Em 64, a ditadura também veio em nome da ordem e da liberdade.

Eu morava numa pequena rua do Méier, a Travessa Miracema, num apartamento térreo e tomava café da manhã, como sempre, com meu pai, num quartinho que era uma espécie de copa. E, como todos os dias, ouvíamos rádio, um portátil Semp, com sua capa de couro marrom e a novidade: “all transistor”, isto é, sem válvulas, como os caixotões.

Meu pai ergueu-se de súbito e saiu. O portão do prédio era baixo, como eram baixos os portões naquele tempo, e não se fechou. Fui atrás dele, assustado, segui-o pela calçada até que ele parasse. Parou e vi um tanque rolando preguiçosamente pela Rua Dias da Cruz, a principal do bairro.

Foi só o que vi do golpe na rua, pois fui corrido para dentro de casa.

Depois, vi livros e papéis sendo queimados e um “tio”, muito assustado, fazendo pouso lá em casa.

Minhas memórias infantis deste período são pequenas. Lembro do filho de uma professora, amiga de minha mãe, em dificuldades ou desaparecido, nem lembro mais.

Lembro da frase tristemente chistosa: “O que você acha? Eu não acho nada, porque o último que achou não acharam mais”. E da vizinha mais odiada do prédio, Madame Vila Kennedy, que se orgulhava de seu marido ser lacerdista e ter participado de remoção dos pobres para aquelas lonjuras da Zona Oeste.

Cresci sob a ditadura e talvez só pela idade tenha escapado do fim trágico que muitos jovens, poucos anos mais velhos, tiveram.

Alcancei a maturidade já nos estertores do regime e o que sofri não foram senão umas bordoadas e algumas ameaças em carinhas do CCC, o Comando de Caça aos Comunistas. Tenho uma delas até hoje, com um ridículo machado pingando sangue.

Talvez por ter visto o que foi um regime sem liberdades, eu as preze tanto e me arrisque a andar na contramão de alguns “libertários”  que, no seu barulhento autismo, não enxergam além de seus narizes empinados de donos da verdade.

A falta de lucidez política – natural até em muitos e imperdoável nos mais velhos – está abrindo caminho para os esgares autoritários.

Não, não estou me referindo aos facínoras miúdos que aparecem nas redes sociais defendendo a lei da selva, o moralismo udenista (pelo qual todo mundo é ladrão, inclusive eu, acusado de receber dinheiro estatal – não tem importância que não receba de fato um tostão – para defender um governo de natureza trabalhista e nacionalista, ainda que falho e imperfeito) e a demonização da política.

Falo do espanto do qual muitos não estejam tomados, como eu, ao ver que são cada vez mais inquestionáveis os movimentos que apontam para uma ruptura democrática no Brasil, como de resto em toda América Latina.

A pesquisa Datafolha, que este blog antecipou , em dois posts (aqui e aqui) é um escândalo contra a democracia, travestido de liberdade de informação.

Não, não é democrático promover pesquisas para aferir o grau de apoio ao fim da democracia, à tortura, ao fechamento de partidos e sindicatos, à censura aos meios de comunicação (que é algo totalmente diferente de seu controle social), ao fechamento do Congresso às prisões indiscriminadas e à revogação dos direitos fundamentais dos cidadãos.

Não tem finalidades sociológicas, mas propagandísticas, que nem mesmo dependem de que se forme uma eventual maioria  em favor destas monstruosidades.

É o sinal para que se formem, se é que já não estão formados, núcleos que visem sua legitimação política em torno do “restabelecimento da ordem”  que não está abalada, embora a mídia, como um partido único, apresente o país como em caos ou em chamas.

Com a prestimosa ajuda dos delirantes blocos do “nós somos a revolução” que nem mesmo sabem dizer que revolução seria esta.

A direita os trata bem, mesmo quando lhes bate e pede polícia, porque lhes dá um tamanho que não possuem.

Transforma-os em espantalhos a justificar o rebote autoritário.

Assistimos à sabotagem de um governo democrático e eleito e, pior, vemos que esse governo também o assiste, sem reação.

Reação não é um papelucho propondo que não tenha máscara em manifestação ou que se tire tal ou qual franquia dos movimentos sociais e dos eventuais protestos.

Reação é combate político, é esclarecimento da população, é desmascaramento de conspirações, é apelar para o que o povo brasileiro deseja: desenvolvimento, progresso, paz e o direito que meus filhos têm – como o seu jovem pai não tinha – de decidir para onde caminhar.

A liberdade não é o algoz das liberdades, mas a covardia o é.

Temos um gaguejante ministro da Justiça, que ouve calado os que se levantam contra os abusos serem chamados de incitadores da desordem, mas que não vai ter a coragem de ir a público indagar o que se quer com uma “pesquisa” que quer,  supostamente, detetar o volume de apoio à subversão da ordem democrática.

