Cadê o Lula? O Tio Ivo ajuda a explicar

Eu era guri, numa vila no Lins de Vasconcellos, no subúrbio, e como toda a garotada daquela época jogava bola na rua de paralelepípedos, sem que as pedras ou o meio-fio fossem empecilho para os nossos “rachas” de cinco ou seis para cada lado.

Éramos adolescentes todos, embora os tamanhos variassem, com uma única exceção: o Tio Ivo.

Tio Ivo era “coroa” e, além de “coroa”, cardíaco (que desgraça, agora sou as duas coisas) mas teimava em jogar bola com a gente, para desespero do Sérgio, seu filho, preocupado com a saúde do pai. Como Sérgio não era um guri como nós e não andávamos com ele, por ele ser “adulto” (até casado era!) não dávamos bola para ele, mas para o Tio Ivo, que além de jogar bola, sabia ensinar o corte do papel fino certo para balão pião, travesseiro, caixa e outras incorreções que fazíamos à época dos politicamente incorretos.

Mas volto ao futebol. O Tio Ivo jogava, mas de “beque parado”. Paradão mesmo, lá em frente ao gol marcado com chinelos.

Sua principal função não era jogar, mas dizer como deveríamos jogar.

Volta e meia, quando o adversário estava com a bola, a gente escutava o vozeirão lá de trás: “volta, deixa esse sozinho que a natureza marca ele”.

Não dava outra: o cidadão a quem faltava talento se atrapalhava e não ia muito em frente.

Quando (não) vejo o Lula nestes dias tragicômicos finais do golpe que já se deu, não cesso de lembrar do Tio Ivo.

Não que seja falsa sua rouquidão no 1º de maio, mas ela de fato não dura dez dias.

A cena da resistência pessoal é de Dilma.

A da resistência política é dele.

Como o Tio Ivo, ele não tem que ir na bola, tem que esperar a bola vir nele.

E sabe que o maior inimigo do golpe é o que o golpe coloca diante de Temer.

Sabe que é ele, e não Dilma, que pode servir de referência ao povo brasileiro – e até mesmo a forças políticas convencionais.

Ela está desempenhando seu papel com coragem e dignidade, mas o papel é dela, não dele.

Não quando ele demorou tanto a se tornar-se ministro não por capricho, mas por necessidade política de  comandar,até mesmo para descartar a possibilidade de conflitos com a Presidente.

Lula está preparado para um quadra de sofrimento pessoal. Não tem ilusões de que não possa ser vítima de uma violência pessoal, nestes primeiros dias, mas sabe que isso não é tão simples, pela reação que acarretará, aqui e pelas relações internacionais que cultivou.

Mas também entende que tem de se preservar como é dever de um general não descer ao campo raso da batalha, salvo quando esta batalha é a última.

Não que a espada não lhe dê comichões à mão.

É porque a vitória lhe dá mais comichões ainda.

Como o Tio Ivo, sabe que sua função não é nas bolas perdidas.

É a de fazer ganhar o jogo.

Fernando Brito:

View Comments (45)

    • Não sou entendido em Direiro, contudo tenho absoluta certeza, que se Temer vier ocupar interinamente o lugar de Dilma, até o julgamento final, pelo Senado, não poderá mexer nos ministerios, nem demitir ministros. Ele esta colocando o carro n frente dois bois.

      A presidenta de fato e de direito continua sendo Dilma.

      P.S - Fico atento porque em se tratando de Golpe pode-se tudo e ainda com Gilmar naquele lugar...

  • Exato, pois quem vai marcar o "governo" de ocupação é a natureza !

    "Governo" que não ocorrerá, assim como os muitos gols que não ocorreram, uma vez que o Tio Ivo estava lá, para despachar a bola pra longe. Pra desespero dos coxinhas que apreensivos já perceberam que compraram um jabuti.

      • Na oração não há sinal de interrogação
        Para impedir o Lula de ser Ministro, o Supremo não se autolimitou

  • Somos os últimos a libertar os escravos. Esse foi o destino do Brasil. Somos um país de natureza esplendida, mas de uma elite selvagem. Fiquei perplexo com a decisão do Maranhão de interromper o Golpe mas fiquei receoso com o restante do governo Dilma. Nenhum governo que se instalar no Brasil terá condições de governá-lo. Agora é a vez dos escravagistas, e tenho certeza que é nele que vão cavar a sua sepultura junto com a Mídia e com o judiciário. O Brasil necessita passar por isso para conhecer o seu passado e seu presente e para definir o seu futuro. Não há desculpa para o que fazem com essa nação e não podemos ser mais civilizados, quando fazem 500 anos que eles não são. Não aceitaremos ser escravos.

    • Sr. Renato, sua colocação merece reflexão. A exemplo disso é o episodio dos deputados golpistas que estavam no avião e foram vaiados ou criticados pelas mulheres. Concluimos que os gospiltas, os traidores na verdade são covardes. Quaisquer situações que se achem inferiorizados, apelam logo para o aparelho policial.Tenho certeza que em outra situação a reação deles, como representantes do povo pois foram eleitos pelo voto, teria sido diferente. Eis aí o que se deduz - viver num pais onde impera o estado democratico de direito e bem diferente onde impera o estado de excessão da direita.Isso é somente o começo outras ocorrencias virão e que esta sirva de exemplo para todos.

