Quando, há muito anos, minha filha, então uma pré-adolescente, fez um comentário preconceituoso e cruel sobre uma pobre mulher que vivia em necessidades, próximo ao lugar onde morávamos, mandei-a buscar um dicionário.
Revoltada, foi, resmungando muito. Então, mandei que lesse em voz alta o significado de compaixão.
-Eu sei, é pena…
-Leia, minha filha…
E então ela leu que compaixão é algo como ser capaz de sentir o sofrimento alheio e ter o impulso de, mesmo não sendo o nosso, mitigá-lo.
Lembrei-me disso lendo a matéria “No agreste, pacientes agradecem médicos cubanos de joelhos“, hoje, um trabalho sensível do repórter Daniel Carvalho, no interior de Pernambuco.
Leia um trecho e, se puder, leia a matéria inteira.
“A demanda de médicos no interior do país é gigantesca e a cubana Teresa Rosales, 47, se surpreendeu com a recepção de seus pacientes em Brejo da Madre de Deus, no agreste pernambucano.
“Eles [pacientes] ficam de joelhos no chão, agradecendo a Deus. Dão beijos”, afirma a médica, que atendeu 231 pessoas neste primeiro mês de trabalho dos profissionais que vieram para o Brasil pelo programa Mais Médicos, do governo federal.
O posto de saúde em que Teresa trabalha fica no distrito de São Domingos, região pobre e castigada pela seca.
Durante os últimos quatro anos, o posto não tinha o básico: médicos. Até o final de setembro, quando Teresa chegou ao distrito, quem andava quilômetros de estrada de barro até chegar à unidade de saúde sempre voltava para casa sem atendimento.
A situação se repetia a algumas ruas de lá, no posto onde o marido de Teresa, Alberto Vicente, 43, começou a trabalhar em outubro.“Foi Deus quem mandou esse homem. Era uma dificuldade, chegou a fechar o posto por falta de médico”, disse a aposentada Isabel Rocha, 80, que agora controla o diabetes sob orientação médica.
Ao ler isso, pensei naquelas jovens de jaleco branco, vaiando os médicos cubanos no Aeroporto de Fortaleza, aos gritos de “escravos, escravos”…
Talvez, já a caminho dos 30, não sejam capazes de entender o que eu quis ensinar a uma mocinha de doze anos, mandando-a ler o dicionário…
Não, não há “torcida” política, partidária ou ideológica que possa fazer imaginar ser bom um ser humano, por qualquer razão, ajoelhar-se aos pés de outro ser humano.
Isso, sim, é viver na condição humilhante de escravo e na pior de suas escalas, quando nem mais o chicote é preciso para fazer alguém se ajoelhar.
Há outro látego vergastando estes nossos irmãos há séculos: o da pobreza, o do abandono, o da indiferença dos dirigentes e das elites deste país para com eles.
E essa indiferença veio à tona da maneira mais crua e chocante na reação ao “Mais Médicos”.
O “Mais Médicos” não vai, é certo, resolver todos os problemas da saúde no Brasil. Como um prato de comida não vai resolver os problemas da fome.
Mas é monstruoso, desumano, dá vontade de chorar ver que há gente que quer lhes negar isso, esse mínimo, gente incapaz de sentir a parca compaixão de cuidar de um semelhante em apuros.
Perdoem-me os médicos cubanos ou os outros estrangeiros, cuja maioria até sei que tem tal capacidade, mas eu não estou nem um pouco interessado em se vocês são capazes de um diagnóstico de alta complexidade.
Talvez um entre dez mil destes brasileiros totalmente desvalidos possa precisar de um. Outros 9.999, porém, vão morrer de diarréia, verminose, infecções, doenças parasitárias ou de pneumonia e não daqui a 50 anos por complicações de uma formação quadricúspide de valva aórtica, como foi detectado em outro filho tão amado quanto aquela.
Veio-me a cabeça o que me disse um bom amigo, médico, que trabalhava no Hospital São Sebastião, de doenças infecto-parasitárias, no início da epidemia da Aids: “Fernando, muitas vezes o que se pode fazer por essas pessoas é dar-lhe uma cama limpa e lhes dar alguma atenção para morrer”. Havia pouco, muito pouco a fazer, então, até que tivéssemos o arsenal bendito, hoje, para cuidá-las.
Não, não pode trazer qualquer alegria ver nossos irmãos ajoelhados porque houve alguém vindo de longe que não lhes foi indiferente, alguém que talvez não vá a congressos médicos ou que não se feche em sua condição de “culto e rico”, porque fez uma faculdade de Medicina, muitas vezes paga com o dinheiro deste mesmo povo.
Nem que, por falta de atendimento primário, tudo se agrave e lote as estruturas das cidades maiores, para onde os mais afortunados são levados, quando aquilo que poderia ter sido curado muito antes, com simplicidade, tenha uma gravidade muito maior.
As mocinhas de Fortaleza, ali tão perto de lugares de miséria, de pobreza extrema, não são obrigadas a serem médicas. Mas, se são, não estão desobrigadas de cuidar das pessoas. E o fato triste é que não houve senão uma mínima procura para postos de trabalho com remuneração digna (R$ 10 mil), suporte de casa e alimentação e um prazo razoável para viver outra vida: três anos.
