Caetano Veloso, um imenso poeta que só se obscurece quando sua necessidade imensa de aparecer eclipsa seu brilho, cantou em seu “Milagres do Povo”:
Quem é ateu e viu milagres como eu
Sabe que os deuses sem Deus
Não cessam de brotar, nem cansam de esperar
E o coração que é soberano e que é senhor
Não cabe na escravidão, não cabe no seu não
Não cabe em si de tanto sim
Nesta véspera de Natal, crer no Jesus Deus é não é o que nos separa.
Mas, certamente, crer naquele Deus humano – e assim conferiu divindade aos homens – é o que nos une.
Embora a ganância tenha feito do Natal um dia onde os shoppings são o templo e os presentes sejam uma espécie de oferenda a pedir perdão por nossas ausências – afetivas, paternas, filiais, fraternais – este dia, ao menos este dia, deve nos procurar igualar e encontrar.
Talvez, um dia, este país descubra que é possível que os outros 364 dias do ano também possam ser, à sua maneira, um dia de Natal.
Um dia onde milenar capacidade das histórias de representar em cenas os mais profundos significados possa mostrar que um deus, ou um homem melhor que todos, possa nascer num recanto miserável e, ainda assim, ser um símbolo de tudo o que de melhor possamos imaginar num ser humano.
Que centenas, milhares de homens com aquela grandeza pudessem ter sucumbido de fome, de doença, que pudessem ter morrido num calvário sem cruz.
Por isso, trago hoje um conto de Rubem Braga, talvez o maior cronista brasileiro, escrito há quase 50 anos, de uma tristeza pungente, que prepara os nossos corações para nossos deveres em 2014.
Por nossos irmãos na condição humana, por nossos órfãos da dignidade que ainda teimam em existir, à espera de um milagre que nós temos o dever de fazer.
Porque, como ensina o texto bíblico, sem obras, a fé é vã.
E nossa fé no Brasil e na felicidade do povo brasileiro, não pode, por Deus, ser vã.
Um conto de Natal
Rubem Braga
Sem dizer uma palavra, o homem deixou a estrada andou alguns metros no pasto e se deteve um instante diante da cerca de arame farpado. A mulher seguiu-o sem compreender, puxando pela mão o menino de seis anos.
— Que é?
O homem apontou uma árvore do outro lado da cerca. Curvou-se, afastou dois fios de arame e passou. O menino preferiu passar deitado, mas uma ponta de arame o segurou pela camisa. O pai agachou-se zangado:
— Porcaria…
Tirou o espinho de arame da camisinha de algodão e o moleque escorregou para o outro lado. Agora era preciso passar a mulher. O homem olhou-a um momento do outro lado da cerca e procurou depois com os olhos um lugar em que houvesse um arame arrebentado ou dois fios mais afastados.
— Péra aí…
Andou para um lado e outro e afinal chamou a mulher. Ela foi devagar, o suor correndo pela cara mulata, os passos lerdos sob a enorme barriga de 8 ou 9 meses.
— Vamos ver aqui…
Com esforço ele afrouxou o arame do meio e puxou-o para cima.
Com o dedo grande do pé fez descer bastante o de baixo.
Ela curvou-se e fez um esforço para erguer a perna direita e passá-la para o outro lado da cerca. Mas caiu sentada num torrão de cupim!
— Mulher!
Passando os braços para o outro lado da cerca o homem ajudou-a a levantar-se. Depois passou a mão pela testa e pelo cabelo empapado de suor.
— Péra aí…
Arranjou afinal um lugar melhor, e a mulher passou de quatro, com dificuldade. Caminharam até a árvore, a única que havia no pasto, e sentaram-se no chão, à sombra, calados.
O sol ardia sobre o pasto maltratado e secava os lameirões da estrada torta. O calor abafava, e não havia nem um sopro de brisa para mexer uma folha.
De tardinha seguiram caminho, e ele calculou que deviam faltar umas duas léguas e meia para a fazenda da Boa Vista quando ela disse que não agüentava mais andar. E pensou em voltar até o sítio de «seu» Anacleto.
