Mestre Joel fala por mim: vamos digerir a ofensa com nosso orgulho e alegria

Aos meus amigos e leitores “politicamente corretos” – que me condenaram por achar que “embarco” numa onda que é no fundo racista – faço questão de reproduzir o magnífico artigo de Joel Rufino dos Santos, na Folha.

Joel, um intelectual brilhante, veterano historia dor e lutador da cultura brasileira- com quem partilho um passado brizolista e memórias de um tempo de que ele talvez não se lembre, porque eu era um menino e meu pai amigo de outra historiadora negra, a Dulce – vai ao mesmo ponto que atingiu Daniel Alves: o problema é que deixou de ser vergonhoso ser racista.

Ao contrário, os “intelectuais” da nova direita (existe direita nova?) procuram desqualificar as lutas históricas deste país dizendo que não há racismo e que o movimento anti-racista é arcaico e simplista –  da mesma forma como torcem o nariz para o nacionalismo.

A barbárie?

Não, essa é natural, é a lei do “mercado” transposta para o social.

Este tempo exige de nós que percamos a vergonha, também. É bom ser negro, mulato, mestiço, brasileiro. Nos orgulhamos disso, embora isso também não nos faça melhor do que ninguém, exceto num sentido: sendo assim nunca nos tratarão  impunemente como seres humanos ou povo inferiores.

Intelectuais mansos viram conservadores, podem crer, porque mudar significa não ser manso e fazer barulho.

Quando ficamos com medo do inconvencional, da alegria, da irreverência, somos mais fracos, porque somos mais tristes.

Mas quando a gente encara, de cabeça erguida, e devolve devidamente digerida a banana que nos lançam, tiramos nossa dignidade do particular e a colocamos onde ela precisa estar para produzir mudança: nas ruas.

Banana é bom e faz crescer

Joel Rufino dos Santos

Há 70 anos, havia consenso entre os analistas sobre o declínio do racismo antinegro no Brasil. Modernização capitalista, miscigenação intensa e continuada garantiam essa previsão. A promiscuidade entre as raças, para o bem e para o mal, impedira a segregação –que marcava, essa sim, o caso norte-americano.

Os brasileiros negros, quando se organizavam em clubes recreativos, de autoajuda, escolas noturnas profissionalizantes, declaravam querer isso: integrar o negro, fazendo-o valer mais no mercado de trabalho para, dessa forma, participar do progresso nacional. Queriam se sentir tão ou mais brasileiros que os outros.

Após 125 anos do fim do escravismo –do escravismo, porque o trabalho escravo ainda existe–, as manifestações de racismo antinegro explodem nos estádios brasileiros.

Muitos se surpreenderam com a agressão da torcida do Mogi ao meia Arouca, do Santos, em março, no dia seguinte à agressão sofrida por um juiz no Rio Grande do Sul. No entanto, desde que o futebol virou uma profissão, lá por 1930, grandes craques negros –um Fausto, um Jaguaré, um Valdemar, um Leônidas, um Zizinho, um Pelé– e pequenos, cujo número é infinito, foram hostilizados e prejudicados pelo racismo. Os que agora se surpreendem –cronistas, apresentadores, jogadores, técnicos– não aprenderam na escola como nosso país se formou. De brincadeira, vão dizer que faltaram a essa aula. Não sejam rigorosos consigo mesmos, os que foram à escola não tiveram essa aula. Monteiro Lobato confessou que a única coisa que se lembra da história do Brasil é que o bispo Sardinha foi devorado pelos caetés.

Todos sabem que o Brasil teve escravidão. Alguma coisa nos impede de saber mais. Em alguma aula do curso elementar, nos disseram que “os negros foram escravos porque os índios não se adaptaram à escravidão”;. Como se diz na gíria, fala sério. A escravidão de índios no Brasil foi a maior da América do Sul, durou 250 anos. A dos negros, 350. O racismo, antinegro e anti-índio, é uma das colunas da formação brasileira.