Nem mesmo para a periferia das grandes metrópoles houve interessados. Nem mesmo os mais jovens.
Com todo o respeito e acatamento pelas boas razões de quem diz que saúde não é só médico, não há o que justifique isso por parte de boa parte de uma corporação profissional.
Exceto, infelizmente, a perda de um sentimento de utilidade social que essa profissão, mais do que muitas, deve conter.
Ou de alguém que, na primeira aula, lesse para os calouros o verbete compaixão num dicionário.
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Fernando Brito, sem palavras, apenas lagrimas...
Uma coisa que me fazia chorar na minha infância e adolescência era nos anos 70 e 80 aquelas matérias do Globo Repórter que mostrava as pessoas passando fome e morrendo de sede. Lembro que o Globo Repórter teve a cara de pau de ir na casa de uma mulher magra e com fome no sertão nordestino onde o único alimento era uma água barrenta misturada com sei lá o que. O repórter voltou depois de uma semana só pra mostrar que a mulher havia morrido de fome, não foram capaz de ajudá-la, pois estavam mais preocupados com a reportagem em si. Aquilo me deixou indignado. Agora vendo uma matéria dessa me fico muito feliz e me leva a cada vez mais militar em favor dos pobres que são os que mais necessitam do Estado.
os críticos do bolsa família nem lembram mais de como era a vida daquelas pessoas, que morrim de sede e fome, ante de Lula ser presidente.
Por falar em compaixão, vamos exercitar nossa compaixão um pouquinho, e lembrar que não apenas pessoas que moram em nosso país merecem compaixão, mas também aquelas que estão do outro lado do mundo.
Nas Filipinas, país mais pobre do que o Brasil, do outro lado do mundo, milhares de pessoas com sobrenomes como Cruz, Santos, Ramos, Garcia (sobrenomes espanhóis tão típicos das Filipinas) estão neste momento sofrendo o horror de estar em uma cidade, chamada Tacloban, que tinha mais de 200 mil habitantes, e que foi completamente destruída por um tufão, tendo 90% de seus edifícios demolidos pela força dos ventos, com mais de 10 mil mortos, ruas inundadas pela água suja, sem luz elétrica, sem água potável. A cidade era a maior da ilha onde fica, e teve seu aeroporto destruído pelo tufão.
Vamos ver onde está a compaixão do povo brasileiro em ajudar os seus milhares de irmãos de sobrenome Cruz, Santos, Ramos, Garcia, Torres, Castro, que estão vivendo este pesadelo do outro lado do mundo.
Feliz do HOMEM que consegue sentir COMPAIXÃO.
É este um iluminado. Que Deus Oriente estes médicos
e de ao POVO brasileiro o retorno de sua ESPERANÇA.
Esse texto lavou a minha alma cearense... quando a gente vê a elite esbravejando, vai fundo que é o caminho certo.
Tive um amigo, que infelizmente já faleceu, que embora tenha vencido na vida, assistiu quando criança a morte da sua mãe, por completa falta de assistência médica. Fico pensando, quantos milhões de pobres desassistidos já viram algum parente morrendo sem assistência básica, nos interiores e nas periferias das grandes cidades, do nosso grande Brasil. Tenho orgulho do Governo DILMA/LULA, pela sensibilidade social. O Programa Mais Médicos irá diminuir o número de morte desassistidas. Viva o povo brasileiro.
Fernando, com certeza guardarei esse exemplo de lição sobre compaixão. quero que meus filhos tenham pelo menos uma fração da sensibilidade que você tem. obrigado pelo texto. muita admiração por você. grande abraço.
É triste presenciar a falta de sensibilidade que uma ausência da verdadeira educação causa na juventude "bem-aventurada" dos dias de hoje. A ausência de valores - quando não dos próprios pais - da a eles a impressão de que existem eles e os outros, situação nem sempre desfeita pela vivência posterior em um mundo ilusório...
Fernando, parabéns pela conversa com a sua filha (tive algumas dessas com as minhas duas) e pela sua postura de um modo geral. Sou professor de endodontia (Odontologia) e falo sobre isso também com elas, principalmente a mais nova que é estudante de medicina.
A postura dos médicos é de uma indignidade inconcebível para o que eles deveriam representar e é assustador e preocupante imaginar como foram e continuam sendo capazes de uma atitude dessa. Realmente chocante.
Aquela médica que aparece vaiando o médico cubano, em primeiro plano, se filiou ao partido tucano cearense, aparecendo, inclusive, em seu programa político na TV, e continua a criticar o Mais médicos. Logo depois de sua inserção, aparece o ex-senador Tasso Jereissati, aquele mesmo que partiu possesso contra o frei que impediu que ele com seus asseclas distribuísse propaganda apócrifa durante uma missa em Canindé, Ceará, contra a Dilma das eleições de 2014. Ele só não conseguiu porque sua esposa, Renata Jereissati, o segurou pelo braço.