Meninos, acreditem, eu vi nascer o medo

Eu ainda não tinha seis anos.

Morava num apartamento térreo, na Travessa Miracema, no Méier, onde havia um quartinho, externo, onde eu tomava café da manhã com meu pai: para mim, com leite, para ele jamais, porque detestava – como eu, hoje, só de olhar  e sentir o cheiro do leite fervido, porque se o fervia, então.

O pão era dividido: ele comia as cascas, eu o miolo:  Cascadura e Madureira, brincadeira com dois bairros do subúrbio carioca de onde vinha a família.

Sobre a mesa, o rádio Semp, all transistor, com o tamanho “portátil” quase de uma caixa de bombons e sua capa de couro, porque era bem precioso.

Dele, saem os tons inesquecíveis da velha Rádio Jornal do Brasil e diz-se algo que eu, óbvio, não entendi. Mas que o deixou lívido, silente, logo ele que sempre falou e fala pelos cotovelos.

Saiu repentinamente, largando porta do apartamento e o pequeno portão do prédio, que tinha um jardim à frente, abertos.

O guri, claro, foi atrás, pela porta, pelo jardim, pelo portão e alguns metros pela calçada direita da pequena rua, que desembocava diante da antiga Mesbla da Dias da Cruz, onde passavam os bondes, a principal “do lado de cá” do bairro dividido pela linha férrea, onde o lado esquerdo era o “de cá” e o direito “o de lá”.

Havia tanques, não bondes.

E daí guardo a memória do único dia em que meu pai foi fisicamente bruto comigo. Depois dos livros sumindo, papéis queimados ou picados no vaso sanitário, um “tio” que apareceu por lá e depois sumiu.

Tem muito tempo: 1º de abril, depois de amanhã, há 52 anos.

Eu só voltaria a encontrar a ditadura já molecote, quando ouvi algo sobre o filho de uma professora, amiga de minha mãe, “ter sumido”.

Sumia-se.

Sumia-se do Brasil – Chico, Caetano, Gil – ou sumia-se para nunca mais.

De política não se falava, salvo nas citações muito discretas e algo debochadas à “Redentora”, apelido da “Revolução” que viera nos devolver a moralidade e a democracia.

Os “coxinhas” de então eram os lacerdistas. Tão chatos que até a um mosquito batizaram de “lacerdinha”, porque zumbia o tempo todo e irritantemente.

E ainda tinha algo melhor que hoje, ao menos. Naqueles tempos,  além dos playboys da Zona Sul, lacerdistas eram as velhas chatas – as “mal-amadas” – que implicavam com a garotada e “dedo-duro” era a condição mais abjeta que alguém poderia ter. “(al)Caguete merece cacete”.

Não vou falar da política, que descobri nos anos 70 e que era tão fácil descobrir que, em 1974, o jingle que passava na Lei Falcão – a propaganda  eleitoral só de retratos e musiquinhas –  do partido consentido de “oposição” dizia: é o M, é o D, é o B, nem precisa explicar porque.

Quero apenas falar do medo, Quero apenas falar da escuridão opressiva, daquela que o Chico cantou que “na gente deu o hábito de caminhar pelas trevas, de murmurar entre as pregas, de tirar leite das pedras”.

Eu quero sair de novo por aquela porta, por aquele portão, e descer para as ruas onde agora não há tanques, mas por onde rolam as esteiras de uma mídia que esteve atrás deles quando eu não tinha nem seis anos. E que agora ocupa a vanguarda do golpe.

Como o flautista de Hamelin, ela diz que nos vai livrar dos ratos e, depois, sua melodia hipnótica serve para levar as crianças a uma caverna escura.

Eu estive lá. Não quero voltar. Não quero meus filhos lá.

À rua, à luz.

PS. Acho que já contei parte desta história aqui. Aos que já leram, perdão: velhos repetem. Mil vezes, um milhão de vezes, se for preciso para evitar o mal àqueles a quem ele quer bem.
Fernando Brito:

View Comments (42)

  • ... Aqui na Bahia, o honesto povo trabalhador nas ruas!...

    E
    "Não vai ter golpe!
    Não vai ter golpe!
    Não vai ter golpe!"

    Bis 'n' vezes!