— Não…
Ficaram parados os três, sem saber o que fazer, quando começaram a cair uns pingos grossos de chuva. O menino choramingava.
— Eh, mulher…
Ela não podia andar e passava a mão pela barriga enorme. Ouviram então o guincho de um carro de bois.
— Oh, graças a Deus…
Às 7 horas da noite, chegaram com os trapos encharcados de chuva a uma fazendinha. O temporal pegou-os na estrada e entre os trovões e relâmpagos a mulher dava gritos de dor.
— Vai ser hoje, Faustino, Deus me acuda, vai ser hoje.
O carreiro morava numa casinha de sapé, do outro lado da várzea. A casa do fazendeiro estava fechada, pois o capitão tinha ido para a cidade há dois dias.
— Eu acho que o jeito…
O carreiro apontou a estrebaria. A pequena família se arranjou lá de qualquer jeito junto de uma vaca e um burro.
No dia seguinte de manhã o carreiro voltou. Disse que tinha ido pedir uma ajuda de noite na casa de “siá” Tomásia, mas “siá” Tomásia tinha ido à festa na Fazenda de Santo Antônio. E ele não tinha nem querosene para uma lamparina, mesmo se tivesse não sabia ajudar nada. Trazia quatro broas velhas e uma lata com café.
Faustino agradeceu a boa-vontade. O menino tinha nascido. O carreiro deu uma espiada, mas não se via nem a cara do bichinho que estava embrulhado nuns trapos sobre um monte de capim cortado, ao lado da mãe adormecida.
— Eu de lá ouvi os gritos. Ô Natal desgraçado!
— Natal?
Com a pergunta de Faustino a mulher acordou.
— Olhe, mulher, hoje é dia de Natal. Eu nem me lembrava…
Ela fez um sinal com a cabeça: sabia. Faustino de repente riu. Há muitos dias não ria, desde que tivera a questão com o Coronel Desidério que acabara mandando embora ele e mais dois colonos. Riu muito, mostrando os dentes pretos de fumo:
— Eh, mulher, então “vâmo” botar o nome de Jesus Cristo!
A mulher não achou graça. Fez uma careta e penosamente voltou a cabeça para um lado, cerrando os olhos. O menino de seis anos tentava comer a broa dura e estava mexendo no embrulho de trapos:
— Eh, pai, vem vê…
— Uai! Péra aí…
O menino Jesus Cristo estava morto.
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É isso que me faz perder a fé na humanidade, muitas vezes.... Como é que num mundo único e tão pródigo como o nosso, onde se prega a fraternidade cristã e os valores democráticos, pode haver tanta gente miserável, morrendo de fome, enquanto outros poucos, esbanjam como se não houvesse amanhã ?!? Serei um tolo ?!? É assim mesmo que a humanidade avança: sendo mesquinha ?!? Não quero crer nisso ...
“ANOS tuKKKânus LEWINSKYânus NUNCA MAIS !!! NO PASSARÁN !! VIVA GENOÍNO !! VIVA ZÈ DIRCEU !! VIVA A LIBERDADE, A DEMOCRACIA E A LEGALIDADE !! VIVA LULA !! VIVA DILMA !! VIVA O PT !! VIVA O BRASIL SOBERANO !! LIBERDADE PARA JULIAN ASSANGE, BRADLEY MANNING E EDWARD SNOWDEN JÁ !! FORA YOANI e MÉDICOS COXINHAS !! ABAIXO A DITADURA DO STF DE 4 PARA A GLOBO !! ABAIXO A GRANDE MÍDIA CORPORATIVA, SEU DEUS 'MERCADO' & TODOS OS SEUS LACAIOS & ASSECLAS !! CPI DA PRIVATARIA TUCANA, JÁ !! LEI DE MÍDIAS, JÁ !! "O BRASIL PARA TODOS não passa no SISTEMA gloBBBo de SONEGAÇÃO - O que passa SISTEMA gloBBBo de SONEGAÇÃO é um braZil-Zil-Zil para TOLOS”
Deve ser porque DEUS veja todos como seus filhos.
