Isso passa? Passa

Como quase todo dia, fui ler o Balaio do grande boa-praça Ricardo Kotscho e o encontrei desanimado com as várias pandemias de estupidez que estão, há tanto tempo, nos colocando em quarentenas, afastando uns aos outros, numa espécie de isolamento não apenas físico, mas filosófico, comportamental e, afinal de contas, político.

Confesso (…) que já não sei mais nem o que dizer diante das tantas barbaridades diárias que se transformaram no “novo normal”, o conjunto de sandices e mentiras de um tempo anormal.
Nesse meio tempo, tudo virou fake, irreal, surreal, banalizando o absurdo, um filme de terror sem fim.
São muitas pandemias ao mesmo tempo _ sanitárias, políticas, econômicas, sociais _ sem deixar espaço para a esperança.
Os dias são todos iguais, sem graça, só cumprindo tabela. A esperança cansou de esperar.

Pensei: se o Kotscho, camarada de tantos combates, resistente ao ponto de jamais se entregar aos confortos e farturas da política, teimoso ao ponto de continuar repórter, sincero e simples, desanimou, porque não consigo, mesmo confessando esta vontade de descansar, não consigo o mesmo.

Lembrei-me de uma conversa ao telefone com Leonel Brizola, depois do resultado pífio em 1994, dizendo-me que – aos mesmos 72 anos de Kotscho, então – que ia descansar da política e do combate, dedicar-se à família de que tanto se descuidara desde o exílio (muitos não acreditarão, mas Brizola, antes de 64, curtia viajar com a mulher e os filhos, acampar (raro naquele tempo), e de administrar o que restava do patrimônio que foi se dilapidando pela falta de cuidado pessoal e direto.

Na ocasião, ouvi com paciência o raro desabafo de quem não se permitia – e nem permitia a muitos – entrar em conversas sobre a vida pessoal e respondi-lhe que tinha todo o direito, depois de meio século de lutas políticas, de fazer aquilo, exceto por um “probleminha”:

— Eu duvido que o senhor consiga. Amanhã vai tocar o telefone aqui e eu vou ouvir (falei imitando seu sotaque gaúcho) “Mas Brito, tu viste o que aquele sujeito está falando…”

Foi uma das poucas vezes que o ouvi soltar uma risada e entregar os pontos numa discussão, sem objeções.

A outra havia sido no seu segundo governo, quando, num dia de chuva impiedosa, destes em que as nuvens querem grudar no chão, quando ele teimou em ir de helicóptero, contra o conselho do piloto Antonio Maia, até uma inauguração no complexo Miécimo da Silva, em Campo Grande e, metendo a colher torta da imprudência disse que não haveria problema se fôssemos pelo litoral, para depois entrar e pousar no campo de futebol que havia lá. Como eu era um dos passageiros da geringonça, esperei chegarmos ao costão do Leblon, logo depois da decolagem e falei ao Maia, para Brizola ouvir:

— Maia, você acha que a gente chega logo na reunião?, o que fez Brizola me perguntar de que diabo de reunião eu estava falando.

— A reunião com o Dr. Ulysses Guimarães.

Ele me olhou de canto do olho, assimilando a maldade de citar o velho político que morrera, poucos meses antes, num acidente de helicóptero sobre o mar, e disse: Maia, volta.. Vai que o velho me chama mesmo pra conversar…

Volto ao tema da esperança para dizer ao querido Kotscho que os processos político-sociais, como bem definia Brizola, são semelhantes a rios, que dão voltas, fazem meandros, mas sempre seguem seu curso para o mar, muito embora pareçam, por algum tempo, fluírem na direção oposta.

A civilização, o convívio, o progresso humano são quase o mesmo que fatalidades e a única ideia que a vida nos oferece de perpetuação. Transcende a nós mesmos, porque têm tempo e ritmo diferente de nossas míseras mortalidades.

Por isso nos é dado o privilégio da coerência: o mundo só começa e termina com nossas vidas se somos pretensiosos ou egoístas.

A direita já chegou ao poder por golpes, usando a força ou a máquina judicial, já obteve vitórias eleitorais com manipulações da economia, como com o Cruzado e com o Real. Foram fenômenos muito maiores que a “respirada” de popularidade que Bolsonaro obteve com a distribuição do auxílio-emergencial e, ainda assim, dissolveram-se em pouco tempo.

Eles não tem projetos para o Brasil, eles não têm amor – apenas interesses – pelo povo brasileiro, eles tem uma cara tão feia que a precisam disfarçar com expedientes – estes, sim, populistas – para serem, por algum tempo, palatáveis.

Por isso, caro Kotscho, roubo as palavras que você mesmo escreveu a Lula, dois anos atrás, no dia da prisão do ex-presidente e as devolvo ao companheiro – ainda que distante – das mesmas lutas: “aguenta aí, mano velho!”.

Há espaço para a esperança, sempre, quando há espaço no coração. Já seguramos barras piores e elas passaram.

Isso passa. E você verá que é rápido, muito mais rápido que as outras farsas que enfrentamos.

 

Fernando Brito:
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