É irônico que a chamada “civilização ocidental” goste tanto de dar lições aos “bárbaros” de como liberdade e democracia são valores obrigatórios e “naturais”, como se não fossem fruto dos conflitos e evoluções de nosso convívio.
Isso não é um menosprezo por estas ideias, que, afinal, vêm moldando desde cedo minha vida, mas a afirmação de que nem são iguais nem são simultâneos os processos que as transformam em realidade e em realidade sempre (ou quase sempre) em expansão, porque não são conceitos prontos e acabados, mas em permanente construção.
Ou o fato de eu estar escrevendo aqui e você, daí, lendo e, eventualmente, discutindo o que se diz aqui não é uma expansão notabilíssima do direito de expressão, quase sempre restrito àqueles que tinham o dinheiro ou o aceite do dinheiro para fazerem isso de algum lugar senão um caixote de bacalhau?
Não se trata de “relativizar” estes valores, mas de compreendê-los, também, como frutos de processos de evolução das sociedades, pelos quais se luta através da história e que fazemos que é entendido como natural hoje ter sido, ontem, “um absurdo”.
As imagens aí em cima fazem parte da impressionante e imperdível seleção de ilustrações postada por uma loja de objetos de arte, a ideiafixa.com, garimpadas por Damaris de Angelo.
São da Inglaterra, de apenas um século atrás. Nada, na história humana.
Um país que, fazia pouco, tinha deixado (em 1901) de ter como soberana Alexandrina Vitória, a Rainha Vitória, último símbolo do poder mundial dos ingleses.
Registram o momento em que, em 1909, mulheres que faziam greve de fome pelo direito de voto feminino, o que as levara à prisão, eram forçadas a ingerir alimentos contra a vontade. Eram amarradas, colocadas em posição de ponta cabeça para terem de sorver o alimento injetado por médicos, com ferimentos e dentes quebrados.
Que selvagens, não é?
Fazem o véu islâmico parecer ultraliberal estes lordes da civilizadíssima Albion.
O voto só seria permitido à mulheres inglesas muito tempo depois, em 1928, seis anos antes do que ocorreria no Brasil, no governo Getúlio Vargas.
Aqui, embora tenha havido muita luta, a ação do Estado foi muito mais branda, logo nós, que somos, diziam eles “bárbaros, selvagens”.
No ano em que as inglesas conseguiram votar, uma brasileira, Miettta Santiago, também o ganhou na Justiça, com a saudação preocupada de Carlos Drummond de Andrade, em seu poema Mulher Eleitora:
Mietta Santiago
loura poeta bacharel
Conquista, por sentença de Juiz,
direito de votar e ser votada
para vereador, deputado, senador,
e até Presidente da República,
Mulher votando?
Mulher, quem sabe, Chefe da Nação?
O escândalo abafa a Mantiqueira,
faz tremerem os trilhos da Central
e acende no Bairro dos Funcionários,
melhor: na cidade inteira funcionária,
a suspeita de que Minas endoidece,
já endoideceu: o mundo acaba”.
O mundo não acabou, como se sabe, com a mulher votando ou chefiando a Nação.
Ficou melhor, até.
Andou se livrando de algumas – só algumas – das repressões, injustiças e iniquidades que carrega às pencas, penduradas e sangrando.
Precisou ser empurrado, é verdade, mas empurrar o mundo exige arte, engenho, convicção e tempo. As causas sobrevivem a seus defensores e quem as defende, mesmo, sabe respeitar o tempo e não fazer dele a razão de seus atos.
Talvez o episódio das imagens faça alguns, embora movidos pelas melhores intenções, entenderem que nem a comida pode ser dada à força.
Como não podem ser forçadas as mudanças de valores, hábitos e convicções de toda espécie, inclusive as religiosas, como se quer fazer aos árabes, proibindo-lhes a oração, os véus e a adoração a Maomé.
Os fracos não fazem nada para que o mundo avance, já os tolos e pretensiosos querem que ele avance na sua própria velocidade, para os rumos que só ele ou um grupo traçou.
Desconfie das razões absolutas tanto do relativismo inerte e, por isso, conservador.
