Muito bonita essa reflexão da Hildegard, e importante neste momento em que vemos um golpe de Estado sendo meticulosamente gestado na Venezuela, inclusive com apoio ingênuo (ou nem tanto) de setores da opinião pública brasileira.
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NESTE MOMENTO EM QUE UM GOLPE RONDA UM PAÍS VIZINHO, É MEU DEVER DIZER AOS JOVENS O QUE É UM GOLPE DE ESTADO
Por Hildegard Angel, em seu blog.
Publicado em 20/02/2014
Neste momento extremamente grave em que vemos um golpe militar caminhar célere rumo a um país vizinho, com o noticiário chegando a nós de modo distorcido, utilizando-se de imagens fictícias, exibindo fotos de procissões religiosas em Caracas como se fosse do povo venezuelano revoltoso nas ruas; mostrando vídeos antigos como se atuais fossem; e quando, pelo próprio visual próspero e “coxinha” dos manifestantes, podemos bem avaliar os interesses de sua sofreguidão, que os impedem de respeitar os valores democráticos e esperar nova eleição para mudar o governo que os desagrada, vejo como meu dever abrir a boca e falar.
Dizer a vocês, jovens de 20, 30, 40 anos de meu Brasil, o que é de fato uma ditadura.
Se a Ditadura Militar tivesse sido contada na escola, como são a Inconfidência Mineira e outros episódios pontuais de usurpação da liberdade em nosso país, eu não estaria me vendo hoje obrigada a passar sal em minhas tão raladas feridas, que jamais pararam de sangrar.
Fazer as feridas sangrarem é obrigação de cada um dos que sofreram naquele período e ainda têm voz para falar.
Alguns já se calaram para sempre. Outros, agora se calam por vontade própria. Terceiros, por cansaço. Muitos, por desânimo. O coração tem razões…
Eu falo e eu choro e eu me sinto um bagaço. Talvez porque a minha consciência do sofrimento tenha pegado meio no tranco, como se eu vivesse durante um certo tempo assim catatônica, sem prestar atenção, caminhando como cabra cega num cenário de terror e desolação, apalpando o ar, me guiando pela brisa. E quando, finalmente, caiu-me a venda, só vi o vazio de minha própria cegueira.
Meu irmão, meu irmão, onde estás? Sequer o corpo jamais tivemos.
Outro dia, jantei com um casal de leais companheiros dele. Bronzeados, risonhos, felizes. Quando falei do sofrimento que passávamos em casa, na expectativa de saber se Tuti estaria morto ou vivo, se havia corpo ou não, ouvi: “Ah, mas se soubessem como éramos felizes… Dormíamos de mãos dadas e com o revólver ao lado, e éramos completamente felizes”. E se olharam, um ao outro, completamente felizes.
Ah, meu deus, e como nós, as famílias dos que morreram, éramos e somos completamente infelizes!
A ditadura militar aboletou-se no Brasil, assentada sobre um colchão de mentiras ardilosamente costuradas para iludir a boa fé de uma classe média desinformada, aterrorizada por perversa lavagem cerebral da mídia, que antevia uma “invasão vermelha”, quando o que, de fato, hoje se sabe, navegava célere em nossa direção, era uma frota americana.
Deu-se o golpe! Os jovens universitários liberais e de esquerda não precisavam de motivação mais convincente para reagir. Como armas, tinham sua ideologia, os argumentos, os livros. Foram afugentados do mundo acadêmico, proibidos de estudar, de frequentar as escolas, o saber entrou para o índex nacional engendrado pela prepotência.
As pessoas tinham as casas invadidas, gavetas reviradas, papéis e livros confiscados. Pessoas eram levadas na calada da noite ou sob o sol brilhante, aos olhos da vizinhança, sem explicações nem motivo, bastava uma denúncia, sabe-se lá por que razão ou partindo de quem, muitas para nunca mais serem vistas ou sabidas. Ou mesmo eram mortas à luz do dia. Ra-ta-ta-ta-tá e pronto.
E todos se calavam. A grande escuridão do Brasil. Assim são as ditaduras. Hoje ouvimos falar dos horrores praticados na Coreia do Norte. Aqui não foi muito diferente. O medo era igual. O obscurantismo igual. As torturas iguais. A hipocrisia idêntica. A aceitação da sobrevivência. Ame-me ou deixe-me. O dedurismo. Tudo igual. Em número menor de indivíduos massacrados, mas a mesma consistência de terror, a mesma impotência.
Falam na corrupção dos dias de hoje. Esquecem-se de falar nas de ontem. Quando cochichavam sobre “as malas do Golbery” ou “as comissões das turbinas”, “as compras de armamento”. Falavam, falavam, mas nada se apurava, nada se publicava, nada se confirmava, pois não havia CPI, não havia um Congresso de verdade, uma imprensa de verdade, uma Justiça de verdade, um país de verdade.
E qualquer empresa, grande, média ou mínima, para conseguir se manter, precisava obrigatoriamente ter na diretoria um militar. De qualquer patente. Para impor respeito, abrir portas, estar imune a perseguições. Se isso não é um tipo de aparelhamento, o que é, então? Um Brasil de mentirinha, ao som da trilha sonora ufanista de Miguel Gustavo.
