De Darcy Ribeiro para a Diva da Flip

Querida Diva,

As coisas demoram a chegar aqui, nesta aldeia cósmica onde eu vim passar a tal da curta eternidade, mas hoje cedo me trouxeram o vídeo onde você falou lá em Parati.

Pela primeira vez tive vontade de voltar praí, pra te dar um abraço bem apertado e te sapecar um beijo estalado.

Porque eu, que nunca quis ir embora e briguei o quanto pude para não morrer, andava meio desanimado quando me chegavam aqui, pelo éter, as bobagens que andam sendo ditas aí na nossa Terra.

Até um livro de um sujeito, não sei bem o nome dele, dizendo que não há racismo no Brasil apareceu aqui. Não falei nada porque acho que o rapaz escreveu em braille, por incapacidade de ver…

Mas quando vi você juntar tudo o que eu sempre amei na vida – negro, índio, mulher, escola, educação, pensar o Brasil –  e dizer, bem desaforada, que este país (meu grande amor) foi feito com a terra dos índios e o suor dos pretos, esqueci todas as asneiras que me contam  e tive vontade de  fugir do paraíso, aqui onde tenho a minha rede.

Quando eu ainda escrevia no papel – agora eu escrevo no ar, que maravilha, Diva! – falei que no  fazimento do Brasil, gastou-se  cerca de 12 milhões de negros, a principal força de trabalho de tudo o que se produziu aqui e de tudo que aqui se edificou. E falei, meio complicado, tudo o que você explicou melhor, com história do rio das freiras.

As atuais classes dominantes brasileiras, feitas de filhos e netos de antigos senhores de escravos, guardam, diante do negro, a mesma atitude de desprezo vil. Para seus pais, o negro escravo, o forro, bem como o mulato, eram mera força energética, como um saco de carvão, que desgastado era facilmente substituído por outro que se comprava. Para seus descendentes, o negro livre, o mulato e o branco pobre são também o que há de mais reles, pela preguiça, pela ignorância, pela criminalidade inatas e inelutáveis. Todos eles são tidos consensualmente como culpados de suas próprias desgraças, explicadas como características da raça e não como resultado da escravidão e da opressão. Essa visão deformada é assimilada também pelos mulatos e até pelos negros que conseguem ascender socialmente (não vê aquele  babaquinha lá de São Paulo?) , os quais se somam ao contingente branco para discriminar o negro-massa.

Ninguém, Diva, está inteiramente livre disso. Todos nós, brasileiros, “somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados.Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria”.

Quando eu quis, com o Brizola – ele passou aqui, com os filhos, ouviu você e falou, naquele jeito dele, para eu te dizer que não afrouxe o garrão – fazer os Cieps para essa criançada, como era você, lá em Londrina, eles falaram que era caro, que era luxo, que era demais. Eles acham que para as crianças negras, para as crianças da pobreza, basta a lama, para lhes deixar brancas a palma das mãos e a sola dos pés.

De vez em quando, porém, aparece como você para dizer para a gente que acha que ficou branquinha com aquele banho de rio,  que “a mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista”.

Precisamos, Diva, de muitas divas assim como você, que despertem uma crescente indignação contra esta herança maldita, porque é isso que  nos dará forças para, amanhã, conter os possessos e criar aqui, neste país, uma sociedade solidária.

Eu, que sempre fui por aí um homem de muitas divas, tenho agora,  daqui de longe, outra Diva por quem me apaixonei.

Fernando Brito:

View Comments (25)

  • Muito bom texto, como sempre, Fernando Brito; ligar Diva a Darci Ribeiro foi genial.

    • Ótimo texto mesmo. Só, Brito, não querendo ser chato, e já sendo um pouco, não use o exemplo das pessoas cegas no sentido de ignorantes. Kamel não é cego, é ignorante, é obtuso. Falando no Braille, um método de escrita utilizado pela grande maioria dos cegos, você os equipara a Kamel. É, naturalmente, ofensivo. eu mesmo sou cego e odeio as idéias desse sujeito.

