Como a história desenha o pensamento dos líderes

De Nílson Lage, sobre a matéria do Folha  em que Lula diz que, após ler a biografia de Getúlio Vargas,  que ficou “assustado como um setor da imprensa brasileira e da elite tratavam o Getúlio. Se vocês leem a biografia, vocês têm a impressão que é hoje que está acontecendo”:

“Acredito que, enfim, nessa campanha, Lula e pelo menos parte significativa do PT assumem conscientemente o papel de herdeiros do trabalhismo brasileiro, forma própria de gestão que se apoia no pragmatismo e na tradição positivista de Getúlio Vargas, preservando o duplo compromisso com os trabalhadores e com a Pátria, sem o viés étnico dos nacionalismos europeus. 
Trata-se de um passo importante porque o partido, na sua origem, foi tolerado como “novo trabalhismo” formado em “modernas estruturas de produção transnacionais”, com forte matriz católica e, portanto, capaz de “confrontar o populismo e o comunismo” que, na visão de Goibery, fundiam-se no velho PTB de Jango e Brizola.
É exatamente o que a elite paulista não queria.”

Concordo, em gênero, número , grau e experiência de vida política, com o diagnóstico de Lage.

Mas também tenho dito aqui que, por essa origem, o PT sempre foi contaminado por duas distorções, que lhe cobraram alto preço.

A primeira, um “purismo” que é, em si, a apropriação da ideia de ética como um valor pequeno-burguês,  alinhado única e exclusivamente ao comportamento individual, o que abandona a dimensão social e política da ética, e reduz este conceito apenas a um paupérrimo significado moral.

O  comportamento “ético” pessoal – embora seja de minha formação, índole e convicção – é inútil e até hipócrita quando tergiversa diante do necessário à construção de uma sociedade onde não se viole o significado real da ética que é o de conduzir ao que serve ao bem-estar, à felicidade e à igualdade entre os seres humanos em sua vida coletiva.

Vou traduzir isso de maneira simples: o “tenho jatinho porque posso” de Tasso Jereissati ou “eu tenho direito ao meu Rolex” do assalto a Luciano Huck não podem ser considerados imorais ou violações de uma imaginária “ética pessoal” mas são cruelmente antiéticos quando se trata de pessoas que desempenham, na política e na mídia, papéis sociais em  uma comunidade miserável, a mesma que lhes deu avião e relógio, como dera os talheres de prata ao Bispo Myriel, os quais Jean Valjean furta em Os Miseráveis.

O segundo viés petista, que Lage admite agora estar sendo corrigido  é o de um certo economicismo, crendo que a simples elevação do padrão de vida dos trabalhadores os conduziriam, sem contradições, a um alinhamento político invencível.

De alguma forma, este pensamento se assemelha ao do “sindicalismo de resultados” que gerou a Força Sindical, de Paulinho (que hoje já dispensa comentários) e à indevida apropriação neoliberal dos versos de Go Back, do Torquato Neto: “só quero saber do que pode dar certo/não tenho tempo a perder”.

O polêmico professor de Filosofia Renato Janine Ribeiro, da USP, numa entrevista ao Brasil Econômico, outro dia, fez um resumo cru disto:

“Vocês não se escandalizam com o fenômeno da fome?”. O jornal espanhol “El País” publicou um artigo sobre a busca do governo pelos chamados “brasileiros invisíveis”. Pessoas extremamente difíceis de localizar, que muitas vezes não têm documentos, e que poderiam ser incluídas no Bolsa Família, mas que não têm acesso porque estão muito, muito invisíveis para o Estado. Isso é um empreendimento ético de primeira grandeza. E olha que “El País” é um jornal simpático ao tucanato, não gosta do PT. Quando li esse artigo, me perguntei: “Como é que o PT não usa esse tema na campanha?”. O PT priorizou a inclusão pelo consumo, o que tem inúmeras vantagens. Uma delas é a de que havia uma demanda reprimida de gente que queria comprar, e não podia. E esse consumo represado era de coisas essenciais, como comida, geladeira… Depois veio, por extensão, o consumo de itens menos essenciais — maquiagem, roupas melhores. Mas o PT não politizou essa inclusão pelo consumo e isso levou boa parte dos beneficiários a acreditar que eles não devem nada às políticas públicas. Uma parte até vai votar em outros candidatos porque não sente que deve ao PT esse acesso ao consumo — pensa que é graças ao esforço individual deles. Os beneficiários nem cogitam que, se a economia estivesse em recessão prolongada, eles ainda estariam na miséria”.

