A força da memória do povo. A jararaca, ou o tal processo social de que falava Brizola

Republico aqui um texto de quase dois anos.

É pessoal.

Ou não, porque é memória social, também.

É o que habita nossas profundezas e sai, assim, sem pensar, com a força de um vulcão.

Que dorme, mas não se extingue.

É a jararaca, ali, enrodilhada, se protegendo.

Inofensiva, até que se lhe ameace a vida.

Quem estuda cobras aprende uma palavra esquisita: pecilotérmico.

Os bobos acham que quer dizer “animal de sangue frio”, e não é.

O sangue deles tem a temperatura do ambiente e se ele esquenta, este esquenta também…

Então, para tristeza dos “intelectuais petistas” vai abaixo o que eles jamais poderão entender no nosso povão.

Povão como meu avô, o da direita que vai na foto acima e um dos perdidos na multidão que vai na foto abaixo.

Um getulista

Até boa parte da minha minha juventude, só conheci um getulista.

Meu avô, o pintor de paredes José Nogueira, que sabia o suficiente para escrever o nome e para me ensinar lições de respeito e decência.

Talvez os getulistas fossem tão poucos, mas na minha visão de menino e rapazote porque eu não os podia ver no seu silêncio.

Afinal, eu nascera quatro anos depois  de sua morte e não posso recordar dela, ao contrário do dobrar de muitos sinos da morte de João XXIII ou do espanto de todos com o assassinato de Kennedy, que meio século não me apagaram.

É que antes do meus seis anos, veio o golpe militar e, ao corpo sepultado uma década antes, veio o enterro do nome na cova das bocas.

Com a mãe e pai professores, aliás, fui “subindo” de subúrbio, do Valqueire para o Méier e lacerdistas conheci vários, inclusive uma vizinha chatérrima que todos chamavam de “Primeira Dama da Vila Kennedy”, porque se ufanava de que o marido detinha  um cargo de administrador do conjunto habitacional, longínquo, para onde foram removidos os pobres das favelas da Zona Sul do Rio.

Só eles falavam, com aqueles conceitos miúdos, parecendo bem arranjados, e sem as palavras difíceis que os poderosos falavam na televisão em preto e branco: “o comunismo apátrida, que de maneira solerte e soez”…

Meu avô ficava quieto, não dizia uma palavra.

Só uma vez ouvi ele xingar, entre os dentes, quando passou Carlos Lacerda para inaugurar uma avenida e ele me levava, garoto, pela mão: “corvo filho da puta”.

Nunca antes e nem depois ouvi um palavrão da boca do “seu”  Zé Nogueira, até sua morte, em 1986. Nem mesmo quando, no final da vida, passou a beber um pouco mais, desrespeitando a regra que me ensinara: “se você beber antes das seis em dia de semana ou antes do meio dia no domingo (sábado era dia de trabalho, também), preste atenção porque está com problemas com a bebida”.

Uma vez ou outra a política entrava em casa, ou porque meu pai tinha uns amigos “esquisitos” dos tempos de faculdade que foram parar lá em casa depois do golpe, para logo ganharem o mundo, seja porque minha mãe resmungava de meu avô tê-la obrigado a copiar panfletos, que sua própria letra não se prestava à tarefa.

No resto, não se falava e não se achava nada, porque – dizia um chiste macabro, “o último que achou ainda não acharam”.

Mesmo na militância de esquerda clandestina e até com Brizola, na redemocratização de 82, getulismo era um conceito que passava longe de mim.

Isso era coisa daqueles “velhinhos”  – velhinhos, veja só, Brizola  voltou do exílio  com meses menos de idade do que tenho agora – e não dos jovens.

Até que um dia, numa conversa com amigos, um deles, médico e filho de um operário têxtil, solta a frase que paralisou o grupo: “nós somos netos de Getúlio Vargas!”

E diante do silêncio geral, completou: nossos pais nos colocaram nas escolas públicas do Getúlio, que eles não tiveram e  no  mundo de direitos que não tinham.

Lembrei-me da pequena placa de metal, já com as beiradas cobertas pelas pinturas, na Escola Técnica onde estudei, a Celso Suckow da Fonseca, que dizia ter sido o prédio concluído para ali funcionar a Escola Técnica Nacional, em 1942.