Ver outro passando necessidade é visão nossa, não significa
que ele precisa de algo, a não ser que peça.
Tentar imaginar que o que temos traria bem estar para outro
acredito que é egoísmo.
Quantas vezes demos um presente e achamos que ele deve ser
bem aceito, ou é ingratidão..
OFERECER...aquilo que achamos o que é bom, é importante, e doar
sem ver a quem...
Jesus, fez um milagre forçadamente apenas para o cego das piscinas,
havia um motivo maior, ressucitou vários porque alguem lhe pedira, mesmo sabendo que morreriam após o seu tempo...
Para "nós" o maior mal é a morte para todos...porem acontece
Ofereço este pensamento, caro amigo....
Sabe quando o pé atola, inesperadamente? E a certeza do atolamento sobe como um raio até o centro da consciência? É claro, o pé atolou! Mas que porra de certeza! É assim que acontece quando olho pro lado.
"Os bons votos de um ano feliz são rituais. Não passam de simples votos, pois não conseguem mudar o curso do mundo onde os super-poderosos seguem sua estratégia de dominação global. Sobre isso é que precisamos pensar e até rezar pois as consequências econômicas, sociais, culturais, espirituais e para o futuro da espécie e da natureza podem ser nefastas.
Muitos como J. Stiglitz e P. Krugman esperavam que o legado da crise de 2008 seria um grande debate sobre que tipo de sociedade queremos construir. Erraram feio. A discussão não se deu. Ao contrário, a lógica que provocou a crise foi retomada com mais furor. Richard Wilkinson, um dos maiores especialistas sobre o tema desigualdade foi mais atento e disse, há tempos, numa entrevista ao jornal Die Zeit da Alemanha: ”a questão fundamental é esta: queremos ou não verdadeiramente viver segundo o princípio que o mais forte se apropria de quase tudo e o mais fraco é deixado para trás?”.
Leonardo Boff
http://www.cartamaior.com.br/?/Coluna/O-funesto-imperio-mundial-das-corporacoes/29872
Depois de um Rubem Braga, por que não um pouco de Maiakóvski?
"O século 30 vencerá! Ressuscita-me para que ninguém mais tenha que sacrificar-se por uma casa, um buraco. Ressuscita-me para que o Pai seja ao menos o Universo e a Mãe, no mínimo a Terra".
Vladimir Maiakóvski
Miruna é minha Personalidade do Ano
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Postado em 21 Dec 2013por : Paulo Nogueira
O artigo abaixo, de minha autoria, foi publicado originalmente no site Carta Maior.
Com uma aluninha na Escola da Vila
Com uma aluninha na Escola da Vila
Miruna. Poucas pessoas me impressionaram tanto, em 2013, quanto Miruna, a filha de Genoino.
As circunstâncias revelam a pessoa, sabemos todos. E no drama de seu pai, perseguido implacavelmente por Joaquim Barbosa e defendido tibiamente pelo PT, Miruna se mostrou um colosso.
Quem haveria de supor que por trás de uma jovem mulher tão doce e tão delicada estava uma leoa? Sua ira santa passará para a história como um testemunho do suplício ignominioso imposto a um homem que dedicou sua vida à luta por um país socialmente justo.
O drama de Genoino tem extremos de caráter. De um lado, você tem Joaquim Barbosa, impiedoso, vingativo, um homem que parece se comprazer no sofrimento alheio.
Joaquim Barbosa é o antibrasileiro, a negação da índole generosa e cordial dos filhos do Brasil. É também, para lembrar um grande morto destes dias, o anti-Mandela. Joaquim Barbosa promove a discórdia, e Mandela personificou a concórdia. Barbosa é um deslumbrado, um alpinista social. Mandela conservou a simplicidade sempre, mesmo quando já era claro que fora um dos maiores homens de seu tempo.