O nosso racismo é envergonhado, tanto que alguém acusado de preconceito e discriminação racial se defende dizendo que tem amigos e, às vezes, até parentes negros. Diante de uma ofensa racista, sentimos vergonha pelo ofensor –no fundo, de nós mesmos. Tinga e Arouca são artistas doces e inteligentes da bola, que vergonha por quem os agrediu! Temos racismo em todas as suas formas –o preconceito, mais brando, a discriminação, mais eficaz, o racismo propriamente dito, estrutural, que organizou as nossas relações de trabalho, nossos hábitos, nossa moral pública.

No Carnaval, um bloco cantou: “Olha a cabeleira do Zezé, será que ele é, será que ele é?”. O que se insinua aí é que todos sabem que ele é, mas precisam comunicar a condição do Zezé. Bom, essa é uma peculiaridade do racismo brasileiro: como tem vergonha de ser, é preciso uma rede Brasil curtir a novidade, sem exceção. O país sempre foi racista –e chega a comover o esforço de militantes do movimento negro para convencer o Brasil do óbvio.

Por que a perda da vergonha? Um dos vetores deve ser a barbárie, palavra que tem milhares de acepções. Aqui é a vida que transcorre toda no estágio dos instintos primários: reproduzir, comer, sobreviver. Ou dito de outra maneira: sexo, consumo, violência. Há uns 50 anos, a vida do mundo civilizado parece caminhar para trás, não se diferenciando mais da vida primitiva. Não há hoje povo conhecido sobre a Terra que seja bárbaro. Todos criaram uma teia, às vezes fina, às vezes densa, de civilização –poesia, música, curiosidade intelectual, língua, filosofia, fundamento (outro nome de tradição) e destino (transcendência). Salvo as massas urbanas. Essas estão prontas, “everytime”;, “everywhere”;, para o espetáculo das torcidas organizadas.

A vergonha de ser racista é que acabou, ou está acabando. Se na Copa pularem feito macacos atirando bananas no campo, dou meu conselho aos jogadores negros. Façam como Daniel Alves esta semana: descasquem as bananas e comam. Essa também é uma tradição brasileira: o que vem a gente traça. No final do processo digestivo, a ofensa se transformará no que verdadeiramente é –aquela “coisa” amarelada.

Fernando Brito:

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  • Linda matéria.Parabéns ao blog pela iniciativa em publiciza-la!Quero aproveitar o ensejo para fugindo do tema acima,para de novo,lamentar a tão decantada DEMOCRACIA DE CLASSES e afirmar que sob ela,o povo fica somente com a arma do voto,enquanto a classe dominante,fica com a IMPRENSA,O DEPARTAMENTO DE PROPAGANDA,O EXÉRCITO,O CONGRESSO,O JUDICIÁRIO E DEMAIS ÓRGÃOS EXISTENTES.O povo,fica com o voto!E os pagamentos vultuosos pelos protagonistas que defendem a classe dominante.Em suma,voto versus o resto todo.Crer nisso é de uma ingenuidade que ofende até um MACAQUINHO DE TRÊS ANOS.

  • A perda de vergonha é fácil explicar: a direita brasileira está se "teapartyzando". Nas redes sociais e em turbas, ela não está mais com medo de dizer o que é e o que pensa. O próximo passo vai ser se institucionalizar. O maior erro vai ser tratá-los como excêntricos, como folclóricos, como "neobolsonaros" etc. Talvez não consigam se eleger diretamente, mas vão ajudar muito a direita mais envergonhada, mais com cara de "civilizada", tipo o pessoal do... Ah, vocês sabem quem!

  • Tem um lado da questão que talvez nem chegue a ser o mais importante, mas creio valer a pena mencionar. Se os preconceituosos estão tão salientes a ponto de sair do armário e se organizarem em torno dos partidos de direita que têm a sua cara (no Brasil os partidos de oposição) é porque, por um lado existe espaço para que isto aconteça e por outro porque estão se sentindo em fase de extinção se não fizerem nada pela sua preservação. Rejeitam o formol, então partem prá cima. Eles têm ainda algum poder, porque suas raízes matérias, suas riquezas e poder econômico ainda não se extinguiram ou mudaram de mão. Se acreditamos no desenvolvimento social (não digo evolução porque o momento é inoportuno face a tanta besteira que se está dizendo sobre esta teoria por causa da tal banana e do tal macaco) devemos apertar o cerco contra estas múmias vivas que estão tentado desenrolar suas gazes e devolvê-los à insignificância lhes reservam os fatos históricos.