Era um semi-internato, para filhos de operários, já então convertida em concorridíssima escola de classe média, com um “vestibular” difícil de passar e cujo resultado, publicado no velho Jornal dos Sports, minha avó deixou-me de herança.

Sair dos cortiços, as cabeças de porco, ter uma boa casa do Iapi, levar a filha à Escola Normal para ser professora, mesmo que à custa do pedal da Singer com que minha avó, costurando, completava o orçamento doméstico.

Ele era um cidadão, era um homem com direito ao trabalho, ao salário,  a comer, a educar os filhos. Direito a sonhar, mesmo não sabendo expressar isso em palavras.

Foi isso que o fez getulista.

Vieram-me à cabeça as tolices, a “concessão”, o “direito sem lutas”.

Uma pinóia!

Acordar às três horas de manhã, tomar o primeiro trem para a Central, uma lotação para Botafogo e de lá, da oficina, para as paredes do freguês, isso é sem luta? Isso é para fracos e dóceis?

Deste dia em diante compreendi, de verdade, porque meu avô era getulista e o que Getúlio Vargas foi para os brasileiros pobres.

Tudo o que havia lido, todos os conceitos elitistas que havia absorvido  – ou até me recusado a absorver, quando me filiei ao trabalhismo e aguentei estoicamente a petezada falando  em “pai dos pobres e mãe dos ricos” , e “peleguismo”, e “carta del lavoro” – tudo ficou miúdo, tudo ficou pequeno.

Não eram livros ou frases bem arrumadas, pintadas no papel, eram vidas.

Era o que eu próprio era e sou.

Getúlio Dornelles Vargas não foi  nada e foi muito.

A história é descrita pelos livros, não escrita por eles.

E pessoas ora são uma coisa, ora outra. Raras vezes conseguem conservar a consistência através dos tempos.

Foi o que o povo fez dele e ainda faz, nas profundezas de uma memória da qual nem eu mesmo suspeitava haver em mim.

A dor pública que, como reproduziu aqui o Miguel, descreve o Janio de Freitas, não era pelo corpo morto de um homem, era por um pedaço do próprio peito ferido em cada um de milhões de homens e mulheres, de brasileiros.

Um pedaço que não morre, porque quando arrancam, rebrota tal e qual o fígado de Prometeu, que não era uma fatalidade, mas uma atitude. O que os deuses do Olimpo consideravam um castigo, era o gesto de enfrentamento.

Porque os homens envelhecem e morrem, mas o povo é imortal, ainda que à custa de sofrer com os abutres cotidianos.

É por isso que não posso ser diferente do que foi, na essência, o meu avô e entre meus filhos haverá um igual.

A história humana não é um jardim florido, desenhado a traços inteligentes por pessoas de elevado saber.

Ela é torta, sinuosa, cheia de voltas e abismos.

Muitas vezes feia, feia, feia.

E sempre linda.

Fernando Brito:

View Comments (38)

  • Lula em Brasília amanha com a Dilma!! ! Tudo indica que amanha será oficializado o convite para ele ser Ministro.Infelizmente a Presidenta tem que "jogar sujo" também, já que o Juiz de Curitiba faz isso.Dilma fazendo isso poderá ser até imoral, mas não é ilegal. Se assim eles querem, assim vai ser. Linda Jogada ..... vamos para prorrogação!!! Nada como ter Lula como Ministro para melhorar auto-estima da classe trabalhadora.

      • Sua ignorância é acima da média, acho que nem seus amigos, familiares deve te aguentar. Você tem a oportunidade de melhorar, mas tudo indica que seu cérebro está atrofiado, você é um analfabeto funcional.

    • Concordo com o companheiro! E isso de ser imoral é balela! Por acaso e imoral seua amigo comprar um sítio pra vc usar?! Por acaso é imoral seu filho morar de graça na casa do sócio? Por acaso é imoral que uma construtora pague sua mudança?!! As favas com esses coxinhas neo liberais opressores! Se a OAS fez uma reforminha de 700 em um apartamento de 250 é lógico que ela tinha as razões dela! É ou não é. O fato do lula ir lá, da marisa ir lá, do lulinha ir lá, não tem nada a ver! Fora rede esgoto!!!

