O curso é superior, mas o ser humano é igual

Reproduzo, porque é um serviço ao gênero humano, a excelente crônica de Matheus Pichonelli, na CartaCapital, sobre o caso dos professores universitários que debocharam de um homem por estar de bermudas e camiseta – nestes dias de calor infernal no Rio de Janeiro – no Aeroporto Santos Dumont.

Embora sejam dois bobalhões, porque têm recursos de formação intelectual para compreender e recusar os preconceitos que todos absorvemos em uma sociedade preconceituosa, o problema é maior: eles são reflexo de uma divisão “censitária” que herdamos lá de trás, do país dos bacharéis.

E isso não existe apenas no Facebook ou nas rodas de condomínio. É oficial, legal. O Estado brasileiro discrimina em tudo, desde o “direito a prisão especial” até os concursos que requerem “curso superior em qualquer área” tão comuns no Judiciário e para cargos (muito bem pagos) de Fiscal. Ora, é evidente que, se serve qualquer área, não é a habilitação que o candidato recebeu na Universidade que se requer, mas o status de um curso superior. Do contrário se exigiria formação em Direito, ou em Engenharia, ou em Economia ou Contabilidade.

Exige-se o “Doutor”, não o conhecimento.

Mas há ainda pior, muito pior. É que a Universidade e a formação profissional passam a ser vistas, essencialmente, pelo que podem render ao estudante e ao profissional que de lá sairá em matéria de status e remuneração. Vai-se perdendo a visão do valor social do trabalho e o conhecimento vira uma apropriação privada. Mesmo quando ele é pago pelo dinheiro da sociedade.

Leia o belo texto de Pichonelli:

‘O empregado tem carro e anda de avião. Estudei pra quê?’

Matheus Pichonelli

O condômino é, antes de tudo, um especialista no tempo. Quando se encontra com seus pares, desanda a falar do calor, da seca, da chuva, do ano que passou voando e da semana que parece não ter fim. À primeira vista, é um sujeito civilizado e cordato em sua batalha contra os segundos insuportáveis de uma viagem sem assunto no elevador. Mas tente levantar qualquer questão que não seja a temperatura e você entende o que moveu todas as guerras de todas as sociedades em todos os períodos históricos. Experimente. Reúna dois ou mais condôminos diante de uma mesma questão e faça o teste. Pode ser sobre um vazamento. Uma goteira. Uma reforma inesperada. Uma festa. E sua reunião de condomínio será a prova de que a humanidade não deu certo.

Dia desses, um amigo voltou desolado de uma reunião do gênero e resolveu desabafar no Facebook: “Ontem, na assembleia de condomínio, tinha gente ‘revoltada’ porque a lavadeira comprou um carro. ‘Ganha muito’ e ‘pra quê eu fiz faculdade’ foram alguns dos comentários. Um dos condôminos queria proibir que ela estacionasse o carro dentro do prédio, mesmo informado que a funcionária paga aluguel da vaga a um dos proprietários”.

Mais à frente, ele contava como a moça havia se transformado na peça central de um esforço fiscal. Seu carro-ostentação era a prova de que havia margem para cortar custos pela folha de pagamento, a começar por seu emprego. A ideia era baratear a taxa de condomínio em 20 reais por apartamento.

Sem que se perceba, reuniões como esta dizem mais sobre nossa tragédia humana do que se imagina. A do Brasil é enraizada, incolor e ofuscada por um senso comum segundo o qual tudo o que acontece de ruim no mundo está em Brasília, em seus políticos, em seus acordos e seus arranjos. Sentados neste discurso, de que a fonte do mal é sempre a figura distante, quase desmaterializada, reproduzimos uma indigência humana e moral da qual fazemos parte e nem nos damos conta.

Dias atrás, outro amigo, nascido na Colômbia, me contava um fato que lhe chamava a atenção ao chegar ao Brasil. Aqui, dizia ele, as pessoas fazem festa pelo fato de entrarem em uma faculdade. O que seria o começo da caminhada, em condições normais de pressão e temperatura, é tratado muitas vezes como fim da linha pela cultura local da distinção. O ritual de passagem, da festa dos bixos aos carros presenteados como prêmios aos filhos campeões, há uma mensagem quase cifrada: “você conseguiu: venceu a corrida principal, o funil social chamado vestibular, e não tem mais nada a provar para ninguém. Pode morrer em paz”.

Não importa se, muitas e tantas vezes, o curso é ruim. Se o professor é picareta. Se não há critério pedagógico. Se não é preciso ler duas linhas de texto para passar na prova. Ou se a prova é mera formalidade.

O sujeito tem motivos para comemorar quando entra em uma faculdade no Brasil porque, com um diploma debaixo do braço, passará automaticamente a pertencer a uma casta superior. Uma casta com privilégios inclusive se for preso. Por isso comemora, mesmo que saia do curso com a mesma bagagem que entrou e com a mesma condição que nasceu, a de indigente intelectual, insensível socialmente, sem uma visão minimamente crítica ou sofisticada sobre a sua realidade e seus conflitos. É por isso que existe tanto babeta com ensino superior e especialização. Tanto médico que não sabe operar. Tanto advogado que não sabe escrever. Tanto psicólogo que não conhece Freud. Tanto jornalista que não lê jornal.