  • Texto que um amigo no facebook, Marco Sartori, postou. E com o qual concordo plenamente:

    "Para aumentar minha voz ao coro. Nem toda flor cheira bem, e quando uma campanha com fundo social é abraçada por artistas que não sofrem o preconceito, há de se desconfiar. Não, não somos todos macacos. Anos de luta para não serem chamados assim, e numa só tacada alguma dúzia de celebridades que estão ae só pra se auto promover faz um dos maiores desserviços à luta contra o racismo. Daniel Alves reagiu da melhor forma possível à agressão. Mas isso não diminui o preconceito e nem ameniza o ato contra o jogador. Não tem a ver como sermos da mesma espécie (estranho ver um conceito darwiniano proferido por tantos criacionistas, por sinal), quando o negro é chamado de macaco é pejorativamente, não caracteriza espécie, e isso é cultural, arraigado dentro da nossa sociedade, e não é usando de hashtags e fazendo piada que o preconceito e a violência vai acabar da noite pro dia.
    Parafraseando o coletivo negro da USP, nossa sociedade é tão racista que mesmo em uma campanha contra o racismo ela ainda consegue ser racista".

    O que precisa ser compreendido é que essa campanha não vai mudar o sentido que a palavra "macaco" é usada ao se referir aos negros. É num sentido ofensivo, de humilhar, ofender. O Fernando Brito, ao dizer que pode usar essa referência pra ele, fala algo extremamente insensato, na medida que não é ele que sofre com racismo diariamente, não é ele que ouve a palavra "macaco", tentando chamá-lo de alguém inferior.

    E toda vez que alguém usa o termo "politicamente correto" um panda morre na China. Seres desprezíveis como Danilo Gentili e Rafinha Bastos utilizam essa expressão totalmente sem fundamento. O Fernando Brito acha que essa campanha subverte a referência "macaco", que é politicamente incorreto. Mas não, ela apenas é reafirmada e se justifica usá-la como piada. Pessoas moralmente questionáveis como Reinaldo Azevedo, Aécio Neves e Luciano Huck apoiaram a campanha. E toda vez que o Reinaldo Azevedo apóia alguma ideia, pode ter certeza que o contrário dessa ideia é o que deve ser apoiado.

    E por que a maioria dos artistas e famosos que apoiaram a campanha são brancos? Por que não compreendem a questão do racismo com profundidade, assim como o Neymar compreende, jogador que até pouco tempo não identificava como negro, e não sei se agora passou a se identificar.

    O que eu posso dar a vocês, Fernando Brito e leitores que concordam com esse absurdo, é os meus parabéns. Vocês se igualaram ao nível de compreensão pedestre de pessoas como Reinaldo Azevedo e Luciano Huck.

  • O "publicitário" encarregado da imagem do Neymar, já assumiu que foi ele quem deu a idéia para pousar com o filho e bananas, e a empresa dele que desenvolveu a #somostodosmacacos....enfim, celebridade engajada uma ova! Pura publicidade. Aliás, o site do Luciano Huck está vendendo camisetas á R$ 69,00 com a estampa "somos todos macacos".

  • Acho que o protesto já foi feito.
    Não duvido nem um pouco de que haja alguém capaz de botar algum veneno em bananas para serem arremessadas futuramente.
    Destaco o trecho certeiro:
    "Aqui é a vida que transcorre toda no estágio dos instintos primários: reproduzir, comer, sobreviver. Ou dito de outra maneira: sexo, consumo, violência."