  • Muito bonito FB !
    E dizer o que veio a ser boa parte da petezada que desprezava Getúlio e o trabalhismo. Mas vamos adiante, camarada, companheiro e colega de luta e de Escola Técnica, com vestibular e tudo.
    Nestes tempos sombrios onde a história vira uma esquina é bom ter um homem que escreve como o amigo, escreve com a decência que falta aos jornalistas da grande mídia, mas antes e sobretudo, escreve com a alma aberta, coração solidário e fraterno e com a rosa na mão !
    Vamos em FRENTE !

  • Senti o fedor do marxismo e dos seus cem milhões de mortos no texto. Por que será?

      • Me permito completar, e o cérebro tem ligação direta com o intestino grosso.

      • Fernando, resposta genial. Mas mesmo assim, como você permite que um débil mental venha no seu blog para escrever essas coisas? Já temos que aurá-los nas ruas e em toda grande mídia, bloqueia esses dementes por favor.

    • Caro bronco capiau ou capiau bronco. Você está mais acostumado com cheiro de bunda tucana, como aquela da foto imortal do domingo retrasado, lá do comitê eleitoral do PSDB do Tatuapé. É desses cheiros que você gosta, o cheiro da Cantanhede.

    • É porque a mídia manda comer m rda, você come e esquece de escovar os dentes depois.

  • Parabéns, Fernando Brito, por essa sua crônica sobre o getulismo.

  • Fernando, um primor o texto.
    Muito bom tê-lo publicado novamente nessa hora tão difícil.
    Assim como vc estou intranquilo desde quinta passada, intranquilidade que aumentou muito na sexta.
    Está mais do que claro, sem nenhuma sobra de dúvida, que há um golpe em marcha e a marcha não começou no dia seguinte à eleição de Dilma.
    Começou no chamado Mensalão e os ânimos foram se acirrando até a última eleição.
    Para a oposição a eleição de Aécio eram favas contadas, não deu.
    Dois anos antes desta última eleição já se falava que a direita não admitiria perder uma quarta eleição e estamos vendo o que tem acontecido desde então.
    A presidência está inviabilizada, a presidente não pode pensar no país e a Globo surtou com a história do triplex de Paraty.
    Partiram para o tudo ou nada!
    Sabem que não tem apoio popular, mas um medo me assalta.
    Essa medida do Torquemada do Paraná antes de denegrir o Lula ou a esquerda, penso eu, atirou um fósforo na gasolina para que comecem os confrontos que exijam intervenção das forças armadas.
    Eu era pequeno quando da morte do Getúlio, mas acompanhei todo o processo que levou ao golpe de 64, lá eram o Cabo Anselmo, a FIESP o Boilesen, Auro Moura Andrade, Ranieri Mazzili e outros, cada um no seu campo e contam com uma poderosa mídia.
    O trabalho de convencimento da classe média, que em grande parte quer o golpe já foi feito.
    Temos hoje Moro, Skaf na FIESP e o Aécio.
    Faltava o fósforo que foi riscado e aceso pelo Moro!

    • ANTONIO! Não tenha medo e nem o espalhe para ninguém. Um dia, algum de nós terá de morrer. como Getúlio,Fernando ou Lula o que importa é a continuidade...Atualmente, a pátria não nos foi passada com mais direitos,mais liberdade, mais plural e democrática? Quantos morreram ou deram suas vidas para isso! Agora é a nossa vez.Estaremos lutando, não contra forças armadas, pois acreditamos que estas deveriam lutar pela pátria visto que são mantidas não somente pelos ricos mas com os recursos de todos. Caso elas venham ser usadas inconstitucionalmente contra o povo. A constituição fica rasgada e aí, cada um fica livre para tomar suas próprias atitudes...

  • Não sou petista. Não sou filiado, não vou a convenções. Votei em Dilma e Lula nas últimas eleições. Só. Arrisco até a dizer que a maioria dos que vem aqui e em outros blogs sujos também não têm partido definido. Somos esquerdistas. Não petistas, ou comunistas ou Getulistas.

