Liberdade é ser prisioneiro de seu tempo e de seu povo

Ontem, assisti ao excelente curta sobre Zigmunt Bauman, filósofo polonês. no Canal Curta, em que ele ironizava a liberdade destes nossos tempos que é, afinal, a prisão de estar apenas em si e ser, individualmente, responsável por sucessos e fracassos: a busca da felicidade se torna estritamente individual, criamos uma ansiedade para tê-la, pois acreditamos que ela só depende de nós mesmos.

Virou uma antítese do lindo verso de Tom Jobim: “é impossível ser feliz sozinho”.

Esquecemos, nestes tempos – e por isso regredimos – de que o nosso privilégio, como animais, é sermos sociais e é isso o que nos diferencia como humanos.

Agora à noite, leio o texto reflexivo de meu velho professor Nílson Lage, para meu imenso orgulho um colaborador deste blog, traduzindo esta reflexão para a vida prática, aquela que, talvez, para mim e para ele, já se faria desinteressante se nossa liberdade fosse apenas posse, poder e sucesso pessoais.

Compartilho-o com os leitores, porque pensar é coisa rara neste mundo do “lacrar”. Amo minhas angústias, amo as lutas inglórias que através da nossa história são as nossas grandes conquistas civilizatórias. Incompletas, sim, por isso mesmo desafiadoras e razão de viver.

Não sou livre, porque faço parte

Nilson Lage

Ao criar uma base extensiva e universal de investidores em mercados que se movimentam conforme expectativas e convicções, o capitalismo propiciou a geração de lucros que eventualmente superam os da economia real; o fato de serem eles virtuais passa despercebido porque a moeda é a mesma nos dois casos, e se entesoura.

Em decorrência, há o descolamento entre os negócios que se fazem visando valores abstratos do dinheiro (as bolsas) e o universo produtivo que processa bens e serviços.

O neoliberalismo permitiu assim ao capital libertar-se da armadilha da luta de classes, tornada explícita na sociedade industrial.

A superação do conflito típico da relação patrão-empregado se dá por via da radicalização do conceito de liberdade individual e consequente alienação. A sensação a ele associada, de libertação, é poderosa, mas provisória. Prolongada e levada a extremo, torna o trabalhador sujeito ou agente da própria sujeição, isto é, explorador de si mesmo, para quem a única revolta possível é subjetiva.

Provavelmente por isso, as vítimas desse processo tornam-se tão sensíveis à proposta de um deus que negocia benesses, residindo em um não-espaço interior-celestial.

O rapaz – nem tão moço, já um senhor – entra em minha casa às dez da noite, acompanhado de um aprendiz. Retira da mala do carro instrumentos – tubos, compressor, balão de gás – de que precisará para reparar o aparelho de ar condicionado. Se tiver que vender qualquer dessas coisas, o automóvel inclusive, receberá bem menos do que pagou por elas.

Trabalha, hoje e todos os dias, desde a madrugada e me mostra a foto dos filhos, que pouco vê. Dentro de uns vinte anos, persistindo, terá, talvez, uma casa e a renda, duvidosa e sempre minguante, de algum fundo de investimento ou de aposentadoria por capitalização – não, provavelmente, o bastante para confrontar os custos da velhice.

Contudo, não sabe que, em sua plena liberdade, é servo do capital que transita como essência em cada coisa e movimento de sua vida.

A extrema liberdade é prisão terrível, porque sem portões. Para suportá-la, é necessário suprimir da consciência a história de cada trabalhador e seu entorno, dando por natural, hereditário, o que os condicionamentos da vida determinaram e se sustenta no plano das relações objetivas.

Os grandes sistemas de falácias genéticas – a eugenia, a herança de talentos – integram o discurso neoliberal porque servem a esse fim.

Um visitante, recém-restabelecido da infecção por vírus, pergunta-me como consigo estar relativamente bem após seis meses de reclusão neste meu quarto, cuidado pela companheira porque nos amamos há 50 anos: ele, em 14 dias de isolamento, desesperava-se.

Disse-lhe, então, que meu segredo era não ser livre. Se fosse, estaria deprimido, por não ter benefícios a auferir ou objetivos a alcançar em vida; faltaria a mim motivação.

Como sou prisioneiro do passado e de uma concepção de mundo, guardo metas da família e entorno cosmopolita e solidário de trabalhadores e faço minhas reivindicações de gente como o moço do ar-condicionado – embora ele não saiba disso; persigo objetivos que pessoalmente não atingirei.

Não sou livre, enfim, porque faço parte.

Na verdade, somos produtos de uma história inscrita sobre a lousa de vagas determinações biológicas; jamais de comprovou a herança de comportamentos, atitudes ou valores. Se os adultos não achassem tão interessante aquele menino de quatro anos que lia os cartazes pregados nos muros do estádio de futebol em frente de casa, eu não teria perseverado e seria, talvez outra pessoa – por exemplo, caso chamasse a atenção pela habilidade em fazer embaixadas com a bola de meia ou imitar os trejeitos de Oscarito ou de Carmem Miranda em filmes de Hollywood.

Em todos os momentos, e agora mesmo, cada um de nós pode dar respostas a desafios, mas não os formula. Somos o que espelharam, disseram que éramos, e acreditamos; em regra, reativos.

O oba-oba da liberdade como projeto neoliberal é uma fantasia tóxica que se exaspera em colapsos civilizatórios – ou surtos coletivos de falta de educação – como o que nos assalta no momento.

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