vara curta, mesmo quando, a bom tempo, a vara é bem mais que longa. como disse a presidenta, "A vida quer é CORAGEM", pois então vamos dar a vida o que ela pede. O primeiro passo é estigmatizar, carimbando a chapa de identificação à prática dessa "gente boa", CASA GRANDE, para deixar claro a todos quem é o inimigo que joga e torce contra o Brasil. O segundo passo é identificar os braços da CASA GRANDE, a seletiva justiça parceira e a mídia terrorista da desinformação, que jogam e torcem contra o Brasil...