Continua valendo a frase que Brecht colocou na boca de Galileu: eppur si muove.
A Terra é fixa e, no entanto, se move.
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Caro amigo Fernando Brito:
Será que a Comissão Nacional da Verdade identificou esse agente da REPRESSÃO?
Leia seu artigo no blog do excelente Nassif.
"Ser contra o Je suis Charlie é ser TERRORISTA!"
O grande equívoco do lema "eu não sou Charlie", por Alessandre de Argolo
ALESSANDRE DE ARGOLO
QUI, 15/01/2015 - 11:26
Alessandre de Argolo
O problema em ostentar a frase "eu não sou Charlie" é possivelmente colocar-se do lado de quem praticou os atentados em Paris. Considero o lema "eu não sou Charlie", criado em contraponto à campanha inicial, "eu sou Charlie", que tomou conta das redes sociais em todo o mundo na semana passada em apoio ou solidariedade aos membros do jornal francês Charlie Hebdo, vítimas de um atentado terrorista, praticado por dois irmãos franco-argelinos, que deixou 12 mortos, entre eles alguns dos principais cartunistas da França, um grande equívoco.
De um lado, você tem um jornal que publicava charges críticas ao Islã (mas não só ao Islã, frise-se), especialmente contra os aspectos fundamentalistas da fé islâmica. De outro, você tem pessoas que respondiam a isso com ameaças de morte, ao ponto de terem sido capazes de concretizar as ameaças.
Quando uma pessoa diz "eu não sou Charlie", inevitavelmente está, de certa forma e num certo grau, legitimando ou até mesmo apoiando os atentados. Está dizendo que o jornal estava errado ao fazer as críticas aos fundamentalistas islâmicos e até mesmo a certos aspectos da religião (a começar por ter a iniciativa de retratar Maomé nas charges, algo proibido pela religião). Que o ideal era não as fazer e muito menos publicá-las, como sinal de respeito à crença dos que ameaçavam de morte os integrantes do Charlie Hebdo. Está concordando com a censura da liberdade de expressão, levantando pontos sobre os quais não se deve recair o pensamento crítico, com a agravante de fazer isso aderindo ao lado que se valia da violência como forma de pressionar a publicação.
Todo aquele que vê problemas nas charges, no contexto dos atentados praticados em Paris na semana passada, legitima, reitere-se, de certa forma e num certo grau, a reação violenta dos fundamentalistas islâmicos, os quais, ao que tudo indica, faziam parte de um movimento jihadista global (Al-Qaeda). Não existe um meio termo aqui. Ou as charges são legítimas, ao ponto de não gerar uma reação violenta, ou elas não são legítimas e autorizam uma reação violenta. Esse é o cenário imposto pelos fatos e pelas campanhas que ganharam as redes sociais, quais sejam, "eu sou Charlie", de um lado, e "eu não sou Charlie", de outro lado. Não adianta argumentar contra as charges e dizer que condena as mortes, quando elas foram causadas e muito pela intolerância radical contra as charges. Basta pensar que, sem as charges, não haveria intolerância dos extremistas islâmicos e todos do Charlie Hebdo estariam hoje vivos. Como assim criticar as charges não implica defender a reação violenta? Isso é claramente falso.
O problema, como se observa claramente, é criticar as charges no contexto dos atentados. Os terroristas também eram contra as charges. Não vejo qual o sentido de dizer que é contra as charges e ao mesmo tempo contra as mortes, mas afirma "eu não sou Charlie", contrariando a campanha inicial. Se é assim, "eu não sou Charlie", como um contraponto ao "eu sou Charlie", não reflete apropriadamente a posição. Afinal, está de que lado? Fica um tanto sem sentido.
Ao condenarem as charges, automaticamente concordam com a ideia de que as charges não deveriam existir, quem sabe até sob o argumento de que isso evitaria a violência. É exatamente isso o que querem os terroristas islâmicos, que as charges do Charlie Hebdo deixem de circular, de ser publicadas, que não sejam feitas. Pelo menos neste ponto, quem afirma "eu não sou Charlie" está com os terroristas: as charges são mesmo "inadmissíveis".