A Joaquim Barbosa, no caso de Genoino, se contrapõe Miruna. Se ele é um exemplo negativo para os brasileiros, ela é o oposto. Miruna representa o que há de melhor no caráter humano: a paixão pela justiça, a perseverança na defesa de seus ideais, a devoção filial, a capacidade de se indignar diante de absurdos.
Num plano maior, o que estamos vendo nas ações de Joaquim Barbosa e de Miruna em torno de Genoino é o enfrentamento entre duas forças antagônicas.
Barbosa tem o poder. Miruna tem a verdade. Barbosa é o ódio. Miruna é o amor. Neste tipo de luta, o veredito costuma ser dado pelo tempo. Ainda que o poder prevaleça momentaneamente, a verdade se impõe com o correr dos longos dias.
Miruna é, também, uma lembrança doída da falta de combatividade do PT. É um embaraço para o partido que a voz que se ergueu valentemente contra a perseguição cruel a Genoino seja a de Miruna, e não a de seus líderes.
A prioridade um, dois e três do PT é a reeleição de Dilma, e com isso Genoino foi posto de lado. Talvez só seja efetivamente lembrado em caso de morte.
Miruna tem razão em dizer que sente vergonha do seu país. Os inimigos massacram seu pai. Os amigos se calam, ou emitem balbucios irrelevantes.
Numa perspectiva histórica, falta ao PT o que sobrou em Hugo Chávez e sobra em Cristina Kirchner: a coragem de quebrar muros e, com eles, resistências ao avanço social.
Chávez retirou a concessão de uma emissora que patrocinou uma tentativa de golpe contra ele. Kirchner não descansou enquanto não colocou de joelhos o grupo Clarín, obrigado enfim, depois de anos, a abrir mão de seu monopólio.
No Brasil do PT, a Globo segue impávida – recebeu 6 bilhões de reais em verbas publicitárias estatais nos últimos dez anos — e com ela os três ou quatro grupos que controlam a mídia brasileira.
É nesse universo que Miruna combate seu combate – numa solidão desesperadora que a história registrará como um dos mais lindos momentos de um tempo sob tantos aspectos frustrante.
Paulo Nogueira
Sobre o Autor
O jornalista Paulo Nogueira é fundador e diretor editorial do site de notícias e análises Diário do Centro do Mundo.
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TORNAR SEM EFEITO O COMENTÁRIO ANTERIOR.
A PROPÓSITO DO ESPÍRITO DE NATAL
Estamos, mais uma vez, em dezembro. Andando pela avenida inaugurada recentemente, limpa e bem sinalizada, passo pela entrada de uma favela. É uma viela mal calçada e tortuosa. Um sorriso quase adolescente, amarelado e falho, destaca-se na boca do cortiço. A cena é comum nesse Brasil tão rico, tão perverso, tão contraditório. Mas sempre me choca, sempre me causa indignação e, às vezes, medo.
Permaneço caminhando, faço-me uma indagação e suponho obviedades. De que sorria o garoto?... Faltava-lhe o mínimo em casa; o pai, analfabeto e desempregado, talvez andasse pelos botecos da vida a mendigar uns tragos; a mãe poderia estar esmolando com o filho mais novo ao colo ou por moedas trocando o corpo ou, ainda, no limite de sua ascensão social, trabalhando como faxineira.
Decerto, algo motivara o sorriso do menino. Afinal, o sorrir é uma exclusividade da condição humana, embora dela ele esteja na categoria dos banidos.
Duas quadras adiante, um enorme centro comercial estava engalanado para os festejos natalinos. Aquele imenso altar do consumismo, decorado com agressivo e duvidoso gosto, parecia delimitar a fronteira que nos separa dos excluídos do sistema.
É triste e angustiante constatar facilmente que, na segunda década do terceiro milênio da Era Cristã, a Idade Média ainda nos circunda. E o que é pior: não apenas na miséria do garoto, mas também, e principalmente, na mente da nossa elite tacanha, preconceituosa e insensível.
Do sorriso do garoto à farra do consumo, nada, nada mesmo, lembrava sequer a sombra do Espírito de Natal.
Tarcísio Furtado Arruda