  • A LONGA TRADIÇÃO DO STF ( Para quem ainda acredita neles )

    Em 1936, o Supremo Tribunal Federal negou habeas corpus a Olga Benario Prestes, permitindo que ela, comunista, judia e grávida, fosse deportada para a Alemanha nazista, onde viria a ser assassinada num campo de concentração.

    E em 1967, o Supremo Tribunal Federal negou o pedido de extradição do carrasco Franz Paul Stangl para ser julgado na Polônia, pelos crimes cometidos nos campos de Sobibor e Treblinka. Optou por autorizar extradição para a Alemanha, na condição de que Stangl não cumprisse prisão perpétua.

    Em 1946, o Supremo Tribunal Federal desconheceu recurso contra a cassação do registro do Partido Comunista do Brasil. E o PCB foi fechado em plena democracia.

    Em 1947, o Supremo Tribunal Federal negou recurso contra a cassação dos mandatos dos parlamentares do PCB. E assim foram cassados Luiz Carlos Prestes, Jorge Amado, Carlos Marighella, Aparício “Barão de Itararé” Torelli e tantos outros (por uma das vagas abertas, tornou-se vereador em São Paulo o funesto suplente Jânio da Silva Quadros).

    Em 1949, o Supremo Tribunal Federal negou habeas corpus ao chefe da Igreja Católica Brasileira, numa disputa com a Igreja Católica Apostólica Romana. E assim foi suspensa a liberdade de culto prevista na Constituição.

    Em 1968, expurgado de três homes honrados (Vitor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva), o Supremo Tribunal Federal passou a conviver bovinamente com o arbítrio do AI-5.

    Em 1971, o Supremo Tribunal Federal sancionou o decreto 1.077/70, que estabelecia a censura prévia, contra o voto corajoso do ministro Adauto Lúcio Cardoso.

    Em 1999, o Supremo Tribunal Federal mandou soltar o banqueiro ladrão Salvatore Cacciola.

    Em 2008, o Supremo Tribunal Federal mandou soltar o banqueiro (…) Daniel Dantas.

    Em 2010, o Supremo Tribunal Federal denega ação da OAB que buscava anulação do perdão concedido aos torturadores da ditadura militar pela Lei 6683/79.

    Em 2011, o Supremo Tribunal Federal mandou soltar o médico estuprador Roger Abdelmassih.

    Em 2012, o Supremo Tribunal Federal condenou e execrou publicamente José Dirceu, José Genoíno e João Paulo. Sem provas. Porque teriam “o domínio do fato”.

    Em 2013, o Supremo Tribunal Federal revogou a Lei de Imprensa da ditadura. E junto com ela o Direito de Resposta, acertando suas contas com a Rede Globo.

    Em 2016, depois de dormir durante seis meses sobre uma ação para afastar o presidente corrupto da Câmara dos Deputados, o Supremo Tribunal Federal só agiu depois de consumado o golpe contra a presidenta constitucional do País.

    (Dedicado aos ministros Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Vitor Nunes Leal, jamais ali igualados".

    Com créditos para o GGN.

  • A única maneira dessa direita psicopata e vendilhona do patrimônio brasileiro governar é assim: dando golpe. Por que na urna, iriam apanhar de novo. São tão ladrões que roubam até o cargo de presidente.

  • Fernando, mais uma vez vc nos brinda com uma crônica inteligente, elegante e particularmente generosa. Generosa com o grande líder Luis Inácio Lula da Silva. Homem digno e sábio. Mas, embora deseje correta sua análise acerca da ausência do Lula nesse momento, temo que o motivo seja outro. Lula nunca imaginou-se líder de um processo de transformação social que implicasse em conflito e enfrentamento de classes. Sua natureza é conciliadora, pacífica, racional e baseada na razoabilidade. Ele acredita, e em parte provou ser possível, que a sociedade possa avançar democraticamente em suas conquistas, beneficiando a todos, indistintamente, e hoje percebe seu fracasso. A elite rompeu esse pacto que Lula tentou construir e foi a campo para um enfrentamento de luta de classes. Vieram para o tudo ou nada, e Lula não se vê como esse dirigente, capaz de conduzir uma luta nesses marcos. E ele sabe disso, porque essa não é a sua natureza. Isso não o diminui, mas o consagra ainda mais. Lula será sempre nossa referência, a exemplo de Vargas e Brizola. A ausência de Lula talvez leve-nos, inusitadamente, a deixarmos de ficar aguardando que um um grande líder surja e se ofereça a nos orientar, obrigando-nos a encontrar os caminhos coletivamente em instâncias como o Povo Sem Medo e a Frente Brasil Popular. Essa novidade política nos obrigará a um longo aprendizado, e talvez nos livre para sempre dos velhos caciques e seus conchavos políticos tão ao feitio dos Lupi, Rui Falcão, e cia. A luta continua e Lula estará sempre ao nosso lado, com o respeito e a admiração que lhe devotamos.

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