Concordar com terrorista não é pouca coisa. Ainda mais quando eles usam as charges para matar os outros. O erro é falar mal da charge num contexto de mortes covardes de pessoas ocasionadas precisamente pelas charges (ao menos oficialmente, são a maior motivação). Como não querem ser confundidos com defensores dos atentados? Não tem como. Isso acontece, ainda que num certo grau, pois se busca encontrar algum fator que legitime as motivações do atentado. É relativizar a culpa dos criminosos, buscando "entender" os seus motivos. É disso que se trata quando se critica as charges no contexto dos atentados. O que foi feito pelos terroristas é ou não condenável? E por que é condenável? Por que as charges podem ser publicadas? E se podem ser publicadas sem gerar violência, por que se voltar contra elas quando pessoas morreram por causa disso? Criticar as charges , no contexto do atentado ao Charlie Hebdo, termina tendo o inevitável efeito de defender a não publicação para evitar a violência. Ou seja, implica tomar partido da violência em detrimento da liberdade de expressão.
Aderir ao lema "eu não sou Charlie" tem sim essa conotação, pois o lema contrário, "eu sou Charlie", visa, acima de tudo, condenar os atentados e as mortes covardes das vítimas, principalmente dos membros do Charlie Hebdo. A campanha afirmativa, "eu sou Charlie", que tomou conta das redes sociais em todo o mundo, tem principalmente a intenção de condenar as mortes das vítimas como uma manifestação de apoio à liberdade de expressão. As vítimas foram alvo de um atentado terrorista porque insistiram na ideia de exprimir suas ideias críticas. É essencialmente disso que se trata o lema "eu sou Charlie". Se alguém se coloca contra essa campanha, está inevitavelmente endossando a violência como meio válido de impedir o exercício da liberdade de expressão, ainda que tente sustentar a sua posição criticando o jornal pela virulência das charges (alguns dizem que o jornal seria intolerante com a crença islâmica). Eu até entendo a posição de quem não concordava com as charges. Mas não concordo que, a partir dessa premissa, se negue o lema "eu sou Charlie".
Negá-lo implica tudo isso, o que seja, colocar-se contra a campanha de quem viu na morte dos jornalistas, colunistas e cartunistas, uma violência inadmissível, um violento ataque covarde contra a liberdade de expressão e contra a vida das vítimas, que não tiveram nenhuma chance de defesa quando os homicidas atiraram com fuzis AK-47 contra elas. Entre o Charlie Hebdo e os que mataram os seus integrantes, "eu sou Charlie": fico do lado da liberdade de expressão e do direito à vida. Não posso, de modo algum, negar esses direitos, ainda que as charges tenham desrespeitado valores religiosos islâmicos, fundamentalistas ou não. Nenhum desses valores está acima da vida das pessoas e do direito delas se expressarem livremente.
Amigo Fernando Brito:
Publico aqui minha resposta ao agente da repressão ainda não identificado - Alessandre de Argolo, caso eu desapareça e por sorte me encontrem com um ARGOLO preso no fundo mar ou por aí.
Caro Amigos:
Lamento informar que a Liberdade da Imprensa, de Expressão,de
Criação,do Humor,da Crítica… foi violentamente
apunhalada,confiscada,rasgada,vilipendiada,estuprada,arrasada hoje a
tarde:
Foi preso por incitamento a violência um humorista PRÓ NAZI Francês.
Faremos um Je suis Hebdo por esse pobre PRÓ NAZI?
Liberdade Absoluta tem que entrar tudo,não é assim?
O cara apenas esculhambava os JUDEUS e dava a Saudação Nazista – puro humor.
Falar de humor – o humor não tem limites…
Conhecem a piada dos Judeus nas câmaras de gás? pois é a mamãe
carregava seu bebê para a câmara de gás e encontrou seu amante
comunista e seu marido judeu…
e o bebê ao cheirar o gás disse…. Não é ótima?
E do CRIOULO feio pra Caraca agarrado pela Ku KLUX KAN, amarrado num
tronco pronto para ser queimado e seu filhinho como testemunha
exclamou… melhor ainda,né.