O segundo mandato de Dilma, caso se confirme, terá de ter esta politização, porque não se deve duvidar nem por um instante que o Brasil não vá sofrer, em escala ainda mais intensa, o ataque que passou a sofrer desde que, com o salto obtido durante a crise de 2008, tornou-se um “player” mundial.

Eu espero – e a esta altura, como Nílson Lage, já até creio – que Dilma e Lula (mais ela do que ele, aliás) não acreditem que esta campanha política vá terminar no dia da eleição de primeiro ou de segundo turno. Ela seguirá a cada dia – o seguinte às eleições, inclusive – até que o Brasil renove suas instituições políticas, partidárias e da comunicação e, com elas, um novo sentido de representação.

O que parece antevisto, na declaração que fez Dilma na entrevista aos blogueiros: “Terei um embate (político) mais sistemático; não serei mais tão bem comportada; me levaram para um outro caminho, que não era o que eu queria”

Ninguém quer, mas o próprio estancieiro e positivista Vargas, ao se converter em símbolo da afirmação do Brasil como Nação chegou ao 1° de Maio de 1954 com o discurso que talvez não quisesse, mas que lhe brotou consciência de  estar abrindo um país ao futuro:

” Não me perdoam os que me queriam ver insensível diante dos fracos e injusto com os humildes. Continuo, entretanto, ao vosso lado. Mas a minha tarefa está terminando e a vossa apenas começa. O que já obtivestes ainda não é tudo. Resta ainda conquistar a plenitude dos direitos que vos são devidos e a satisfação das reivindicações impostas pelas necessidades.Tendes de prosseguir na vossa luta para que não seja malbaratado o nosso esforço comum de mais de 20 anos no sentido da reforma social, mas, ao contrário, para que esta seja consolidada e aperfeiçoada.

Para isso não cabe nenhuma hesitação na escolha do caminho que se abre à vossa frente. Não tendes armas, nem tesouros, nem contais comas influências ocultas que movem os grandes interesses. Para vencer os obstáculos e reduzir as resistências, é preciso unir-vos e organizar-vos. União e Organização devem ser o vosso lema.

Há um direito de que ninguém vos pode privar, o direito do voto. E pelo voto podeis não só defender os vossos interesses como influir nos próprios destinos da nação. Como cidadãos, a vossa vontade pesará nas urnas. Como classe, podeis imprimir ao vosso sufrágio a força decisória do número. Constituís a maioria. Hoje estais com o governo. Amanhã sereis o governo.

 Não deveis esperar que os mais afortunados se compadeçam de vós, que sois os mais necessitados. Deveis apertar a mão da solidariedade, e não estender a mão à caridade.Trabalhadores, meus amigos, com a consciência da vossa força, coma união das vossas vontades e com a justiça da vossa causa, nada vos poderá deter.”

Este pedaço (imenso) do “populista” Vargas por muito tempo foi desprezado , talvez porque seja da perversa tradição brasileira sonegar ao povo a sua própria história.

Fernando Brito:

View Comments (28)

  • Belo artigo que ajuda a explicar o fenômeno Alckmin ainda ter 50% depois de tantas lambanças. As pessoas esquecem que boa parte da internet também pertence aos grandes jornais.
    Notem que o PT sempre teve algo em torno de 30% no estado de SP.

    Se nada for feito o PT terá uma rejeição tremenda em 2018 e perderá mesmo que faça um governo ótimo.

  • Hehehe! Ontem assisti algumas partes do debate em Sampa pelo Portal G1. E pelo o que observei apesar do já esperado e tradicional "Jogo Combinado" dos candidatos nanicos Gilberto Natalini(PV) e Walter Ciglioni(PRTB) para tentar blindar os candidatos tucanos. Desta vez, o Alckmin se ferrou. Foi ridículo ouvir ele defender a SABESP e afirmar que em São Paulo não falta água diante desta catástrofe ambiental! Vai entrar para a história como um dos momentos mais grotescos da política de São Paulo! Acho que até o Pinóquio ficaria envergonhado e não ousaria ir tão longe! E a repercussão negativa foi imediata nas redes sociais! O Alexandre Padilha(PT) teve bons momentos quando acusou o governo do PSDB por atrasar as obras do metrô por causa da corrupção na companhia. E quando disse que a polícia de São Paulo é a que mais mata, mas também a que mais morre! Além disso, pelo o que observo a campanha na rua engrenou de vez e empolgou a militância e os simpatizantes! Os vários minicomícios relâmpagos do Lula na região metropolitana estão muitos concorridos e causando impacto na cidadela tucana. Nesses últimos dias uma verdadeira blitz com a Dilma, o Lula e o Padilha neste “estado chave” desta eleição já parece estar provocando seus efeitos positivos. A Dilma, por exemplo, já tirou uma enorme diferença e empatou com a Marina Silva. O picolé-de-chuchu caiu incríveis 5 PONTOS em menos de uma semana! Resta saber se essa “onda” vai carregar junto o Padilha e o Suplicy. Sei não, mas ainda acho que São Paulo vai ter segundo turno! Tremei tucanos! Tremei! Padilha vem aí e de jaleco branco!

