O poder supremo dos “sem-voto”

Outro dia escrevi aqui sobre o que é, para mim, a maior ameaça à democracia no Brasil: a distorção do papel do Judiciário (e dos organismos que a ele se vinculam), que hoje, sensivelmente, vai assumindo o papel tutelar que, até bem próximo ao final do século passado, os militares tiveram sobre o Estado democrático e que, seja pelo exercício direto do poder, seja pela situação de temor criado sobre governos eleitos, circunscrevia a autonomia dos governantes.

Disse que os juízes, excitados pelo Ministério Público, como os generais empolgados pelo oficialato jovem e ansioso, vão se dando a arreganhos de poder.

E tal como dos fardados, não raramente nem se pode discordar dos togados nas boas intenções, aquelas que lotam o Inferno, como dizia minha avó. Mas, igualmente, jamais se pode deixar de ver que isso altera o fundamento da autoridade popular, que se exerce pelos eleitos ao Executivo e ao Legislativo, entregando-a corporações nas quais, ao contrário das outras, não há confronto de ideias, mas a obediência hierárquica como dever.

Óbvio que governantes e parlamentares não devem estar fora do controle do Judiciário – estamos em uma república – mas é essencial que este controle seja previsível, aberto, prudente; jamais surpreendente e ousado. Ousadia, aliás, é a negação da harmonia que prescreve os poderes  a Constituição.

Juízes não são, nem podem ser – como não podem ser os militares ativos – protagonistas do processo político. E, como há décadas ocorria com os dólmãs, agora a toga projeta sua sombra incontestável sobre os legitimados pelo voto, o qual  mídia – com apoio na mediocridade que construiu na política – encarrega-se de desmoralizar e o dinheiro de comprar.

Porque deles, ao contrário dos integrantes dos demais poderes, não pode o cidadão recorrer senão à própria corporação, onde em geral não há – e há cada vez menos – senão a ratificação do que os membros da corporação decidem.

Ontem, no Facebook, o professor Nílson Lage indica a leitura de um ótimo artigo que, à noite, André Araújo publica no GGN.

Reproduzo-o, com a mesma introdução do velho mestre, que já observou todos estes movimentos da História, desde a segunda metade do século passado:

(O poder) cabe, agora, ao Judiciário.
No momento, é Moro, o Príncipe das Araucárias, Visconde do Lava-jato, que dá uma de Simão Bacamarte e se dispõe a corrigir os pecados do sistema, irracional e corrupto.
Sem quem o dose, remédio perigoso. 
Pode resultar numa ditadura um milhão de vezes pior do que a mais assustadora ditadura militar: ditadores de língua empolada, que se auto-avalizam, auto-remuneram lautamente sem sentimentos de culpa, leem as leis de frente para trás e de trás para a frente, inventam princípios jurídicos convenientes com base em ciência esotérica e, sobretudo, protegem uns aos outros.
Para avaliar até onde podem chegar em matéria de equilíbrio e desprendimento, podem-se lembrar figuras emblemáticas, de Joaquim Barbosa a Gilmar Mendes.

A mudança do eixo de poder

André Araújo, no GGN

Pela primeira vez na República, o eixo determinante do Poder, aquele que rege o Estado, sai do Executivo-Legislativo e passa para o aparelho Judiciário, ai incluída a Polícia Federal, hoje parte desse aparelho e a ele completamente agregado.

A mudança foi pouco percebida pela classe politica, entretida em suas brigas internas de baixa altitude.

Quem manda é quem pode prender qualquer membro dos poderes Executivo e Legislativo a qualquer momento, através de narrativas arbitradas pelo aparelho Judiciário, sem contraste e sem possibilidade de defesa prévia para evitar a prisão, a devassa, o bloqueio de bens, a humilhação, o escracho, a liquidação de empresas tradicionais.

Quem pode prender pode ameaçar de prender e essa ameaça é o Poder de Fato.