Função social? Vocação? Autoconhecimento? Extensão? Responsabilidade sobre o meio? Conta outra. Com raras e honrosas exceções, o ensino superior no Brasil cumpre uma função social invisível: garantir um selo de distinção.

Por isso comemora-se também à saída da faculdade. Já vi, por exemplo, coordenador de curso gritar, em dia de formatura, como líder de torcida em dia de jogo: “vocês, formandos, são privilegiados. Venceram na vida. Fazem parte de uma parcela minoritária e privilegiada da população”; em tempo: a formatura de um curso de odontologia, e ninguém ali sequer levantou a possibilidade de que a batalha só seria vencida quando deixássemos de ser um país em que ter dente é, por si, um privilégio.

Por trás desse discurso está uma lógica perversa de dominação. Uma lógica que permite colocar os trabalhadores braçais em seu devido lugar. Por aqui, não nos satisfazemos em contratar serviços que não queremos fazer, como lavar, passar, enxugar o chão, lavar a privada, pintar as unhas ou trocar a fralda e dar banho em nossos filhos: aproveitamos até a última ponta o gosto de dizer “estou te pagando e enquanto estou pagando eu mando e você obedece”. Para que chamar a atenção do garçom com discrição se eu posso fazer um escarcéu se pedi batata-fria e ele me entregou mandioca frita? Ao lembrá-lo de que é ele quem serve, me lembro, e lembro a todos, que estudei e trabalhei para sentar em uma mesa de restaurante e, portanto, MEREÇO ser servido. Não é só uma prestação de serviço: é um teatro sobre posições de domínio. Pobre o país cujo diploma serve, na maioria dos casos, para corroborar estas posições.

Por isso o discurso ouvido por meu amigo em seu condomínio é ainda uma praga: a praga da ignorância instruída. Por isso as pessoas se incomodam quando a lavadeira, ou o porteiro, ou o garçom, “invade” espaços antes cativos. Como uma vaga na garagem de prédio. Ou a universidade. Ou os aeroportos.

Neste caldo cultural, nada pode ser mais sintomático da nossa falência do que o episódio da professora que postou fotos de um “popular” no saguão do aeroporto e lançou no Facebook: “Viramos uma rodoviária? Cadê o glamour?”. (Sim, porque voar, no Brasil, também é, ou era, mais do que se deslocar ao ar de um local a outro: é lembrar os que rastejam por rodovias quem pode e quem não pode pagar para andar de avião).

Esses exemplos mostram que, por aqui, pobre pode até ocupar espaços cativos da elite (não sem nossos protestos), mas nosso diploma e nosso senso de distinção nos autorizam a galhofa: “lembre-se, você não é um de nós”. Triste que este discurso tenha sido absorvido por quem deveria ter como missão a detonação, pela base e pela educação, dos resquícios de uma tragédia histórica construída com o caldo da ignorância, do privilégio e da exclusão.

Fernando Brito:

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  • Não se esqueça que no Governo FHC, nos anos 90, um Engenheiro não conseguiu fazer a Caravela dos 500 anos navegar, outros conseguiram afundar uma plataforma de Petróleo, outros conseguiram vender pelo menor preço a Vale do Rio Doce, outro conseguiu o menor preço para a Empresa de Telefonia. O próprio Presidente do STF, o Joaquim Barbosa, cheio de Diplomas e de Línguas, acha que uma Empresa por ter em sua razão social o nome BRASIL, automaticamente ela é ESTATAL. Hoje mesmo, um caminhão com a placa do Brasil causou um acidente com mortes na Argentina, a apresentadora do JN se apressou em dizer que o caminhão é do Brasil, nem ao menos se deu conta que o Motorista é Paraguaio, e a Empresa dona do caminhão não é Brasileira. O complexo de vira-latas é mais acentuado na classe "A" e "B", é a turma que nunca tiveram preconceito em ir limpar banheiros ou levar cachorros para passear, ser Garçonete ou lavador de pratos nos EUA, desde que não fossem vistos por outros Patrícios, o que hoje é quase impossível. Ta ai a grande revolta.Essa turma não tem preconceito quanto a mostrar o bum bum lá fora, já aqui dentro, andam com o nariz empinado, o queixo duro e a coluna ereta.

  • Quem é Pichonelli? O que faz Pichonelli. Por que Pichonelli não escreve mais? Já virei fã de Pichonelli, seja lá quem for...

  • Fernando Brito, excelente o texto de Matheus Pichonelli, assim como também a opinião do Antonio Motta, são um alivio na tristeza e repugnância que causam a valoração humana no Brasil. Diante das preciosidades agradeço-te pelo belo fim de noite que me proporcionaste.
    No momento em que existem cotas oportunizando o acesso de classes sociais menos abonadas aos cursos superiores e que estas, passados mais alguns anos, estarão disputando o mercado de trabalho. Julgo que o ministério de educação deveria incluir, como matéria obrigatória a todos os cursos conhecimentos de sociologia. Proporcionando a todos, sem exceção, conhecimento da gênese da nossa sociedade até os dias atuais. Além de formar bons profissionais, as universidades devem também ter a obrigação de formar seres humanos com consciência social. Depois disso é o livre arbítrio que comandará. Se a vaidade, o fausto e os tapetes macios superarem a solidariedade, o que fazer? Os Barbosas da vida nunca deixarão de existir.

