No caderno de “Sustentabilidade” da Folha, a repórter Camila de Lira escreve uma história que raramente interessa à mídia brasileira.
Porque trata de gente que raramente interessa à mídia brasileira: os pobres, muito pobres.
É sobre o que faz e o que pensa Edmar Imaculada Matoso, a Lôra, catadora em São Paulo.
Todos os dias sai de Guaianazes, a 30 km de distância, pega uma carrocinha puxada por ela mesma, e passa seis horas recolhendo materiais recicláveis, no centro e em bairros nobres de São Paulo.
Os que passam de carro se assustam com a “Lôra” e sobem rápido os vidros, nas raras vezes em que estão abertos.
Mas “Lôra” também se assusta com eles.
Porque eles jogam fora comida que, a ela, parece muito boa.
“Lixo de rico é assim mesmo: cheiroso”, diz ela.
E fazem coisas estranhas, bizarras, como jogar fora “carrinhos, bonecos e até helicóptero de controle remoto. Tudo novo”, que foram para os quatro – dos seus doze – filhos que vivem com ela.
Eram brinquedos de meninos e meninas que vão aprender na escola que reciclar é muito bom e até “salva o planeta”.
Mas não vão aprender nada sobre a “Lôra”, que não é reciclável e “estraga o planeta”.
“Lôra” não é gente, é sub-gente, que não é cheirosa como o lixo dali.
Ela é “um problema”, mesmo que seja uma solução para a imundície produzida pela elite perdulária.
Ou melhor, pela elite que acha que, se o dinheiro é dela, ela faz o que quiser com o dinheiro, até jogar no lixo.
Até porque o lixo some de suas vistas.
Mais ou menos como pensa sobre pessoas como “Lôra” podem também ser atiradas fora e, sobretudo, saírem logo – como o lixo – de suas vistas.
Mas a “Lôra” , ao contrário, não lhes quer mal e torce para que joguem, joguem fora cada vez mais coisas cheirosas.
E que talvez, um dia, se dignem a abaixar os vidros escuros e sombrios através dos quais a vêem, olhar para ela e dizer-lhe, simplesmente:
Obrigado, Lôra.
Comida jogada em bairro nobre de São Paulo impressiona catadora
Camila de Lira
Com uma carroça vazia e muita energia, a mineira Edmar Imaculada Matoso, 43, chega às 17h para mais um dia de trabalho.
Lôra, como é conhecida, vai de Guianazes, na zona leste, onde mora, até o centro de São Paulo diariamente. Lá, ela coleta materiais recicláveis até as 23h.
O percurso, que passa por sete ruas da região, não é tranquilo. Taxistas buzinam com a proximidade do veículo de Lôra. Motoristas em carros de passeio fecham rápido os vidros.
Lôra mora com quatro de seus 12 filhos. A primeira coisa que eles perguntam quando chega em casa é se ela trouxe brinquedos. Uma vez achou um saco cheio de carrinhos, bonecos e até helicóptero de controle remoto. Tudo novo. “Meus filhos me fortalecem em tudo na vida.”
Com o material vendido a um ferro-velho, já chegou a arrecadar R$ 40. Em dias normais, fatura até R$ 15. Ela tem sorte de usar a carroça emprestada de um amigo. Mas os catadores alugam ou compram esses veículos por até R$ 400.Quando anda em Higienópolis, Edmar se indigna com a quantidade de comida boa jogada fora. “Lixo de rico é assim mesmo: cheiroso”, brinca.
Dados do movimento nacional de catadores mostram que, em São Paulo, um carroceiro coleta, em média, 600 kg de material reciclável ao dia. São 15 toneladas por mês.
Ainda de acordo com o movimento, 90% da reciclagem realizada no Brasil está nas mãos desses trabalhadores. Números do Ipea mostram que 400 mil catadores atuam todos os dias no país. Apenas 31,3% são mulheres como Edmar.
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A solução é capacitar essas pessoas à formarem cooperativas e tirar os donos de ferro-velho do negócio, verdadeiros atravessadores/aproveitadores dessa mão de obra importante!
A reciclagem reduz em até 95% o volume do lixo. (Isso quando não se desperdiça comida, como ela relata). E, quando não desperdiçamos comida, forçamos o preço da mesma pra baixo!! Coisa que azelitis não precisam se preocupar, né? Preço.
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Terrível mesmo é ver os comentários que os leitores da Folha fazem, acusando a mulher de ser pobre porque teve 12 filhos. Eu sei, eu sei, não se deve ler os con=mentários lá. Prometo não repetir o engano.
Não é erro ler os comentários. É bom pra saber o pq do mau humor. O mau humor de muitos brasileiros é filho do orgulho e da arrogância.
O que revolta os leitores da folha, é que dona Lôra e seus filhos podem votar...
Isto por mais incrivel que pareça, é verdade..
Explico...
Moro, num bairro que parece uma "favela", como disse um amigo meu...
Mas, ao lado saiu casas do Minha Casa Minha Vida,...e o que escuto as pessoas da minha vila falar, são severos absurdos, como...eles já estão começando a vender as cassas, vender os móveis financiados, que gente estranha na vila, cuidado.....
Soa mal aos meus ouvidos, conviver com isto é terrivel......
E eu sou POBRE.....e felizzzz da vida!!!
Belo e melancólico post, querido Fernando Brito. Estás, cada dia, melhor.
Quanta sabedoria da Sra. Lôra:
"Meus filhos me fortalecem em tudo na vida"
As escolas não ensinam ou informam nada sobre a importância das profissões, digamos, "de baixo". Sobre esse assunto as escolas não ensinam porque os professores não aprendem ou aprenderam nas universidades e nem constam nos livros escolares. Tal qual as pessoas que escolhem ou são jogadas nessas profissões o assunto vai ficando na periferia das discussões sobre cidadania.
Deveria ser estudado algum tipo de remuneração para esses trabalhadores, que seria paga pelas prefeituras. Pois, de certa forma, executam parte do trabalho que as empresas de limpeza urbana estão ganham para não fazer.
O que essa senhora coleta são produtos recicláveis , lixo é a elite que lhe da as costas e a transforma em sub humano.
Lendo a história de Lôra, vou me redimir sobre um comentário que fiz sobre Guilherme Boulas. Fiquei intrigada como um cidadão com a formação dele poderia liderar o movimento dos sem teto. Busquei informações sobre ele e assisti uma entrevista que ele deu à TV Gazeta. Sua coerência é convincente, está longe de parecer um aventureiro. Por ele e por Lôra, a gente pode sentir que há, de verdade, um Brasil em construção. Os políticos progressistas devem ficar atentos a isso e de ouvidos disponíveis para escutar o que o país realmente precisa.