Qualquer político hoje pode ser preso a qualquer momento pelo aparelho Judiciário conhecido como “força-tarefa”, que inclui, na prática, não só o juiz federal de Curitiba mas também os Tribunais Superiores que lhe dão aval.

No desenho do Estado Democrático que vem dos clássicos pensadores e operadores, como Charles Louis de Secondat (barão de Montesquieu), Alexis de Tocqueville, Thomas Jefferson e Alexander Hamilton, esse tipo de Estado que se contrapõe ao Estado Autoritário exige o mecanismo conhecido como checks and balances –  que seria “controles e contrapontos” – cada Poder deve ser controlado pelos outros dois, de modo a um fiscalizar o outro.

No momento atual, o governo da força tarefa não se submete ao controle dos outros dois Poderes, é absolutamente autônomo em relação a eles, é o verdadeiro poder de fato e o Estado deixa de ser democrático para ser autoritário.

O Poder Executivo e o Poder Legislativo são hoje menores e mais fracos que o governo da força tarefa que é que dá a agenda da vida política do País. Todos estão na dependência do que é resolvido em Curitiba, nova capital política do Brasil. O domínio do poder não se dá pela lei, mas pela interpretação da lei.

A garantia tradicional do Direito Positivo que é o conjunto de regras escritas que fundamenta o espirito do Estado de Direito no modelo brasileiro herdado dos princípios do Direito Romano transformado pelo Direito Civil francês foi substituído, pela falta de atenção dos outros poderes, por princípios completamente alheios ao direito positivo que é a base do arcabouço do Estado Democrático brasileiro por regras importadas de outro sistema de direito, o anglo-americano e essas Regras são implantes não assimiláveis pelo corpo legal legitimador do Estado Democrático brasileiro.

Regras como domínio do fato e delação premiada são do direito anglo-americano mas lá são aplicadas com muito maior prudência que no Brasil, a delação não se faz com réu preso e nem se vaza imediatamente o teor das delações, por exemplo. Importamos sem critério e sem cuidados, importamos como peça pirata para encaixar no mecanismo original de um sistema jurídico sólido e consolidado, hoje estraçalhado por vírus invasores.

A culpa se deve a incultura, à ignorância , à falta de bons filtros que examinem essas importações exóticas antes que virem leis e jurisprudência. Agora é um pouco tarde e só um novo regime autoritário pode expurgar esses principios estranhos que aboliram as garantias constitucionais, base do Estado Democratico de Direito.

O poder de fato, hoje, não tem ” controles e contrapontos”. Os Poderes Executivos e Legislativo não podem indagar por exemplo como se estabelecem metodos e criterios de concursos para juízes e procuradores, quais os mecanismos de promoção na carreira. No entanto o Poder Judiciario pode indagar, investigar e mudar regras dentro dos Legislativos e do Executivo, punir seus membros, mudar procedimentos, dizer o que pode e o que não pode nos outros Poderes.

 

Fernando Brito:

View Comments (18)

  • O foco dos movimentos de apoio ao governo está voltado para simples figuras executoras do golpe os responsáveis são os TOGADOS PARTIDARIZADOS E CORRUPTOS. A reforma do poder judiciário é o mau primeiro do Brasil livre e soberano...

  • De fato o judiciário hoje se transformou numa entidade que se coloca como dona absoluta da verdade. Verdade que é ditada seletivamente, uma verdadeira customização de todo arcabouço jurídico existente no planeta. Exemplo disso é a importação da teoria do domínio do fato que chegando ao Brasil foi customizada para dar uma aparênciade legalidade á um determinado julgamento. Criaram até uma tal literatura jurídica que permite condenar sem provas. Outra importação recente foi o método Guantanamo de produzir provas, melhor dizendo, customizar provas. Há também essa prática recorrente do judiciário que dependendo do freguês transforma crimes de calúnia em piada de humor. E os engavetamentos de processos quando há provas contundentes contra seus clientes preferenciais? Aí criaram um procedimento interessante de colocar tais processos em estado de coma até que o tempo decrete sua morte. Os pedidos de vistas aos processos que envolvem parceiros também podem durar uma eternidade, tudo conforme o desejo dos senhores supremos da verdade. Livres assim para ditar a verdade que querem, a expressão " vontade de Deus" pode ser substituída pela " vontade do judiciário".