    ***

    Frente Brasil Popular promove ato nesta quinta-feira em Salvador e divulga agenda de atividades até o dia oito de abril

    Postado por ASCOM PT Bahia

    Frente Brasil Popular promove ato nesta quinta-feira em Salvador e divulga agenda de atividades até o dia oito de abril
    A Frente Brasil Popular/Bahia promove nesta quinta-feira (31/03) ato em Salvador em homenagem aos mortos pela ditadura militar (1964/1985) no país.
    Os manifestantes vão se concentrar às 15h na Praça da Piedade e seguem até o Campo da Pólvora onde colocarão flores no monumento aos perseguidos pela ditadura. A organização do ato sugere que as pessoas participem trajando roupa branca.
    À noite, a partir das 18h, artistas de diversas áreas promoverão nova atividade no Largo de Santana (Largo de Dinha) no Rio Vermelho. Ainda no dia 31 de março, haverá grande manifestação em Brasília com pessoas de todos os estados.
    No dia 1º de abril, (sexta-feira) lançamento do livro "O Quarto Poder", com a presença do autor, jornalista Paulo Henrique Amorim. O evento será às 17h na faculdade de Arquitetura.
    A atividade do dia 03 (domingo) com Lula foi cancelada em função de alterações na agenda do ex-presidente. Nesta data (03/04) haverá carreata para o subúrbio. A concentração será às 8h na Estação da Calçada. Antes, às 6h, panfletagem na Feira de São Joaquim.
    As atividades prosseguem até o dia oito de abril (sexta-feira).

    FONTE [LÍMPIDA!]: http://www.ptbahia.org.br/noticias/item/5203-frente-brasil-popular-promove-ato-nesta-quinta-feira-em-salvador-e-divulga-agenda-de-atividades-at%C3%A9-o-dia-oito-de-abril.html

  • Não passarão.

    Igual no texto, hoje eu vi um chefe explicando a um funcionário o que foi o golpe, e que todos devem ir a passeata.

  • É isso aí Brito, lembrar para não mais permitir e saber que amanhã, quinta-feira, dia 31, todos às ruas e depois de amanhã, e depois... continuaremos a jornada de lutas para impedir que a ditadura da desinformação golpeie a Democracia, para retroagir o Brasil novamente ao atraso.
    Amanhã, atrás do Trio Democrático, só não vai quem já morreu.

    • Engano seu, não vão os quase 70% que desaprovam o desgoverno petista, ou seja, só irão os mortadelas.

      • Paspalho, o Datafalha fez uma pesquisa mostrando que a maioria dos brasileiros não quer impeachment .

      • Achar o governo ruim não é razão de impeachment, quer dizer que tem q melhorar, se o sindicato de ladrões estivessem votando projetos de interesse do Pais, a crise virava marolinha. A globo que costuma embalar a corrupção com pesquisas. Dois dias antes da eleição 2014 as pesquisas davam vitória folgada pro campeão de delações. Um fiasco.

      • Vou responder a um dos três patetas que frequentam este blog: desaprovar não significa querer golpe. Ou tu achas que eu aprovo totalmente este governo? Só os idiotas pensam assim.

      • Nelson, o golpe não é apenas contra Dilma mas, sobretudo, contra todos os brasileiros, incluindo os mortadelas e os coxinhas do filé da fiesp.

        E contra você também, Nelson.

        Nelson, golpe de Estado é golpe de Estado.

        E numa ditadura não existe essa de "estou do lado certo" e nem esta de "eu cuido do meu, fico no meu canto e estou a salvo". Uma ditadura mata, tortura e controla tudo o que for possível para se manter. Inclusive muitos aopiadores da ditadura acabam sofrendo as conseqüências.

        Estude como foi em 64 se não for tarde demais.

  • O Medo atual seria o ajuste econômico de eventual governo golpista que venha a se instalar no Brasil. Iniciaria com fim do reajuste ao salário mínimo, desvinculação do orçamento da saúde, da educação e dos projetos sociais ( ficariam reduzido a que sobrasse) e aumento brutal da taxa de juros, com Armínio Fraga no comando. Sem contar a entrega do patrimônio nacional as multi nacionais, pois é por isso que estão financiando o golpe.