Leia isso de novo, por favor: o volume de apoio à subversão da ordem democrática!

Pois é disso que se trata e não uma simples curiosidade estatística, por jamais se fez isso ao longo de mais de 30 anos de democracia e de existência do Datafolha.

Por que agora?

Por que há um cheio de golpe cada vez mais forte.

Ontem, Fernando Henrique Cardoso, disse que país precisa de um “sacolejão”.

Que tipo de “sacolejão”?

O do voto, ao que parece, não está ao alcance deste desejo de “sacolejar”.

A pesquisa CNT divulgada hoje, que dá a Dilma  folgada vantagem (43,7%)  sobre a soma de Aécio (17%) e Eduardo Campos (9,9%) transfere para outros campos este desejo de “sacolejar”.

Os tolos que ajudam com provocações a este clamor por ordem talvez sejam mais infantis que eu, aos meus cinco anos, correndo a ver o que assustava meu pai.

Porque não quero o mesmo para meus filhos e porque não somos crianças tolas e assustadas.

Fernando Brito:

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  • A pesquisa do Datafolha é uma coisa muito séria. Se houvesse um Conselho de Defesa da Democracia, algo assim, deveria ser acionado para interpelar judicialmente os responsáveis pelo jornal. Sabemos que a Folha deu forte guinada que atingiu os limites da extrema direita. E estes limites começam a ser expostos em ação concreta contra a Democracia. Claro que há perguntas irrelevantes para tentar confundir, se o fato redundar em interpelação, mas será fácil neste caso demonstrar a essência da mensagem central que esta pesquisa busca introduzir na opinião pública. É preciso denunciar a pesquisa da Folha do modo que for possível, uma pesquisa desta dimensão não é ação política que se deva ignorar.

  • Pessoal, também não é o fim do mundo! Conversando com a minha avó, ela me explicou algumas coisas sobre a ditadura. Não havia baderna, não havia tantos crimes, a coisa era mais organizada.

    • kkkkkkkk....é sempre a mesma ladainha de sempre para que seja instalado um regime autoritário e sanguinário como o que dominou por aqui de 1964 a 1985, agora o inimigo não é mais o "comunismo" ( se bem que alguns retardados ainda insistem nessa tese bisonha e sofista para encorpar as fileiras do neofascismo vejista).

      Perseguição e tortura a opositores políticos, milagre econômico para a elite e setores da classe média (a classe trabalhadora continua esperando o seu pedaço do bolo até hoje), cassação de mandatos, terrorismo de Estado, proto-fascismo, concentração fundiária,patrulhamento-ideológico, apartidarismo....

      Esse papo de que não havia "baderna" é em parte verdadeiro, uma vez que o porrete e a bala comiam soltos para quem se levantasse contra a tirania governamental.

      Não vivi nessa época mas defender esse regime é pura psicopatia!!!!

      • Não é psicopatia, é liberdade de expressão. Talvez, alguns aqui, não saibam o que significa liberdade de expressão. Psicopatia é defender a mordaça para os meios de comunicação!

        • Luís, o que você acharia de uma pesquisa sobre se as pessoas deveriam ser assassinadas? Ou se deveriam ser "desaparecidas"? Ou se deveriam ser esquartejadas? Ou estupradas, eletrocutadas? Condenar isso é "mordaça"?

          • Fernando, pensando por esse lado, eu te dou razão! Eu não havia pensado nisso. É, realmente é complicado. Aliás, até a própria presidente, entre tantas outras pessoas, sofreu tortura. Mas eu acho que esse tipo de manifestação que vem ocorrendo não é mais legítima. E também sou contra esse negócio de "não vai ter copa".

        • Estava saindo da adolescência quando da ditadura. Trabalhava numa grande construtora, hoje miliardária, que me fotografou e todos os funcionários para saber se não havia um comunista. Também, havia na FIESP, uma lista negra de empregados que faziam grave por melhores salários ou que entrava na justiça para receber o que de direito. Você pensa que este blog existirá, numa nova ditadura? Quem você acha que serão cassados, presos, torturados e mortos? Acha que serão jogados de aviões, ainda vivos, os presos amarrados e amordaçados? Ou morrer preso a um jipe que rodou várias vezes até que o preso morra, como aconteceu ao Angel? Ou morrer suicidado como aconteceu com o jornalista Wladimir Erzog, que fugiu de um país comunista para morrer em plena ditadura aqui no Brasil.? Será criada uma OBAN? Não sabe o que é isto, procure saber. E pense que perderemos o nosso lindo Brasil. Eu tenho 71 anos, nasci numa ditadura, convivi com outra e, de acordo com o que está ocorrendo, morrerrei numa. QUE SACO!!!!!!