  • A impressão que temos é que o judiciário é composto por uma legião de seres supremos que estão acima do bem e do mal. Qualquer questionamento contra qualquer um de seus membros vai para a lata de lixo. Eles sempre estão certos. São seres perfeitos. Qualquer semelhança da toga com as asas dos anjos é pura coincidência. Até os salários condizem com o de uma casta que detém a supremacia do conhecimento existente na face da terra. Em breve teremos que nos ajoelhar diante dessas supremas figuras. Aliás no DF, uma dessas supremas criaturas quis obrigar os advogados a ficarem de pé diante de sua suprema presença. Quem viver verá. Amém, senhores magistrados!

  • Aposto que a Laura já passou da fase de correr e já está bem escondidinha. Como parte do Clube " Eu sou Cunha" que é uma manifestação a favor da corrupção e não contra ela, a laurinha já está fazendo sua defesa bajulando a pf, um verdadeiro prato feito sob encomenda.

  • "Sem o respeito aos direitos e aos órgãos e instituições encarregados de protegê-los, o que resta é a lei do mais forte, do mais atrevido, do mais astucioso, do mais oportunista, do mais demagogo, do mais distanciado da ética." (Dalmo Dallari) A citação acima foi feita em 1982 quando o jurista Dallari criticava a indicação de Gilmar Mendes por FHC para o Supremo. Até então o STF tinha o papel constitucional de poder autônomo mas harmônico...

  • Cabe ao Congresso podar as asinhas dos togados e dos semi togados do MP, já que hoje, diante dum caso midiático, dificilmente um processo tem uma decisão diferente da desejada por procuradores. Juízes, que deveriam ser os senhores do equilíbrio institucional, agem como torquemadas, na pretensão de se buscar justiça a qualquer preço, principalmente se essa suposta justiça envolver os inimigos políticos da elite que sempre mandou e comandou - elite da qual saem a grande maioria dos juízes.

    Togados que aceitam tudo quando é para apaniguar os que têm semelhante status, até mesmo considerar difamação uma simples piada.

    A democracia não pode ser tolhida por juízes que, num país pré-capitalista com injustiças históricas nunca reparadas, raramente são punidos por conta dos seus abusos, a não ser com penas que mais são prêmios, como a aposentadoria compulsória integral.

    Necessário criar mecanismos que impeçam essa simbiose entre acusadores e juízes, uma anomalia e um poder discricionário. Um poder que quase marginaliza o ato de advogar, tornando o direito à defesa quase um crime em si mesmo, pois se o juiz já deixou claro que o investigado é culpado, por que o advogado vai ter a petulância de defendê-lo?

    Que o atual cenário obrigue juristas sérios e congressistas a buscar caminhos de conter a ousadia de quem quer suplantar a república.

  • Do alto de sua " Casa Verde " da nossa Itaguai-Curitiba , o Bacamarte faz "a diferença " ao tentar a nova velhíssima fórmula de mando " mídia/judiciário " .
    Penso que finalmente será o inicio da abertura da caixa preta dos togados do Brasil , com o descontrolado poder , " auxilio - caganeira " e demais privilégios indo para latrina à vista do futuro . Para o bem do país.