  • Pensei que ja havia presenciado tudo o que a Globo e Veja, pudesse fazer para acabar com o Partido dos Trabalhadores-PT e governadores do PT, mas este ano (2014), os metodos estão acima do encomendado.

  • Muito bom teu artigo. Eu diria que, todos os elementos mais esclarecidos de esquerda(por fortuna da sorte), deveriam se reunir numa corrente de esclarecimento da população que não teve esta sorte,e, diuturnamente, e voluntariamente, levasse a todo o povo educação e conhecimento, tanto de história, como ciencias sociais e físicas, eliminando o analfabetismo, e também,o analfabetismo político. É trabalhoso, mas seria a revolução social em andamento. Exige esforço mas traria a redenção de toda a população. A direita dirá que sou comunista!! É verdade. Logo, isto indica porque não gostam dos comunistas. Vai tirar o povo da dependência de suas esmolas e mentiras. Vai dar a eles o orgulho de ser uma pessoa.

  • POSITIVAMENTE, as reformas POLÍTICA, TRIBUTÁRIA, e REGULAMENTAÇÃO DA MÍDIA, são imprescindíveis no próximo Governo da Dilma, para que o Brasil avance na conquista da sua soberania. Os ataques orquestrados ali na frente, logo no fim das eleições, serão muito mais ardilosos e intensos, orquestrados pela turma do rentismo internacional e pelo pessoal com SÊDE DE ÓLEO E ÁGUA E PODER! Se preparem Dilma e PT, pois após as eleições é que realmente começará a batalha Brasileira, frente aos interesses da Europa, Israel e USA.

  • É isso que falta mesmo! Alfabetizar politicamente o povo braileiro. E não devemos atribuir essa tarefa gigantesca e trabalhosa somente ao governo, mas a todos os protagonistas da politica nacional dignos e patriotas e a nós mesmos, conversando principalmente com os jovens, com as mulheres, a grande maioria delas que são de classe baixa são mais renitentes face a politica, citar tudo o que contem esse post excelente e mais ainda. Sempre imprimo as boas matérias, cometo o pecado de mudar alguns termos de dificil compreensão para torná-los accessíveis a grande maioria das pessoas e panfleto, com delicadeza, sem impor nada e sempre com uma conversa preliminar para despertar o interesse de quem abordo. O PT deveria usar tantas dependencias que tem para fazer cursos com abordagem histórica e política, gratuitos e abertos a todos, sobretudo a essas pessoas, aos jovens que quase nada aprendem nas nossas escolas públicas.

  • MEIO SÉCULO se passou desde o suicídio de Getúlio Vargas e sua Carta Testamento continua atual. Isto mostra que apesar das mudanças, PARA MELHOR, que ocorreram, nos últimos 12 anos, graças aos governos comandados pelo PT, ainda é necessário o Brasil avançar e muito para alcançarmos a verdadeira independência, sonhada por Getúlio, e o bem estar para TODOS os brasileiros.

  • "Hoje estais com o governo. Amanhã sereis o governo."
    Esse GV não era fraco...

    • De fato, ele não era fraco, mas o povo, a quem ele enaltece, o fez fraco, alienado que foi pelo grande capital da época e sua mídia. Qualquer semelhança com a realidade atual, não é mera coincidência.

      • É mas não foi tão fácil, o povo colocou JK lá, depois Jango, Brizola no Rio, o Povo não é flor que se cheire, mas não é tão canalha. O jogo da direita e da CIA é que foi de doer!
        Retomamos o rumo, agora é botar o Pré-sal na educação e encher esse país de CIEPS, Céus, pontos de cultura e casas de cultura!
        Vai Dilma!

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