          • Luis:
            Sinto muito que a única tortura que veja seja a mais visual possível.Mas leve em conta pessoas que foram alijados de suas ocupações ,até mesmo exilados por conta em não acreditar nestes golpistas traiçoeiros que visavam única e exclusivamente o bem próprio.

        • "Nós temos nojo e ódio da ditatura" "Ulisses Guimarães", Presidente da assembleia nacional constituinte, ao proclamar o encerramento da constituição cidadã de 1988.
          Ninguém quer colocar mordaça em ninguém amigo, se você quer entender bem esta questão, é só você se aprofundar sobre o assunto e você ira descobrir que o que querem eu, Fernando Brito e tantos e tantos outros milhares de brasileiros é que se cumpra a constituição, nada mais do que isso.

    • Desculpe-me, mas sua avó é uma imbecil.
      E pelo visto a coisa é genética...
      Pode censurar, Brito, mas é que estou sem paciência para tratar com canalhas do tipo "olha, não é bem assim".
      O que sabe esse cretino sobre a "gloriosa Revolução", além daquilo que sua avó estúpida lhe disse?
      Ah! tenha a santa paciência!

      • Fernando, esse tipo de comentário ofensivo vai ser aceito?

        • Por que não? Aceitou o seu. Que é, voce é a favor da censura? Eta, ditadorzinho!!!!!! Entenda, isso que é democracia, não como os blogs cheirosos que não aceitam a minha opinião.

    • Caro Luis Felipe... você levou umas boas bordoadas né rapazinho? Cheguei a dar risadas.. Mas deixe eu te dizer uma coisa, fiquei com pena de você não pela surra mas pela sua completa falta de compreensão dos males que a ditadura causou ao Brasil e o atraso social, econômico e político que ela nos infligiu. Rapaz pare de ouvir a vovó e leia 100 vezes os comentários do Daniel, do Fernando Brito, da Maria Libia e principalmente a do Romildo! Você se imaginou no lugar dele? Acredite rapaz foi uma fase triste do país que nos causou muita dor tanto física como moral. Luis leia mais os blogs sujos, liberte-se e seja feliz!

  • As pessoas de maneira geral, em todo o Brasil, devem já ter percebido como, de uma hora para outra, se tornaram mais frequentes cenas de estresse incontido em locais públicos como bancos, supermercados, transportes coletivos, etc., em que um indivíduo irado começa a gritar grosserias aos ventos, xingando o governo, os políticos, o país, algumas vezes até lançando profecias sobre a chegada iminente do "justiceiro vingador". Os mesmos que financiam pesquisas como essa da Folha, podem também simultaneamente estar pagando provocadores profissionais para encenar essas explosões de cólera, assim como para espalhar boatos, cientes que são do efeito manada que podem provocar. Neste exato momento, a mesma Companhia das Índias Angloamericanas põe em marcha seu arsenal de táticas para insuflar o fascismo na Ucrânia, e desmantelar aquele país geopoliticamente estratégico do Cáucaso. As cenas falam por si:
    http://www.youtube.com/watch?v=GxY60DondC0
    http://rt.com/news/kiev-clashes-parliament-voting-538/

  • Quero saber o seguinte: o que pensam os jornalistas da Folha sobre essa pesquisa? Foram consultados? Participaram de sua elaboração? Algum deles discorda de tal abordagem em uma pesquisa como esta? Qual a função de tal pesquisa no trabalho deles? Poderão criticá-la? O que acha a ombudsman sobre isso? Em suma, qual é a de vocês, jornalistas da FSP, diante dessa pesquisa? Com a palavra Jânio de Freitas, Clóvis Rossi, e alguns poucos outros que ainda tem algo a dizer! A opinião destes pode clarear um pouco quais as reais intenções deste diário. O resto, come na mão do patrão! Dirão o que o chefe mandar.

  • querem um novo golpe só para atrassar este país em mais 50 anos...na venezuela já estão tentando mais uma vez....é de interesse dos eua e todos nós sabemos o atraso da AL!!!

  • Eu vivi a ditadura e presenciei muitas pessoas amarradas aos cavalos da polícia sendo arrastadas pelas ruas. Vi meu pai ser preso e apanhar da polícia. O meu pai teve sorte pois através de amigos conseguiu ser internado em um manicômio (Hospital Grafeguim) no Rio de Janeiro) para não ser preso, torturado e morto. Tirou diploma de doido e os militares o deixaram em paz. Passávamos fome, emprego era difícil de se arrumar.
    Mesmo depois o meu pai deu uma de doido e junto com meu irmão saíamos de madrugada para pichar muros (ABAIXO A DITADURA.
    Ainda tem gente que quer de volta a ditadura.

    • romildo, obrigado pelo depoimento. muito mais construtivo que o do coxinha acima elogiando "pero no mucho" a ditadura.

  • A ditadura veio, também, em nome da democracia. Ver AI I, de 9 de abril de 1964.

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