Boa parte da minha infância e adolescência passei no Lins de Vasconcellos, “subúrbio do subúrbio” do Méier, onde estudei na escola primária Isabel Mendes,um prédio sobre pilotis, típico da arquitetura do final dos anos 50.
Lá também estudava o Magno.
Morávamos perto: eu, numa vila que ficava bem defronte a um grande centro espírita, o Tupyara, na Rua Lins. Ele, no conjunto habitacional do BNH, 50 metros antes.
Os guris se davam, indiferentes à pouca diferença social entre a vila de classe média baixa e a pobreza do conjunto. Morava lá, além do Magno, o Marcos “Galinha”, bom de bola como eu jamais fui, mentiroso que só.
O conjunto subia um morro até a “barreira” e lá em cima, perto do bloco 26, ficava o tráfico. Camburão da polícia, lá, só subia se “combinado”.
É obvio que as diferenças, que eram pequenas, ficaram grandes.
Fui para a universidade, ajudado no vestibular pelo amor à matemática e à física que a (recuso-me a dizer “uma”, sobre ela) escola técnica me deu, fui para uma universidade pública.
Magno foi para o tráfico e, como era um cara capaz, chegou a chefe da “boca”.
Já não o via, muito menos jogávamos bola, como antes.
Até que um dia soube dele.
Eu já morava em Vila Isabel, mas minha mãe seguia na vila e sua casa foi roubada, num dia em que ela não estava por lá.
Dois dias depois, um negrinho, empurrando um carrinho de mão, trouxe de volta televisão, toca-discos, bugigangas.
O Magno mandou o ladrãozinho devolver e que pedisse desculpas à professora.
Já repórter, fui procurá-lo, e o entrevistado fui eu.
Tomamos uma cerveja, ele de frente para a rua e costas para a parede, num botequim na esquina da Rua Lins com a Cabuçu.
Mais que a gíria, impressionou-me o fatalismo do Magno.
Perguntou se eu achava se ele pensava em um dia, chegar aos 40 anos.
Se eu era idiota de achar que ele um dia seria um aposentado.
E me perguntou se eu tinha um carro, que eu não tinha, e ele tinha.
E mulheres. E a pulseira grossa, de ouro, reluzente.
“Sei que não duro muito”. E, a seguir: “mas no que vou durar, tenho muito mais que teria”.
Poucos meses depois, numa cilada, Magno ficou sob uma chuva de balas.
Não sei se vinte e três ou vinte quatro anos, mais de uma bala por ano de vida, com a arma silente em sua mão.
Não me oponho à pena de morte por convicções humanistas ou religiosas, só.
Magno me ensinou para sempre que o medo de morrer não o tirava daquela vida.
Impunidade, como, se ele sabia, serenamente, que ia pagar com a morte?
Os “dimenor” agora não podem mais ter 17 anos, com a redução da maioridade penal?
Terão 15, 14, 13 anos, como já têm.
A diferença essencial entre eu e Magno não quero perder.
Eu não embruteci, que sorte a minha.
View Comments (41)
Absolutamente magistral. Não se trata de uma reflexão jurídico-político-ideológica, mas de uma reminiscência, uma busca nos porões da memória. Mas como dói, em nós, seus leitores. E como cresce nossa admiração por suas doses diárias de caráter, humanismo, equilíbrio e estoicismo.
A redução da maioridade é mais uma forma de tapar o sol com peneira.
Será?
Decerto é eleitoreira. Decerto é mais um buraco neste queijo suíço que tentam fazer na Constituição. Mas será apenas isso?
Posto que a redução da maioridade penal não vai resolver absolutamente nada, a não ser encher as burras dos futuros donos de presídios; posto que os que hoje cegamente defendem essa mudança constitucional como solução para os problemas da violência no país serão os frustrados de amanhã, não seria esse mais um passo em direção ao nazifascismo capaz de transformar o Brasil num verdadeiro açougue de carne humana? E não seria essa uma forma de se promover a eugenia, e com isso branquear e enfraquecer ainda mais o Brasil e suas resistências ante os ataques de colonizadores internos e externos? E não seria essa uma forma de jamais honrar a dívida social com os nossos irmãos afrodescendentes e mesmo com os nossos irmãos indígenas?