    Falar mal do Getúlio é desconsiderar o quão recente a real democracia é até mesmo nos mais avançados países ocidentais. Até ontem negros e mulheres não voltavam. Um verniz de superioridade civilizatória. Estamos na infância. Estamos sentindo na pele o quanto precisamos crescer ainda: agora, nesse dia, nesse minuto. Getúlio era a melhor opção. A única. A única real para os mais humildes. Querer um Lula naquela época era pra sonhadores. Era o mundo real. Era o que seu avô tinha pra construir a vida dele.

    Agora, o que importa é isso: Nossa terrinha foi governada por trocentos direitistas. E deu no que deu. E os direitistas continuam votando nos Malufs e Aécios e Alckmins. Lula e Dilma tiveram erros e acertos. Não importa o que aconteça a partir de hoje, se por causa de apenas 3 ou 4 governos esquerdistas alguém desiste de ser de esquerda, é por nunca foi de verdade.

    Se algum outro partido de esquerda apresentar solidez, eu considero. Certamente não a Heloísa Helena ou Marina. Ciro, se aprumando, eu voto. Uma união coerente de esquerdas? Eu considero. É hora de união.

    • Concordo ! Principalmente com... "se alguém desiste de ser de esquerda, é porque nunca foi de verdade".

  • Pessoal é o seguinte.
    Eu tenho percebido nas ruas que a população não tem interesse em política e estão muito mal informados. Mal informados do tipo total.
    Boa parte não acessam blogs. E também não leem revistas do PIG.
    Os blogs ficam muito escondidos, não há divulgação. Em contrapartida os blogs fazem propagandas para mídia oposicionista.

  • Ontem ficamos muitas horas sem luz no prédio. Moro num prédio simples, sem elevador. Bati na vizinha pra pedir pra usar o telefone, meu celular estava sem bateria. No fim das contas ficamos conversando à luz de velas. Perguntei o que tinha achado da condução coercitiva do Lula. Ela começou falando da sua infância para chegar ao assunto. Foi muito pobre. Aos dez anos “não tinha as pontas dos dedos" porque quebrava pedra em pedreira, aos 11 foi pra lavoura. Todos seus amigos de infância já morreram porque não tiveram boa alimentação, a mãe dela sabia que um pedacinho de abóbora com feijão era melhor que só arroz, mas os filhos da vizinha alimentados só de arroz tinham a barriga fofa e estufada e morreram todos antes dos 40 anos. Falou da máfia da política mineira que conheceu desde criança. Inteligente, passou em 2o lugar no Admissão para o ginásio (o 1o lugar, claro, foi da filha do prefeito) e como a prefeitura tinha um programa de bolsa para os primeiros lugares, ela ganhou bolsa para estudar numa escola de Freiras que, vendo aquela menina pobre ali, aproveitou-se do fato e fez a menina "pagar" pela bolsa esfregando chão, passando cera e fazendo a faxina da escola. As meninas ricas e 'cristãs', para não conviverem com ela nos trabalhos de grupo, só marcavam os trabalhos para a noite. Como ela morava em lugar sem luz e distante alguns quilômetros que tinha que percorrer a pé, fazia os trabalhos de 'equipe' sozinha. Resolveu um dia largar a escola e vir para São Paulo a convite de uma família para ser babá, tinha 13 anos. Já casada e com duas filhas pequenas fez supletivo noturno e se formou no colegial. Disse que só conseguiu formar as filhas na universidade por causa do Lula, e que uma filha reconhece isso mas a outra virou a casaca, virou paneleira. Disse que se o Lula fez algo errado, nem por isso ela terá a indignidade de bater panela, porque ela que veio da extrema pobreza, sabe o que o Lula fez pelos pobres. Daí afirmou algo talvez típico da moral popular: "não é como no caso do Maluf - rouba mas faz, não se trata disso, do Lula ter feito algo errado e ser desculpado porque ajudou os pobres. Eu não sei se ele errou, mas se errou é porque o ser humano erra, mas é que eu acredito que Deus coloca de vez em quando no mundo seres iluminados para ajudarem o mundo, isso não quer dizer que não errem, mas eles têm essa iluminação de ajudar os outros e Lula é assim e nunca vou esquecer que foi durante o governo do Lula que pude formar as minhas filhas, por isso nunca vou bater panela".

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