  • Só não comemora passar no vestibular quem ou é insensível ou já tem muito.
    Quem vem de família muito pobre e com toda dificuldade do mundo consegue passar nesse funil deve comemorar e muito, de preferencia pelo resto da vida.
    Obviamente isso não dá o direito de tripudiar sobre quem não teve essa oportunidade ou não conseguiu passar.

    Estamos há apenas 25 anos em uma democracia contínua.
    Estamos há apenas 12 anos nesse processo de construção de uma sociedade capitalista (crédito + consumidor).

    As vagas nas universidades aumentaram muito, somente agora novas universidades foram criadas, mas ainda é muito pouco. A Argentina tem algo em torno de 40% da população com curso superior, enquanto tínhamos 3% e agora estamos com apenas 8%.
    O privilégio de ter um curso superior existe sim, as estatísticas comprovam.
    Alguém se sentir privilegiado, fazer parte de uma minoria, não está errado, os números confirmam.
    Só o que não é admissível é negar a outros essa oportunidade ou se achar melhor por isso.
    Até porque um curso superior não é garantia de nada, mas é bem melhor que nada.

    Penso que temos de ter paciência, lutar por uma sociedade mais democrática e com muito mais oportunidades, pois lavagem cerebral leva tempo para escoar.

  • Parabéns! Um dos mais lúcidos e verdadeiros textos que li nos últimos tempos. Perfeita análise de nossa tragédia humana que está se tornando uma sociedade capitalista que só vê o $$$$ como forma de autoafirmação e valores referenciais. Percebo isto todo dia e sinto-me as vezes como peixe fora d´água. Educação e cultura são fundamentais. Vide o caso dos médicos brasileiros x cubanos. A diferença é que a formação dos médicos cubanos foi uma formação humanista enquanto que a dos brasileiros, uma formação capitalista. Vão exercer a medicina para enriquecer e não para ajudar o próximo. Não sou contra ninguém ganhar $$$$, mas não como fim.

  • Só uma ressalva: Freud não é indispensável à formação do psicólogo. Uma visão estreita, cultivada na maioria dos cursos ministrados por instituições privadas, associa a psicologia à teoria psicanalítica. Por ignorância, má fé ou dolo, a representação social da psicologia no Brasil foi deformada, com sérios riscos aos clientes e usuários de serviços de saúde mental.

  • Infelizmente existe muita ilusão sobre 'doutores' e professores universitários no 'país dos bachareis'.
    A verdade é que hoje o prestígio e a fama dos professores universitários se dá pela quantidade de artigos que escrevem. Não só isso como a pós-graduação é avaliada principalmente por esse critério, entre outros. Um pedido de financiamento ao CNPq e a CAPES é avaliado pela quantidade de artigos do solicitante. Não importa o conetúdo, a qualidade e a densidade ou o caráter inovador do artigo: por um critério que imita o critério mercantil só importa o 'quanto'. A 'avaliação cega' pelos pares é um grande farsa, os professores são hiperespecializados e o universo é muito pequeno. Qualquer um pode identificar com razoável probabilidade quem escreveu o que. Isso significa que além de incentivar a desonestidade intelectual - com cópia de artigos desconhecidos, auto-plágio e assinar artigos escritos por estundes de pós - a qualidade intelectual não interessa mais, importa a politicagem, o compadrio e o compromisso ideológico com que está no poder da burocracia universitária. O tal do 'intelectual' é uma espécie em extinção, só existem 'especialistas' que arrotam o senso comum mais tacanho e sem sentido.

  • Muitos manifestaram indignação com o fato relatado no excelente artigo de Matheus Pichonelli e eu não fui exceção. Mas mais que revolta, me bateu uma enorme angústia ao constatar, uma vez mais, o enorme equívoca do qual a Universidade Brasileira é protagonista.
    Se é verdade que a ciência positivista trouxe grandes avanços no campo tecnológico, também não podemos negar que esses avanços não trouxeram mais felicidade. A pergunta é simples: Somos mais felizes hoje do que foram nossos antepassados? Evidentemente, esse debate que ocorre na sociedade está presente também na universidade, onde professores, estudantes e técnico-administrativos buscam compreender a essência da vida. Infelizmente, o fato atual evidencia a pouca evolução ocorrida. Vivemos a busca desenfreada da matéria, negamos nossa mortalidade e dia após dia reafirmamos nossa angústia da morte sem, entretando, buscar compreendê-la. E é esse o resultado: Preconceito, arrogância, intolerância, violência, pobreza espiritual, mas não vamos desistir nunca, agora mais energizada ainda para lutar por mais felicidade. Lílian machado de Sá

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