Colheita macabra

Não conheço a Paris de hoje, nunca pus os pés por lá. Mas, pela dor,  acabamos todos, neste instante ali bem perto, diante de tamanho morticínio.

Mais ainda porque, se não pus os pés, levou-se à velha Paris a minha cabeça, conduzida pela mão apaixonada de Victor Hugo, por tudo o que a cidade significou na história humana,  e a quem ele declarava seu amor incondicional:

Pode-se dizer que Paris tem as virtudes do cavalheiro: é sem medo e sem censura. Sem medo, ele o prova diante do inimigo.Sem mancha, prova-o diante da história. Teve, por vezes, a cólera: será que o céu não tem vento? Como os grandes ventos, as cóleras de Paris são saneadoras. Depois do 14 de julho, não há mais Bastilha; depois do 10 de agosto (de 1972, a tomada popular do palácio real), não há mais realeza. Tempestades justificadas pela amplificação do azul.”

Não há um que não chore aqueles jovens, que não fizeram nada para ofender ninguém. Mas já são tantos mortos, os das torres gêmeas, os do avião russo, agora os franceses, e os milhares e milhares em Cabul, Damasco, Bagdá e por tantos lugares que já não nos é permitido só chorar: é preciso falar e agir.

O presidente François Hollande acaba de responsabilizar o “Estado Islâmico” – repito, não é Estado, nem Islâmico – pelo ato de barbárie. Não basta prometer resposta implacável, porque, para ser implacável mesmo,  há de ser lúcida e não uma primária “vingança”.

Pois é preciso entender o que cria esta monstruosidade.

E me socorro de novo do grande herói francês, sobre o que ele dizia do fundamentalismo religioso, para pensar:

Aqui, uma pergunta. Será que estes homens são maus? Não. Que é que eles são, pois? Imbecis. Ser feroz não é difícil, para isto basta a imbecilidade. Então, será que nasceram imbecis? De forma alguma. Algo os tornou assim. Acabamos de dizê-lo. Embrutecer é uma arte.

A segunda metade do século 20 foi a do fim completo do colonialismo, na Ásia, na Arábia, na África, até nos pequenos protetorados da América Central e do Caribe. Em alguns poucos, a guerra os libertou, como no Vietnã, mas na maioria das vezes a luta pela independência não virou confronto total: ficara evidente que o tempo da dominação colonial passara.

Daquilo sobrou pouco: uma chaga remanescente, dolorosa, a dos palestinos, a quem nunca se permitiu deixar rebrotar na terra as raízes.

Aqueles povos foram aprendendo, com seus erros, acertos e distrofias, a viver sendo de novo seus próprios senhores. Fizeram ditadores? Sim, os fizeram, como aqui os tivemos e nunca nos enviaram tropas para libertar-nos e dar-nos a democracia. Ao contrário, deram alfanges aos que quiseram desabrochar as primaveras que começamos a descobrir.

A primeira década e meia do século 21, ao contrário, tem sido a da intervenção, a da ocupação, o das bombas e mísseis “inteligentes” que iam exterminar as imaginárias “armas de destruição em massa”, mas que atingiram em cheio as estruturas de poder e de convívio – torto, defeituoso, autoritário – que tinham minimamente organizado.

Nunca hesitaram, para isso, em valer-se da fé obscura e fanática. Criaram os Bin Laden e os grupos que virariam o Isis. Não raro, até, lhes enviaram dinheiro, armas e até mesmo alguns de seus cidadãos mais tresloucados, ávidos por viver uma espécie de sacerdócio bélico.

A colheita macabra disso é a noite de ontem em Paris, como outras safras já se colheram em Nova York e nos céus do Sinai.

Pagaram-na com a vida os jovens de Paris. Paga-la-ão em vida os milhões de refugiados com que a guerra que o Ocidente moveu em seus países fez abarrotar a Europa, contra os quais vão se elevar os níveis de xenofobia, discriminação e maus tratos.

Para ficarem em paz talvez nem lhes adiante fazer como seus antepassados tiveram de fazer na Idade Média, tornando-se cristão novos: abjurar da fé, da cultura, da língua, como fizeram os meus Nogueira, os seus Pereira, Carneiro, Lobo, Moreira.

Porque no Ocidente “civilizado” também espalharam-se os esporos do fundamentalismo, que é o fascismo, o ódio ao diferente, o direito auto-concedido de achar-se o puro e aos demais impuros, infiéis.

Semeou-se o ódio, revolveu-se o chão com guerras, brotou o ressentimento, floresceu a insânia e e nos nauseia o cheiro fétido da flor do terror.

Não há caminho para a paz que não seja o do respeito à autodeterminação dos povos.

Todos os outros levam à violência e a violência é uma arma que acaba por ferir a mão de quem a brande.

Fernando Brito:

View Comments (59)

  • As versões dos dirigentes franceses são tao rápidas que da pra desconfiar que isso era previsível e evitavel. Uns malucos assumem que foram eles e todos acatam. Eita primeiro mundo.