Essa tal de maioridade penal e uma tremenda pegaçao de pe' da pobresa essa que nao tem acesso ao mundo minimo ciilizado gente. Temos que construir pra dpois penalizar muito da culpa e dos pais essa de encaminhar jovens para quase tortura e coisa da pseudo elite. Auela que acha que bater nos ilhos os outros e bom e no seu nao pode muito engraçado isso,na minha cidade(torres/rs) houve um cao de pai que oi dr uma palmadinha em uma menina de tres anos( um pobre anjo) e acabou deslocando a coluna junto o gluteos(acho ue e' iso) deixando a menina aleijafa de uma perna, esse sim deveria ir para cadeia um pai onstruoo desses tem que ir pra atraz das grades.
Nos EUA qualquer idade pode responder criminalmente como adulto e não é que a Justiça americana funciona? Aqui tinha que reduzir pra 15 anos. Afinal, quantos pagadores de impostos, trabalhadores, estudantes e demais pessoas corretas ditas livres são obrigadas a trabalhar, a ficarem presas em suas casas à noite e até durante o dia dependendo de onde moram porque vagabundos que não produzem, não pagam impostos, não fazem nada de útil para ninguém e ainda ameaçam a vida das pessoas direitas dominam locais e impõem suas vontades. Na remotíssima possibilidade de irem presos, não podem trabalhar, comem de graça, têm assistência médica e até aposentadoria! Francamente. Nossa democracia é libertária e garantista demais. Daria para ser menos, como as democracias dos países mais avançados.
O sistema de justiça americano é um dos mais incosistentes do mundo. Adolescentes trocando mensagens/fotos picantes podem acabar sendo registrados como "sexual offender" o resto da vida, tendo sempre que avisar pra qualquer possivel empregador: "Olá, tenho um registro de ofensa sexual, quero um emprego". Isso não é justiça.
Lá a reincidência é muito maior que no Brasil, o sistema carcerário deles consegue ser pior que o nosso.
De resto, parece que você se baseia no que aquele Revoltados Online, TV Revolta falam sobre presídios e presos.
Se vamos imitar os EUA, então vamos "de com força": lá juiz é eleito, não decora apostilas para passar em concurso. Lá, o Ministério Público é subordinado ao Poder Executivo e ai de quem não obedecer ao Presidente. Lá, as escolas públicas são decentes e os salários dos professores não fazem vergonha. Lá, não há tanta diferença salarial como aqui, onde juízes e promotores acham que devem ser tratados como se fossem uma casta superior, com direito a auxílio-moradia e outros badulaques. Lá, a população se envolve com a gestão das cidades, das escolas, da polícia. Lá, a política de cotas afirmativas existe há muito mais tempo. Lá, não existe saúde pública e ninguém consegue fazer um transplante se não pagar muito caro, não é como aqui que só o SUS faz.
Seja honesto:
Você conhece os EUA, de perto?
Não vale ter viajado para Miami ou Nova Iorque.
Digo ter vivido mesmo, por anos, na sociedade americana.
A propósito, os EUA tem a maior população carcerária do mundo, mesmo com uma suposta justiça eficaz, mesmo com penas severíssimas, como prisão perpétua e pena de morte.
Aliás, de vez em quando surge a história de um condenado a morte que foi executado, mas que posteriormente se descobrem ter sido inocente.
Quanto aos menores estadunidenses, trancafia-los na cadeia não os impedem de cometerem chacinas em suas escolas, com armas de grosso calibre comprada livremente pelos seus pais, nas milhares de lojas de armas e munição espalhados pelos quatro cantos dos EUA.
