A manjedoura

A mesa comum não dava conta e era estendida com cavaletes e coberta com toalhas emendadas.

Esticada e duplicada, como era também a viagem de ônibus, o primeiro do Méier a Marechal Hermes, depois dali para Realengo, penúltima estação antes de Padre Miguel, antepenúltima de Bangu.

O calor era infernal, mas os hábitos austeros do avô impediam de ficar sem camisa. Bendito o abacateiro, alto de ameaçar cair, que sombreava parte cimentada do quintal.

Outras árvores menores e um coqueiro-anão davam conta da soleira na parte de terra do lote fundo da casa do Iapi, o Minha Casa, Minha Vida dos anos 40, que tinha a sorte de não contar com arquitetos que acham que o pobre não tem de ter casa, mas morar em gavetas.

Vivíamos os anos 60. As ambições, poucas e modestas: a casa própria, o fusca…Quem sabe uma vitrola. Só chegariam mais tarde o rádio de pilha, nossa internet, e o youtube , na TV imensa, de 26 polegadas que a mãe, professora, deu inutilmente ao pai. Ele ouviu, sem ver, a Copa de 70, num grande rádio a válvula.

A longa mesa tinha de tudo por cima e de tudo em volta.

Fumegando, a galinha – não tinha frango, naqueles tempos, menos ainda estes bichos “bombadões” a que chamam de ave isso e aquilo – a carne de porco, a carne de boi, separadas, criteriosamente, do cozido opulento que continha coisas de todas as cores.

Não cores esmaecidas, tons impressionistas que vinham da feira em bolsas de retalhos de napa, resistentes ao peso das compras ainda fartas do salário-mínimo.

Hors concours, o bacalhau, que era ainda comum no subúrbio, mas já não se misturava, senão com as rodelas de batata, de cebola, pimentão e as azeitonas, saídas da lata.

Em volta da mesa, era vasta a fauna humana: professoras, um pintor de paredes, um motorista de caminhão, um capitão do Exército, vindo da tropa, de política falava-se pouco, em respeito às opiniões mais variadas que as cores do cozido.

Nem presépio, nem árvore de natal, presentes muito raramente e, assim mesmo, coisas de uso: sabonetes, meias, uma água de colônia, que o tio caminhoneiro e mulherengo adorava. Nada de música alta, pagode, nem TV ligada…Nada de valentias, coisa alguma de ostentação.

Como sou grato à vida por me deixar ter vivido assim, por ter permitido que eu jamais desprezasse meu povo e pudesse ver, que ele não é mau, nem grosseiro, nem estúpido, ainda que o queiram fazer assim, durante décadas.

Se eu pudesse definir o Natal, sem Deus que sou, diria que é isso, o recordar da manjedoura.

Lembrar do lugar onde nascemos, onde nos alimentamos, onde nos sentíamos seguros dos perigos do mundo.

Uma viagem onde vamos buscar não ouro, nem incenso, nem a tal da mirra, que ninguém sabe o que é.

Mas a nossa raiz no Brasil, nosso colo no povo, nossa força para sermos eternos.

Feliz Natal.

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22 respostas

  1. Feliz Natal, companheiro! E obrigada por tudo: textos, coragem lucidez, coerência, etc… etc… que nos ajudam a atravessar a tormenta

    1. Que coisa bonita, Fernando. Lembro dessas mesmas coisas e, talvez, por isto, eu sinta essa dor, hoje. Obrigado.

  2. FELIZ NATAL BRITO
    Diante da sua descrição tive um “surto de saudade”, pois era assim tambem o meu natal aqui em Santo Andre -SP. Pessoas humildes, ceia humilde, muitas vezes um pedaço de pão e um copo de vinho, somente permitido pelo meu pai nesta epoca. O cheiro forte de pinheiro, nada de arvores de plastico, nem luzinhas, apenas uma vela acesa. Nada de “frangões”, nada de ostentações gastronomicas de “chefs”, apenas o basico. O importante é que tinhamos ciencia do significado da data, pois o comercio não imperava. Eramos felizes.

