A reportagem da Folha, hoje, com aquilo que anda sendo pregado por André Mendonça, ex-ministro de Bolsonaro e candidato a uma cadeira do Supremo Tribunal Federal mostra que está, sim, em curso, um processo de utilização do Estado brasileiro como ferramenta de um projeto religioso que, em si legítimo, fere os próprios fundamentos da Reforma Protestante que atacou a promiscuidade entre Igreja e Estado.
Qualquer ideia de “competição” para ver qual confissão religiosa é danosa para um país que sempre soube – e nem assim completamente – conviver com respeito com crenças de todas as matrizes e que só por conta de alguns fundamentalistas passou a registrar casos de intolerância religiosa.
“Creio que esse país vai ser o grande celeiro do povo evangélico no mundo. Eu creio nisso. Meus irmãos e minhas irmãs: em dez anos nós já seremos maioria neste país. Em dez anos. Não é porque é um processo de dominação. É um processo de restauração. É um processo de conversão”,
Não é, senhor Mendonça, porque conversão é um ato espiritual e, portanto, do indivíduo, não o resultado de uma “conquista de mercado” indiscriminada. Não é um produto que se procura impor aos “concorrentes” e que, por isso, aceita ser vendido por qualquer um que o queira representar sob esta vaga denominação, sejam pastores de elevadas preocupações sociais e espirituais, sejam os vendedores de feijão mágico.
Pior que isso: discriminar os brasileiros por sua fé, algo que está implícito na ideia de tornar uma confissão “a maioria em dez anos” é o que de pior se pode esperar de alguém cujo dever funcional como ministro do STF é o de não diferenciar em nada um cidadão brasileiro de outro.
Não importa que tenha esta ou aquela fé, que pode externar em atos e inspirações, não tem o direito de entendê-la como divisor dos brasileiros, um da “maioria” e outro da “minoria”.
Mais ainda, sr. André, a Corte Suprema é, por natureza, contramajoritário. Isso quer dizer que, por mais que se formem maiorias em favor deste ou daquele comportamento, o STF tem o dever de, sempre, fazer valer também o direito das minorias a não serem afogadas por ondas de pensamento dominante, inclusive nas questões de ordem moral, filosófica ou religiosa.
Portanto, não se sabe o que Mendonça quer dizer ao afirmar que “temos que nos indignar com um povo que, por vezes, não anda aos pés do nosso senhor Jesus Cristo.”
Opa! Que conceito de Cristo é este que obrigaria todos a estarem a seus pés? E indignar-se com quem não tiver este sentimento íntimo? Mas não se indignar com quem nega o pão, nega a dignidade, nega a igualdade humana que a própria religião proclama?
Os que andam, ao menos da boca para fora, “aos pés do nosso senhor Jesus Cristo” merecem a mesma indignação.
Quem está se servindo da fé para glórias mundanas é o sr. André Mendonça, por ter sido indicado à Corte por ser, segundo seu ex-chefe, “terrivelmente evangélico”. Sabe Deus o que quer dizer este “terrivelmente” e o que isso tem a ver com a “guerra ideológica” que dividiu os brasileiros.
Só numa coisa Mendonça tem razão, ao dizer que “o brasileiro vai viver do sangue de Jesus”. Porque o pão, este anda escasso para milhões que não tem o que comer.