  • Grande matéria! O grande Joel Rufino sabe que há 500 anos nós, negros sempre fizemos uma limonada dos limões que nos foram dados - haja vista a tão festejada feijoada. Esse ato de o Daniel Alves comer a banana que o idiota lançou para ele foi o gesto mais simbólico, inteligente de fazer a limonada com o limão atirado para ele. Sou otimista e creio que estamos no caminho certo para, bem mais cedo do que se pensa, fazer os brancos racistas entenderem que a cor da pele é nada para se fazer comparação. Cabe a nós não entrar na vibe deles! A violência não leva a nada. Atitudes como essas mostram que - não a superioridade racial - mas o fato de ignorar a ofensa dói mais do que retribuir com xingamento. Aí está a forma pela qual o ofensor fica chocado e se questionando de o por que o ofendido não deu a resposta que ele estava esperando. Deve estar se questionando até agora e a banana sendo o viral do momento.

  • Gozado, quando meus antepassados italianos vieram para cá substituir os escravos, os negros eram livres, mas os italianos ERAM ESCRAVOS BRANCOS! Pois para pagar a "passagem, documentos, estadia" precisavam trabalhar ANOS. Só que o salário era menor que o preço do ALUGUEL DAS SENZALAS onde - advinhe quem morava lá agora, sim os italianos...
    História esta ESQUECIDA. Mesmo assim por algum motivo os ITALIANOS e seus descendentes conseguiram prosperar, enquanto os descendentes dos negros (não todos, veja bem) precisam de política afirmativa. E pior, eu ainda sou culpado porque meus antepassados (que viviam na itália, claro!) exploravam os negros escravos.
    E agora eu pago imposto para sustentar esse BANDO DE VAGABUNDOS.
    Fora Dilma, fora PT, fora MENTIRA HISTÓRICA!
    Ora, va tomar naquele lugar!

    • História esquecida de fato. Quando houve a abolição da escravatura, em 1888, o governo simplesmente assinou um documento libertando os escravos. De forma irresponsável, incompetente e desprezando o destino que teria a população de negros do País, o governo os libertou sem haver nenhuma política social para eles, sem lhes proporcionar acesso a trabalho, escola e nem mesmo ao mínimo necessário para sua sobrevivência.
      É absurdo comparar a situação dos ex-escravos com a dos primeiros imigrantes, pois os ex-escravos não tiveram direito a nenhuma forma de se estruturarem como cidadãos, não tiveram direito à educação, eram analfabetos, muitos haviam sido separados das famílias, não tiveram nenhum tipo de indenização do Estado pela vida toda de escravidão, não lhes foi dado nem mesmo o que era fundamental para sua sobrevivência: um trabalho assalariado. Com isso, muitos ficaram na miséria total, na mendicância, nas piores condições de vida possíveis, destinados ao subemprego, à favela, à perpetuação da miséria nos seus descendentes. Já os imigrantes europeus, mesmo sendo pobres e tendo também sido explorados pelas elites racistas, egoístas e direitistas da época, ao menos tinham um emprego, um salário, comida, roupas, moradia, e tinham algum conhecimento de seus direitos, algum grau de escolaridade, ou experiência no comércio ou na indústria, uma base familiar, etc. Com o tempo e o desenvolvimento urbano das cidades, os trabalhadores imigrantes organizaram-se em sindicatos, reinvindicaram melhores condições de trabalho, e a partir da base de que dispuseram, prosperaram, a ponto de alguns de seus descendentes hoje, se sentirem tão superiores que pensam e agem de forma mais parecida com aqueles que exploraram seus antepassados imigrantes.

  • Não é preciso ofender verbalmente, com gestos ou objetos para que possamos considerar um país racista.
    No Brasil, basta analisar os dados de assassinatos, desemprego, população carcerária, escolaridade, mercado de trabalho.
    No futebol, quantos técnicos são negros? É um cargo estratégico. Por quê não há negros?
    No ambiente empresarial, qual exemplo de CEO negro que temos além de um ou dois casos esporádicos?
    Eu acredito que o Brasil seja um dos países mais racistas do mundo e do pior tipo, velado. O negro é segregado da vida economica, social e política do país desde a abolição.
    O que a mídia faz com nossa população negra é surreal. Além de golpista é racista. Nunca se debateu a questão profundamente.
    As escolas não ensinam a história do Negro no Brasil.

    O que se faz nesse país com a questão do negro é um absurdo. Espero que o futuro nos reserve uma condição melhor.

    Att.

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