Minha família se dilacerou. Meu irmão torturado, morto, corpo não sabido. Minha mãe assassinada, numa pantomima de acidente, só desmascarada 22 anos depois, pelo empenho do ministro José Gregory, com a instalação da Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos no governo Fernando Henrique Cardoso.
Meu pai, quatro infartos e a decepção de saber que ele, estrangeiro, que dedicou vida, esforço e economias a manter um orfanato em Minas, criando 50 meninos brasileiros e lhes dando ofício, via o Brasil roubar-lhe o primogênito, Stuart Edgar, somando no nome homenagens aos seus pai e irmão, ambos pastores protestantes americanos – o irmão, assassinado por membro louco da Ku Klux Klan. Tragédia que se repetia.
Minha irmã, enviada repentinamente para estudar nos Estados Unidos, quando minha mãe teve a informação de que sua sala de aula, no curso de Ciências Sociais, na PUC, seria invadida pelos militares, e foi, e os alunos seriam presos, e foram. Até hoje, ela vive no exterior.
Barata tonta, fiquei por aí, vagando feito mariposa, em volta da fosforescência da luz magnífica de minha profissão de colunista social, que só me somou aplausos e muitos queridos amigos, mas também uma insolente incompreensão de quem se arbitrou o insano direito de me julgar por ter sobrevivido.
Outra morte dolorida foi a da atriz, minha verdadeira e apaixonada vocação, que, logo após o assassinato de minha mãe, precisei abdicar de ser, apesar de me ter preparado desde a infância para tal e já ter então alcançado o espaço próprio. Intuitivamente, sabia que prosseguir significaria uma contagem regressiva para meu próprio fim.
Hoje, vivo catando os retalhos daquele passado, como acumuladora, sem espaço para tantos papéis, vestidos, rabiscos, memórias, tentando me entender, encontrar, reencontrar e viver apesar de tudo, e promover nessa plantação tosca de sofrimentos uma bela colheita: lembrar os meus mártires e tudo de bom e de belo que fizeram pelo meu país, quer na moda, na arte, na política, nos exemplos deixados, na História, através do maior número de ações produtivas, efetivas e criativas que eu consiga multiplicar.
E ainda há quem me pergunte em quê a Ditadura Militar modificou minha vida!
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depois de um depoimento desses nao precisa dizer mais , so nao ver quem nao quer. e muitos imbecis por ai afora acredita nessa imbecilidade , e pior de tudo que acredita. um bando de jovens babacas desde lutar para defender a democracia , esses imbecis lutando para derrubar governos, vai se idiota la no inferno. é 64 nunca acabou , sempre vamos viver a sombra dessa maldita ditadura a nossa porta , sempre a democracia ta correndo risco. mas depois dessa lei de proteçao aos assassinos da ditaduta e nunca apurou nada, nem condenou ninguem , vamos esperar o que. eles sempre vao achar que sao invenciveis.
Só para citar a imbecilidade das perseguições que ocorriam, eu fiz Engenharia Mecânica numa cidade pequena do interior de São Paulo no período 1969-1973 e muitos anos depois fiquei sabendo que em uma das “repúblicas”, que comumente montávamos por sermos estudantes de fora da cidade, houve uma “averiguação” policial em que um colega da faculdade teve que explicar muiiiito bem direitinho que um livro de Bomba Hidráulica (uma das cadeiras do curso) não era de um livro subversivo/comunista...
Há, tivemos também alguns colegas que ficaram “desaparecidos” por um bom tempo, mas que felizmente retornaram ao nosso convívio, só que “bem calados”...
Triste época!
E ainda temos que aturar um jornalismo canalha, o que ainda é uma expressão muito leve para nominar aqueles que dizem que por aqui tivemos uma “Ditabranda”.
caro fernando,
maldito fantasma do golpe de 64 que continua a nos assombrar!
desde a redemocratização consentida por um pacto de lesa pátria que a sociedade brasileira nunca exorcizou seu passado recente. embora deva-se elogiar a instalação da comissão da verdade no país, ela não ganhou corações e mentes do nosso povo.
não tem outra, se não aprovarmos a lei de médios já já, o país continuará o mesmo sem saber de sua história, apesar dos avanços consistentes dos governos trabalhistas de lula e dilma.
morei também em república na época, geraldo. estudava engenharia civil na poli de campina grande. a mesma coisa acontecia por lá. tive um colega que, por várias vezes, era retirado de sala de aula pra prestar esclarecimentos nos órgãos do exército por ter feito pichações quando estudante secundarista na cidade do crato, ceará.
Minha cara Hilde lembro sempre que o assunto é tocado, na sua mãe. Passo sempre que necessário, no túnel que tem o nome dela. Moro na Rocinha. A ditadura não acabou. Haja vista os casos de barbárie da PM. A sua angústia, sei que é muito grande por ser a única sobrevivente da família. Como citou a sua irmã, mas ela ficou longe e a distância apaga muita coisa falando em sentimento. Sou muito solidária a você pois vivi também aquela época. Mas, aos poucos tudo virá à tona ou semitona, sem falar em música.