  3. Como de costume, belíssimo texto Brito. Você é um verdadeiro mago das palavras! Também fui criança e adolescente nos subúrbios cariocas. Muito da sua descrição da ceia natalina se assemelha às minhas experiências de festas de fim de ano. Éramos simples e humildes, mas havia algo de poético no dia a dia suburbano. Parabéns! Feliz Natal! Que continuemos a ver no pobre a figura de Jesus Cristo.

  4. Saúde e tranquilidade para continuar escrevendo assim por muitos e muitos anos. Obrigado pelo certeiro e cortante texto. Assim, também, foram para mim, aqueles tempos. Boas Festas Fernando e familia.

  5. Feliz Natal, Fernando Brito, nosso semeador de esperancas e VERDADES entaladas nas nossas gargantas e tao eloquentemente expressas por voce. Feliz Natal a voce , seus familiares e leitores. E muito, mas muito obrigado mesmo pelo TIJOLACO. E 2020 a resistencia deve continuar. Ate la’!

  6. Excelente Brito!
    Sou de 1965, e apesar de ser do interior dos interiores, fora o bacalhau, o resto é tudo semelhante.
    Como é difícil para os além de 5.0 acostumarem-se

  7. Querido Brito,

    Especialista em trazer lágrimas aos olhos de quem já não costuma chorar.
    Belas recordações.. também fui criança pobre, família humilde porém digna.
    Boneca de pano, às vezes um vestidinho “novo” (ganhado de segunda mão).
    Amigos: sigamos juntos, na certeza de estarmos do lado certo da história.
    Pode demorar mas essa doideira vai desaparecer. Essa gente doente vai voltar para o seu lugar e veremos novamente a luz do sol brilhar para todos. Juntos. Coesos. Fraternos.
    Feliz Natal, amigos.
    Feliz Natal, querido Fernando Brito.

  8. Belo texto, mais da lavra do artista que do jornalista. Caio no lugar comum de dizer que, também a mim, trouxe a nostalgia das Natividades da infância, que tinham como maior entidade de valor a congregação dos familiares (e eram muitos mesmo, morávamos todos em um raio de três quarteirões de distância, cada ano todos se juntavam em uma casa “escolhida”). Hoje toda esta beleza foi sendo progressivamente substituída por consumo material e ostentação do mesmo, a presença de familiares se faz rara (mais idosos e frágeis, mais jovens sem tempo e paciência para “velhos”). Mas no nosso interior ainda queima o lume esquecido de quando o significado de Festas era de alegria comum e paz. Alegria comum e Paz é o que desejo a todos os integrantes das “familias” Brito, da casa e do blog!

  9. Feliz natal a você, sua família e a todos os leitores do blog. Muitas bençãos a todos.

  10. Essa crônica natalina tem o cheiro e o gosto da minha infância, que não foi em subúrbio, mas num sítio, na zona rural de uma cidade pequenina do interior de MG, na qual não havia sequer água tratada e apenas um telefone público. Não havia eletricidade nem televisão nem consumismo ou discussão; a família reunida saboreava as “consuadas” feitas por minha mãe, com deliciosos doces de sobremesa. Não havia a figura estrangeira do marketing capitalista, papai Noel. Os presentes, semelhantes aos descritos na crônica, eram atribuídos só “Menino Jesus”.

  11. Hoje as festas natalinas, para mim, têm algo de patético e hipócrita. Amor dirigido e concedido a conta gotas para os que partilham das mesmas convicções.
    O Cristo, dizem, morreu e ressuscitou. Seguramente o cristianismo acabou por enterrá-lo e o fez desaparecer entre violências proferidas e praticadas, sacramentadas ao longo dos séculos e consolidadas através do presentinho obrigatório do Natal classe média para garantir a sobrevivência do capitalismo e das grandes corporações.
    Feliz o que?

  12. Como alguém já disse “mais presença e menos presentes de Natal”, porque os presentes rápido nos esquecemos, mas certas presenças e certas lembranças são insubstituíveis e, mesmo que já tenham partido, viverão para sempre em nossas memórias. Feliz festas a todos.

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