Certamente não foi o propósito, mas, ao longo de toda a carta de Lula divulgada hoje pela Folha, todos os que olham os fatos e ouvem as palabras contra o celofane da história percebem o espectro de Getúlio Vargas, aquele mesmo que, no seu nascedouro e por muitos anos, o PT criticou como “pai dos pobres, mas mãe dos ricos”.
Em alguns momentos, é expressa a semelhança:
“Todos sabem que, como presidente, exerci o diálogo. (…)Trabalhei para que a inclusão social fosse o motor da economia e para que todos os brasileiros tivessem direito real, não só no papel, de comer, estudar e ter moradia.(…)O que temem? A volta do diálogo, do desenvolvimento, do tempo em que menos teve conflito social neste país? Quando a inclusão dos pobres fez as empresas brasileiras crescerem?”
Em outros, sobressai, como àquela época, a questão da soberania nacional:
“Crianças brasileiras são presas separadas de suas famílias nos EUA, enquanto nosso governo se humilha para o vice-presidente americano. A Embraer, empresa de alta tecnologia construída ao longo de décadas, é vendida por um valor tão baixo que espanta até o mercado. Um governo ilegítimo corre nos seus últimos meses para liquidar o máximo possível do patrimônio e soberania nacional que conseguir —reservas do pré-sal, gasodutos, distribuidoras de energia, petroquímica—, além de abrir a Amazônia para tropas estrangeiras”.
A questão popular é posta ao grau dos fatos, não das ideologias:
“(…)o desemprego aumenta, mais pais e mães não têm como sustentar suas famílias, e uma política absurda de preço dos combustíveis causou uma greve de caminhoneiros que desabasteceu as cidades brasileiras. Aumenta o número de pessoas queimadas ao cozinhar com álcool devido ao preço alto do gás de cozinha para as famílias pobres. A pobreza cresce, e as perspectivas econômicas do país pioram a cada dia. (…)Enquanto a fome volta, a vacinação de crianças cai, parte do Judiciário luta para manter seu auxílio-moradia e, quem sabe, ganhar um aumento salarial.”
Fica-se a pensar: o que leva pessoas como Lula, de natureza conciliadora, a se tornarem símbolos de uma radicalidade transformadora do Brasil e certamente não é em sua personalidade, como não era na de Vargas.
As respostas, é claro, não estão na habilidade política de ambos, menos ainda em ardis políticos que tenham procurado tramar. Não são, positivamente, “de esquerda”, tomada a esquerda como os nossos intelectuais de classe média o fazem.
Estão na percepção de que, desde que deixaram seus governos, a classe dominante no país, sem freios, entregou-se à sua veia desnacionalizante, cruel e opressora.
Às primeiras dificuldades, reagiram com a estupidez e o egoísmo que lhes são próprios.
E com golpes.
Num país devastado pela pobreza e pela carência, gastos sociais são um pecado inominável; no Brasil do “bico” de do subemprego, leis trabalhistas são o grande entrave ao desenvolvimento econômico e onde campeia a sonegação e os lucros não pagam imposto, o sistema tributário é a encarnação do mal.
Tudo isso deve ser abolido, em nome de um progresso que, claro, acham que pode existir – embora nunca venha – em ilhas cercadas de multidões de miseráveis e desesperados.
As fábricas de radicalismo no Brasil estão à margem direita do rio da História – verdade que, muitas vezes, usando peças produzidas no lado esquerdo.
Mas a esquerda, de verdade, em nosso país, só se radicaliza porque, aqui, a direita é aburdamente selvagem e incapaz de aderir a um projeto nacional.
O mundo, para eles, deveria estar parado nos séculos passados, quando ser colônia, multidões em senzalas ou taperas e comer raízes e sobras era a ordem divina.
E quem se insurgir contra isso, como fizeram a Vargas, fisicamente, e a Lula, por enquanto politicamente, merece a morte.
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Disseste bem... por enquanto...
Judiciário e Ministério Público brasileiros: caros, falsos moralistas e hipócritas. Se algum "nobre" membro advogado cometer um crime ou um abuso de autoridade, com todo eufemismo que prestam uns aos outros, em seu corporativismo, nada ocorrerá de punição em seus órgão de controle. Mas se um cidadão comum mandar um excelentíssimo "tomar no olho do cu", será processado com todo rigor, pois falar palavras de baixo calão é muito mais grave do que cometer crimes, ainda mais contra um magistrado. Imagina que horror chamar uma douta advogada de "filha da puta"... Fere todas as regras de etiqueta dessa egrégia sociedade hipócrita. Etiqueta = ética pequena.
Pois é, Fernando, mas existem diferenças históricas, e a direita brasileira é que parou no tempo. Não podemos acreditar que ainda tenham força para voltar ao passado. Os 20% deles não são suficientes para o projeto do atraso.
Acreditar na Democracia e no poder do voto para mudar esse estado de coisas, virou crime ! Qual o "crime" que Lula cometeu ? Querer diminuir a enorme desigualdade existente em nosso país desde sempre ? Se governar Para Todos for crime, se desejar que todos tenham de fato as mesmas oportunidades, então todo progressista é criminoso também...
Essa carta deveria ser mandada para os blogs que buscam a verdade, o direito, a democracia, com cópia para essa tal de folha.
Lula é, sim, um moderado. Mas o capitalismo não aceita menos do que a servidão de todos aos deus-mercado. O capitalismo não aceita mais NENHUMA migalha ao povo.
Não há mais espaço para moderados.
mesmo que o autor, com aquelas sobras de raiva contra a esquerda academica que sempre manteve, mesmo que o autor não goste - Lula continua sendo na ordem das coisas simples, de esquerda, esquerdissima.