Fura-filas: como o moralismo faz seu espetáculo de morte

Tempo estranho este em que, para raciocinar, é preciso fazer um preâmbulo dizendo que você tem de dizer antes que não fura filas, não rouba, não se corrompe.

Ou seja, faz o que minha avó chamava de “não fazer mais que sua obrigação”.

Mas, francamente, não me entra na cabeça que um estado assolado pela pandemia como o Amazonas, que só ontem contou 132 cadáveres e tem pacientes nos corredores e sempre ameaçados pela falta de oxigênio, interrompa por dois dias a vacinação contra a doença porque uma meia dúzia de sem vergonhas furaram a fila da vacina.

Isso não é moralismo, isso é imoral: sujeitar ao contágio e ao risco de morte centenas ou milhares de pessoas – médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares hospitalares, para os quais cada minuto é um risco imenso e que deveriam estar sendo vacinadas nos dois dias em que se parou a vacinação.

Pior: interrompe-se uma vacinação que, de si, já é ridiculamente diminuta – os treze municípios que compõem a Grande Manaus, com mais de 2,6 milhões de habitantes, recebeu pouco mais de 44 mil doses.

As nossas autoridades judiciais e o Ministério Público não conseguem chegar ao raciocínio complexo de um guarda de transito que, em lugar de mandar o carro suspeito para o acostamento e verificar a infração, para todo o trânsito da estrada para mostrar que é “durão” e implacável?

Ora, prenda-se, multe-se, processe-se com todo o rigor quem praticou estes absurdos e quem os tolerou, mas não se punam as pessoas inocentes nem se interrompa o que é essencial.

Mas é pior: distrai-se a população com esta “pouca vergonha” que é, de fato, vergonha mas felizmente é também pouca e deixa-se de lado a grande falcatrua, que é a de fazer um país de 214 milhões de habitantes”comemorar” a chegada de uma miséria de doses, que não é capaz de imunizar nem 0,5% da população.

Até a noite de ontem a vacinação estava suspensa, esperando uma lista que, afinal, foi feita pela prefeitura com “onze níveis de prioridade”, o que já deixa você imaginando o grau de complicação a que se submete o vacinador que deveria estar, apenas, esperando a seringa nos braços e inoculando o imunizante.

O Brasil se tornou o país onde sempre se joga fora a criança junto com a água suja do banho.

 

 

 

Fernando Brito:
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