Sabe aquela foto de uma mãe JUDIA pelada ( que bunda gostosa,mano!!!)
e o soldado SS com rifle apontado para a cabeça da BUNDA GOSTOSA e do
bebê que ela carregava – ESSA É DUCA!!!
Se sentiram ofendidos?PHODA-SE!!! com PH e tudo – o HUMOR NÃO TEM
LIMITES – não é assim que falam?
Liberdade para o pobre perseguido humorista pró nazi!!!
Hoje no Teatro Casa Grande – os defensores os je suis Charlie estarão
lá prestando homenagem aos LIBERTÁRIOS HUMORISTA FRANCESES MORTOS e na
DEFESA DO HUMOR CRÍTICO e SEM LIMITES,farão o mesmo pelo HUMORISTA PRÓ
NAZI PRESO?
HIPÓCRITAS e HIPÓCRITAS – com os outros tudo para mim a LEI?
Ao dar exemplos como dei de “HUMOR” me sinto como um farrapo humano.
Pedro Luiz Moreira Lima
Disse tudo, Pedro, tudo!
É FFBB, brilhante! Você desnuda e demonstra, o que é sempre bom lembrar: A História é escrita pelos vencedores e o esquecimento de todas barbaridades também! http://refazenda2010.blogspot.com
Impressionante são os termos "terrorista" tão ao gosto de certos governos e da mídia, os tais terrorista são descritos como bárbaros e selvagem, quando lutam contra as potencias ocidentais. Os mesmos grupos se opondo as forças não alinhadas a OTAN são denominados de "nacionalistas". Bombardear, destruir nações, matar milhares de civis, destruir nações, seus lares, suas famílias e se apoderar de suas riquezas não são ações terrorista ao contrario, são ações legitimas pois visavam implantar a "democracia" dos ditos civilizados a esses povos bárbaros. O que ocorre depois não é mais problema dessas nações . Isto se sucede há dezenas de anos e manipulação da opinião pública como ocorre atualmente garante tal comportamento e reelege governantes.
Se apoderar de riquezas com manto de homens honestos é a cara do DEM e do PSDB. por isso eles amam tanto as potências ocidentais.
Pois é, as "pessoas de bem e direitas" sempre sabem e sempre souberam o que é certo e errado, o que é o bem e o mal, mas não se dão conta de que o que a direita considerava certo um século atrás é uma barbárie hoje, assim como muita coisa que essas "pessoas de bem" consideram errado hoje (sonegar impostos não está entre o que eles consideram errado) será certo daqui um século e vice versa ...
Charlie nao me representa, respeito credo e religiao dos outros.
Sobre isto, quando um jornalista britânico perguntou pessoalmente a Gandhi o que ele achava da "civilização ocidental", o Mahatma respondeu: "teria sido uma grande ideia!".
Je ne suis pas Charlie.
Je suis bresilien.
O MUHSE, Museu do Homem Sergipano, ligado à UFS, conta, através de suas peças, a História da ocupação do território, desde o homem primitivo, passando pelos invasores portugueses, o ciclo do açúcar, etc. Agora, o site Reino de Clio disponibiliza a visita virtual, com imagens feitas por alunos da UFS para preservação digital do acervo. Vale à pena conhecer. Onde? No Reino de Clio!
http://reino-de-clio.com.br/
Há os que não concordam com a linha do jornal (um direito que têm) mas há os que não quiseram compactuar com a linha de frente da marcha que dava a entender para o mundo que aqueles dirigentes são estandartes dos nossos valores. Não foi pouca coisa, aquilo foi simbólico pra chuchu. Não havia civis misturados a eles (não importa se por questão de segurança). A linha de frente formou um cordão de poder que transmitiu a mensagem: nosso território, nossos valores. Foi um ato de demarcação política e cultural que dividiu o mundo em dois como na guerra fria, simbolizado pelo “je suis Charlie” e não sei se os cartunistas teriam apreciado aquele cordão poderoso. Na solidariedade humana aos cartunistas, aos clientes e funcionário do mercado, à policial, sou os milhões de civis que estavam atrás do cordão. Mas sabendo que para aqueles dirigentes Igualdade e Fraternidade são coisas geopolíticas, “je suis desconfiei”.