  • Pois é... Implodiram o Brasil. Só sobraram cacos. Cacos como este maravilhoso depoimento e a imaginação/resposta do Brito. Consolo do domingo...

  • Que texto extraordinário, Brito!
    Uma comovente composição de palavras,
    um brado poético arrancado das trevas da escravidão que não se cala. Reviver Darcy é revisitar à súplica do gênio da raça nas senzalas dos esquecidos.

  • Texto muito lindo; dificil é segurar as lagrimas justas quando se é parte desse gigante que tanto amamos e tanto nos faz sofrer. Diva Guimarães ja tinha me emocionado essa manha quando li sobre o que ela havia dito. Obrigado, querido FB, você tb nos emociona e nos abraça com tua ternura e teu sofrimento que é tb nosso. Carrego sempre consciente minha pele construida e fruto da pele aviltada de meus irmaos e irmas para nunca esquecer que se existo é porque seres magicos, e por demais sofridos, construiram as ruas por onde ando, mesmo nos momentos em que ando ser saber muito pra onde ir ... :-)

  • Mudou o dia de tantos de nós, TOMARA que MUDE o OLHAR dos que ainda estão em CIMA de MUROS do PRECONCEITO que nem mais a VERDADE lhes toca!!

  • Palavra de habitante: Curitiba é provinciana, com um prefeito que tem nojo de pobre. O Paraná é um feudo de SP governada por um tucano herdeiro da high society (tipo um Aécio), acabou com a previdência dos servidores usando bala de borracha e não está nem aí pros indígenas!
    Não compactuo com nada disso, mas nfelizmente eu MORO aqui, né...
    Parabéns à Dona Diva, pela vida de luta! É uma inspiração!

    • * Infelizmente Moro aqui e sinto uma tristeza imensa quando alguém diz, com orgulho e superioridade, República de Curitiba, espero que um dia este pesadelo acabe!

    • Paraná sonha quando crescer se torna uma São Paulo. Aliás, um bairro higienopolis de São Paulo. O maior orgulho dos paranaenses é de sua brancura européia. A farsa a jato q deu o golpe, tirando direitos e empregos dos índios e negros, não poderia ter sido parida noutro lugar. Não por acaso o Paraná é feudo tucano. E Moro é o q é, um savonarola paranaense.

    • Lenita, MC é classe média. Pode não ser ideologicamente, mas tem o bolso classe média.

      • Por isso mesmo sua crítica é importante e ainda mais credível. É uma síntese correta do comportamento e dos valores de muitos brasileiros, infelizmente.

        • Todos somos classe média. E devemos fazer auto crítica. Por mais que não tenhamos compactuado com o golpe e uns até lutado contra, muitas vezes perpetuamos nos simples atos do dia a dia o racismo q destrói pessoas pelo simples fato de serem negros ou índios. Devemos sempre estar atentos a esse sentimento nefasto. Não superamos a escravidão. Ela ainda existe. O golpe foi prova cabal e insofismável. A sociedade brasileira está muito doente. Apenas as divas terão o condão de salva-lá. Sempre fui brizolista por sua fixação pela educação e por ser um grande homem honesto, digno e honrado. Lamentei profundamente não ter tido Brizola, presidente e Darcy, ministro da educação. O Nrasil só perdeu. Seria a verdadeira revolução....do amor.

  • Há pessoas que trazem em si todo um povo. Neste texto, de magnífica beleza, emoção e ternura, FB uniu duas almas que rescendem a povo, seu povo, nosso povo: Darci Ribeiro e D. Diva.

    Impressionante as últimas palavras proferidas por D. Diva: estudo até hoje, as pessoas me perguntam o que ainda quero, eu digo que estudo porque quero ler e raciocinar, entender o que está acontecendo com meu país, o que está acontecendo comigo. Grande professora!

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