  • “QUEM PODE PRENDER PODE AMEAÇAR DE PRENDER E ESSA AMEAÇA É O PODER DE FATO.”
    Fernando Brito, excelente artigo. Apesar da argumentação muito bem fundamentada, não creio que esse poder seja tão supremo assim.
    Esse “Poder de Fato” do Judiciário (e dos organismos que a ele se vinculam), só é possível enquanto o oligopólio da mídia familiar permitir. Quem tem poder de fato é a mídia hegemônica, comandada pela Globo. Quem tem o poder de fato são os barões da mídia corporativa. Sem a Globo Sérgio Moro vira pó. Vide o exemplo do todo poderoso Joaquim Barbosa, o vaidoso e arrogante magistrado sumiu, virou volume morto. Os holofotes agora são para Sérgio Moro, o novo herói do PIG, mas, a exemplo de Barbosa, também será descartado, assim que não tiver mais serventia.
    Como afirma Paulo Henrique Amorim no seu livro “4º Poder”, ou seja a mídia (leia-se Globo), onde o algarismo “4” estampado na capa pode ser lido como “1”, ou seja, o quarto poder é na verdade o primeiro, e que também não vem das urnas democráticas.
    Nem o Judiciário com seus braços auxiliares nem a oposição golpista, sobrevivem sem o suporte da mídia oligopólica. É dos meios de comunicação de massa que vem o poder. Quem forma opinião é quem de fato possui poder.
    A blogosfera progressista ainda não se deu conta da sua força, mas ela já incomoda o status quo. Os blogueiros progressistas revelam unidade na adversidade, por força ideológica. Sobrevivem com parcos recursos e sem competição predatória, o que é inviável para a grande mídia privada.
    Acredito no poder da blogosfera progressista, porque ela é independente, espontânea, aglutinadora, formadora de opinião e tem qualidade. Falta montar uma estratégia para unificar os blogueiros. Quando isso acontecer a blogosfera progressista terá poder suficiente para mobilizar e influenciar o pensamento de milhões de pessoas.
    Juízes não falam a língua do povo, são péssimos comunicadores; quem fala por eles é a mídia partidarizada. Sem a mídia são apenas anônimos togados.

  • Concordo com Fausto Ishiai, contudo, seria necessário e fundamental termos um Congresso de homens honrados, respeitáveis, íntegros e não manipuláveis, capazes de fazer valer a Constituição acima de qualquer interesse privado, partidário ou de classe! Juízes não poderiam jamais ser vitalícios, deveriam ter mandato. Se criminosos, julgados, condenados e presos! Todo privilégio deveria ser sumariamente extinto e os abusos, incluindo de poder, severamente punidos! O Brasil e os brasileiros não devem mais tolerar a "esperteza" de aproveitadores arrogantes que constroem com artifícios, na maioria das vezes ilegais, um muro atrás do qual escondem e protegem suas trapaças inconstitucionais!

  • Se a gente pudesse rever o Brasilianas em que André Araújo foi um dos convidados, Araújo diz que nos EUA (de onde importamos tantos exemplos, excetuando os melhores) , em algumas instâncias o poder presidencial e o do executivo não se discutem. Aqui no Brasil, O ministro da Justiça é a autoridade máxima da PF, Dilma ´quem escolhe o PGR e pode demití-lo no momento em que for necessário. Ministros do STF são escolhas da presidenta e não seria somente o senado que poderia afastá-los. Só aqui no Brasil que o Judiciário virou a casa da mãe joana. Cada um faz o que quer, incluindo a republiqueta do juiz Moro. O corporativismo da turma das leis coloca como peça de decoração o tal do CNJ. Eles perderam a mão faz muito tempo.Por outro lado, se a pós-nova república paranaense montou seu esquema e se proclama a cruzada anticorrupção, por que tão seletiva a ponto de dizer "isso não vem ao caso" quando é citada nas delações figuras do PSDB ou do DEM? Se ela está tão sossegada lá na província (aqui como espaço fora do centro do poder) exercendo absoluta o poder de fato, quem a sustenta politicamente e legalmente? Não é alguma coisa que está fora de lugar, são muitas coisas, incluindo o método semelhante ao espetáculo dos holofotes midiáticos iniciado no STF durante o julgamento da ação apelidada de Mensalão. Se ela tem tanto poder assim, por que o juiz precisou receber um prêmio da empresa golpista por excelência no país como se fosse um ator de excelente seriado que mal começara?

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