  • Sou mais novo que você com certeza, tenho algumas lembranças daquela época (ops ato falho substituir época por tempo), nasci em 68 (época do AI-5), não vi nada disso, porém lembro-me dos trabalhos de escola tendo que falar e bem de presidentes como Médici e Geisel, Figueiredo que gostava muito mais de seus cavalos que do povo e de gente, vi tudo isso e ainda criança. Lembro-me das professoras tendo que ir aos desfiles de 7 de Setembro por livre e espontânea vontade (leia-se medo), lembro-me de professoras professando que como o povo da antiga União Soviética poderia ser feliz, eles não tinham nada, não acreditavam em Deus e aqui no BR nós éramos felizes, pois além das maravilhas nacionais tínhamos o dom de acreditar em Deus. Sou religioso, acredito em Deus e também em outras possibilidades de origem divina, acredito no ser humano e como você também temo pela volta deste tempo, temo pelo policial mineiro que "se matou" por ter denunciado um importante Senador da república, temo pelas minhas aulas de OSPB (Organização Social e Política do Brasil), se falava muito e nada de importante para se aprender, somente os mantras das classes dominantes e branca do nosso Brasil varonil. enho medo desse retorno também, é uma pena que os mais jovens aprenderam a não escutar os mais velhos, é uma pena.

    • Também sou de 68... o teu relato foi com uma máquina do tempo para mim! Exceto pela crença divina, a qual meu pai abominava, fosse qual fosse, e minha mãe tentava contrabalancear para não sermos totalmente 'pagãos'. Mas o que queria destacar é uma lembrança muito forte que fazia tempo que não me aparecia... a crônica/relato do F. Brito e o teu relato me fizeram lembrar de um 'aviso' que meu pai nos dava todos os dias, mais de uma vez até: "não abram o bico para dar opinião nenhuma, nem na escola, nem em lugar nenhum, não reclamem de nada... se 'eles' escutarem... é pra já que vocês vão virar picadinho de carne e vão sumir no Guaíba, vão ser comida de peixe... e ninguém vai encontrar vocês, na verdade, ninguém vai saber de nada nunca, nunca! Vocês não sabem do que essa gente é capaz..."

      Não adiantava perguntar quem era a tal 'gente', os tais 'eles'... ele insistia que não podia dizer... mas quanto ao que 'eles' seriam capazes de fazer, nisso ele não economizava nos requintes dos cortes e recortes... depois, no final dos anos 80 e durante os 90, comecei a entender a razão de tanto pavor... e de nos assustar tanto.

      E quando penso no que essa mulher passou... 3 anos nos porões dos psicopatas, dias e noites, que deviam parecer intermináveis, nas garras (sem querer ofender nenhum animal irracional) de demônios (e esses existem, pelo que se pode deduzir); criaturas que até aos demônios poderiam surpreender...

  • Boa tarde, qdo se busca perdas com as que serão realizadas no futuro, o melhor a se fazer e luta armada ( só uma opinião). Se continuar deitado em berço esplêndido vai ocorrer tudo o que eles planejaram para nós, filhos e netos.

  • Realmente a situação atual é grave... Várias seres que estavam na "geladeira" estão saindo das sombras para assumir protagonismos perigosos...

  • E eu era um pouco maior, treze anos e morávamos em São Paulo próximo da Base Aérea de Cumbica, na rota de decolagem e pouso.
    Me lembro muito bem que a um dado momento passamos a ouvir o som estridente de uma esquadrilha de Gold Meteor, antigos aviões da FAB que levantavam voo para apoiar o golpe e o deslocamento de tropas na Via Dutra.
    As bombas nos aviões não precisaram ser usadas porque o Amaury Kruel traiu Jango por US$ 2 milhões entregues em uma maleta. Essa entrega teve participação ativa da FIESP, a mesma que hoje é presidida por Paulo Skaf.
    Mais um a desonrar a colônia da qual faço parte.
    Acessem o link e vejam o amigo dele que é ex-sindicalista e hoje é deputado.

    https://www.youtube.com/watch?v=XNkmHiVxbns

    Faz dois anos fui Santiago do Chile e no Museu da Memória assisti ao filme em que aviões do mesmo tipo bombardeavam o Palácio de La Moneda e alguns outros lugares do centro de Santiago, onde partidários de Allende se concentravam.
    Conhecidos que tenho naquela cidade que são da mesma época me disseram que o Rio Mapocho que corta a capital era o lugar da "desova". Naquele dia eram incontáveis os cadáveres levados pela água.
    Essa gente que bate panelas, apoia um juiz que condena porque "acha", completamente imbecilizada pela mídia mais canalha que existe no mundo, não tem noção do que é isso.

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