    • Assim é o procedimento nos países ditos democráticos, meu caro Albuquerque. Imagine como seria se não o fossem.
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      Nova York, 11set2001, Madrid, 11mar2004, Londres, 07jun2005, Boston, 15abr2013, Paris, 07jan2015, compõem uma sucessão de atentados altamente suspeitos.
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      O mais provável é que, como os anteriores, o atentado de ontem também tenha sido planejado pelos serviços secretos dos países .... ditos democráticos e respeitadores dos direitos humanos.
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      Não devemos nos esquecer do que afirma o linguista e filósofo Noam Chomsky no livro "Piratas e Imperadores, Antigos e Modernos: O Terrorismo Internacional no Mundo Real".
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      "As duas maiores organizações terroristas do planeta são o governo dos Estados Unidos e o governo de Israel".

    • Não importa que versão haja sido divulgada, existe uma questão de fundo, uma guerra entre duas civilizações, se há a possibilidade de considerar o que propõe o EI como civilizado.
      Esmagar o EI, esmagar a todos que através da violência se oponha aos direitos fundamentais do homem, não há outro caminho, infelizmente haverá o muro invisível que irá separar este povo ainda medieval do ocidente.
      Ferir a França, independente de pisar ou não em Paris , significa ferir o mundo ocidental que tanto trabalho nos dá mas que ainda é o melhor.
      Outra questão muito relevante é que esses "animais" foram recebidos pelo povo e pela civilização francesa, que como hidrófobos cães mordem a mão que os alimenta.
      Lembremos, contudo, que as mãos do Império sempre está por trás destes grupos.

      • Enquanto isso, do terror instigado e patrocinado pelos governos dos EUA - democratas, por supuesto -, na Indonésia, há 50 anos, a mídia hegemônica nada diz.
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        Nada menos que 1 milhão de indonésios foram assassinados com apoio total dos Estados Unidos, da Inglaterra e de outros países europeus. Todos países ditos democráticos e respeitadores dos direitos humanos.
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        Dá uma lida no texto do Marcelo Justo, "A medio siglo del terror-
        Estados Unidos comprometido hasta la médula en el genocidio indonesio", em http://www.rebelion.org/noticia.php?id=205592

  • Os nossos babacas fascistas, estão prontos! Só lhes faltam oportunidade para expô suas barbárie. A grande Mídia não teve trabalho pra criá- los. Mas vá lá e pergunta se são fundamentalistas? Dirão que não! Mas se espelham em BOSTONARO.

  • Nada justifica semelhante barbárie. Mas qual seria a nossa reação se viessem em nosso país e bombardeassem escolas e hospitais dizimando também centenas de inocentes? Sementeira e colheita.

      • Então, me diga, Iskra. Por que é que a maior maquinaria militar e de guerra que a humanidade já viu não conseguiu tal intento?
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        Já faz mais de um ano que o governo do ditador Obama decretou a invasão - ilegal, à luz do direito internacional - do território sírio por suas tropas, para bombardear o EI e o grupo terrorista ainda tem capacidade para armar essa série de atentados a milhares de quilômetros da Siria?
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        Não te parece muito estranho tudo isso?

  • O dito estado Islâmico é fruto da violência promovida pelos países democráticos no oriente médio
    . Que por coincidência são .....capitalista ... Ops coincidências não existem

  • Concordo com praticamnete tudo o que voce diz Brito. E tem mais, conheço parte do oriente medio, sou cristao, branco classe media. E digo a forma como vivem os. Palestinos, em situacao forcada pelo ocidente via Israel, é inaceitável. E, eu com certeza ja teria feito loucuras, quando decadas após decadas viver sob a batuta militar de outra potência. Fugindo, por exemlo, no dia a dia por simples infracao de transito.....ao transitar de uma cidade para outra passando por areas com check points, a cada Km....isto com certeza cada vez sera pior e cada país que for favoravel a estas situacoes , o seu povo vai correr risco, sim...infelizmente. E mais o problema do oriente medio é o petroleo......petroleo, petroleo

  • Meus caros, concordo com a análise, mas pretendo aqui sair do politicamente correto e falar de uma chaga que quase todos fogem, como se ela não fosse parte do problema. Me refiro as religiões, todas elas, que em última instância são justificativa moral e ética a essas e a inúmeras outras barbáries cometidas através da história. Os matadores de hoje e os de ontem que mataram, matam e matarão em nome de deus, se fundamentam na idéia, indissociável a figura de deus, da infalibilidade. Se eu sou infálivel tudo se justifica. O mundo para ser um lugar justo precisa do fim de todas as opressões, da opressão do capital, da opressão machista, da opressão racista, da opressão de gênero, enfim de todas as opressões, inclusive da opressão das religiões que é um dos principais fundamentos de grande parte das demais opressões. Imagine um mundo sem religião...

  • quem criou o estado islâmico, quem lhe fornece armas e foram trieinados por quem