Bob Fernandes ou Raquel Sheherazade?
Jornalismo ou teatrinho de bonecas (e bonecas más, com sangue nos olhos)?
Uma TV para justificar (para dizer o menos) linchamentos e acorrentamentos de pessoas nuas aos postes e estimular uma onda social de desejo de violência e “justiçamentos” ou para apelar ao respeito à lei e às regras mínimas de convívio social?
Bandos de facínoras que espanca pessoas na rua, por qualquer razão – como este aí da foto, preso por agredir um nordestino, ano passado, em Niterói – não são justiceiros, são criminosos.
O comentário de Bob Fernandes, ontem, na TV Gazeta é o que deveria estar sendo feito em veículos de comunicação que ocupam concessões de estado de rádio e televisão.
Mas o que encontra espaço nas grandes emissoras é o “modelito” Raquel Sheherazade. Porque ela não é a única, mas apenas uma entre dezenas que ocupam os canais de TV para pregar o ódio.
A ideia de democracia e de liberdade de imprensa não é essa.
Liberdade de imprensa é poder dizer o que se pensa, mas é também responder por isso.
Ninguém pode ser impedido de dizer coisa alguma, mesmo barbaridades.
Não há censura prévia, mas o termo prévia tem um sentido.
Do contrário seria possível legitimar a defesa do estupro, da mutilação, da agressão, do racismo, apenas porque foram praticados num meio de comunicação.
Todos temos de responder pelo que fazemos.
Mais ainda quando estamos ocupando uma concessão pública.
Fernandes recoloca a questão em seus termos.
Há uma escolha a ser feita.
As liberdades democráticas não podem servir de capa para a sua própria destruição.
O cidadão Santiago Ilídio Andrade, colega cinegrafista da Band, foi assassinado. Segmentos mais doentios da sociedade, e da baixa política, buscam um mártir desde junho passado.
Santiago, atingido por aquele rojão ao cobrir uma manifestação no Rio de Janeiro na última quinta-feira. Um dia antes tratamos aqui da violência que se espalha.
Violência que têm causas seculares. E que tantos fazem de conta ser produto apenas do aqui e do agora. Como fazem de conta ser produto apenas da ação do Outro, dos Outros.
A violência é produto também do aqui e do agora. Mas não apenas. Não cansaremos de repetir: nas últimas 3 décadas, a média de 50 mil brasileiros têm sido assassinados a cada ano.
Em todo o país, no fim de semana, mais de uma centena de homicídios.
No estado de São Paulo, em dezembro, 436 mortes por violência. A violência está ai, num país que tem toque de recolher quando escurece e já nem se dá conta disso.
A violência está, esteve num dos pilares da formação da sociedade brasileira. Ou a escravidão por 380 anos, quatro quintos da nossa história oficial, não é violência?
O menino pobre e preto preso a um poste por “justiceiros”, no Rio de Janeiro, não é só violência. É uma assombrosa revisita ao passado dos Pelourinhos.
A violência não está só nas ruas. Quem viaja pelo país sabe qual é o prato servido, em cada cidade, antes do almoço ou do jantar: violência em estado bruto.
Aqueles programas policiais com cenas cruas da barbárie nas ruas são mera informação? Ou terminam sendo uma fórmula, também comercial, de retroalimentação da violência?
E isso em espaços, Tv e rádio, que são concessões do Estado.
Há quem se valha da violência que está aí para pregar ainda mais violência; filme já visto aqui e mundo afora e que sabemos como termina: com o fascismo no poder.
Há quem, mesmo sem perceber, esteja alimentando essa caminhada. A violência, antes e depois de tudo, pode estar também na palavra, e nas linguagens todas.
O banditismo é violência. Como é violência a ação de “justiceiros”, “milícias”, e a ação de polícias ainda treinadas com o receituário das ditaduras.
Discursos de ódio induzem à violência, e tanto faz se nos parlamentos ou em púlpitos. Não importa se na mídia das redes sociais ou nas mídias tradicionais, chamadas de ‘Grande”. Ódio é ódio.
O verniz, seja ele real ou simulação, não esconde ódios e recalques, o ressentimento e o oportunismo que embalam a lógica da violência.
Tanto faz se em nome da pátria, religião, do futebol ou de ideologias. Assim como miséria pode alimentar a violência, os ódios, todos eles, fomentam essa lógica da violência.
O cidadão Santiago Andrade morreu nas ruas. A lógica daquela violência mais refinada, a da linguagem, quase sempre travestida, já opera nos espaços midiáticos. Os operadores supõem ter encontrado seu mártir.
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