Não há como fugir à comparação. Aqui não há pena de morte, não há pena oficial, diga-se de passagem. Agora, bem recente, vimos o governo clamar pela vida de um brasileiro condenado à morte por crime de tráfico. Tem outro na fila.Lá na Indonésia, eles foram apanhados em flagrante. Sou contra a pena de morte, critico o nosso sistema judiciário em geral por crimes menores, imagina isso aqui no Brasil. Diante dessa lei da redução de idade, a gente pensa como é fácil manipular emoções e manifestações que, conforme o caso, provocam a vontade do justiçamento ou da compaixão. Basta ver o caso do helicóptero do Perrela, que não deu em nada. A É o famoso caso do Corra que a justiça sumiu! E o do rapaz inocente que foi salvo de um erro de identificação que o levou à prisão, porque trabalhou numa emissora de televisão. Ou do jovem de classe alta paulista que atropelou arrancando o braço de um ciclista e fugiu, sem prestar socorro. Não deu em nada. Nem comoção midiática, nem revolta contra o representante da classe privilegiada. Ou do menor acorrentado no poste , ato elogiado pela Sheerazade em concessão pública de televisão. Ai a gente pergunta: e se fosse o filho dela (interrogação).
Caro Fernando,
Seu texto me fez lembrar um ex-vizinho que, na adolescência, entrou no tráfico de drogas. Certa vez, em tom vitorioso, falou: "Disseram que eu não passava dos 30, mas já estou com 31".
Não chegou aos 32 anos.
Fernando Brito
Novamente, fico engasgada lendo um de seus artigos.
Você não pode imaginar a grande admiração que tenho por seus escritos.
Você é único!
Ver Datena diariamente, a décadas, tratando da criminalidade, por apresentar um programa sangrento, como se tivesse conhecimento para tal, a gente até entende, embora nunca entendendo por que ele continua no cargo, se não tem rpeparo nem mesmo pra desenvolver uma frase com sentido.
Espanta é ouvir da boca de pessoas que a gente pensa que usa a cabeça, acreditar que não existe outro meio jurídico capaz de dar um basta na violência promovida por menores de 18 anos, que não esse, de tornar imputáveis menores de 16 anos. Quem usa a razão garante que será o caso de em pouco tempo irmos para os 14, os 12, os 10,...Até que idade, então, se na verdade já hoje mesmo temos assistido a crimes hediondos praticados por menores de 12.
A imprensa já divulgou por diversas vezes a ficha criminal, vastíssima, de um garoto de 12 anos, que sempre aparece no vídeo fazendo chacota dos repórteres e das polícias.
Por que os legisladores não se incomodam com as carceragens? Os próprios presos adultos poderiam agir de forma diferente, e saírem das prisões ressocializados, não fossem presos como uns animais, o que os deixam mais delinquentes, e com mais ganas de praticar outros crimes.
Ao invés de dizerem que estão atentos aos clamores das ruas, os legisladores tem que estar atentos ao resultado de suas ações, que podem resultar num verdadeiro desastre nos próximos anos.
Investir na educação dos meninos, mesmo dentro de um sistema carcerário, é o que falta. Juntar esses meninos sem nenhum propósito de trazê-los de volta à sociedade sem as devidas condições de convívio humano é a maior estupidez já vista e sabida.
Fernando,
Política é, antes de tudo, relações humanas. Ela se dá na esfera macro e micro. Eu acesso o seu blog porque você humaniza a política, a torna algo do dia-a-dia, mais próximo das relações humanas, algo que não se restringe à números econômicos, medidas administrativas ou àquilo se passa nas instituições republicanas. Parabéns por relatar essa história pessoal e por concluir o texto de forma reflexiva e útil!
Ontem, por um acaso grande, já que não vejo noticias na tv a não ser na tv Brasil, estava o Boris na band a comentar sobre a aprovação em 1* instancia da redução da maioridade penal.
Após contar o que aconteceu ele teceu seus comentários, favoráveis à redução e depois os comentários contra, terminando por dizer que isso é partidário e ideológico ...
Impressionante a cara-durice desses comentaristas !!!