O tempo e seus contratempos

Líderes políticos, como as andorinhas, não fazem seus verões voando sozinhos.

Sempre é arriscado dizer, daqui de nossa toca tropical, mas são cada vez maiores os sinais de que há uma espécie de “Primavera dos Imbecis” grassando no mundo e é tão claro que até são poucos os “otários” que acham que os as “revoluções coloridas” do Leste europeu, os levantes árabes, a eleição de Trump, a do nosso impensável presidente e, agora, os “coletes amarelos” da França são mesmo “uma rejeição à política tradicional” ou mesmo a sistemas arcaicos de poder que já não expressam as massas empoderadas pela internet e suas redes sociais.

Sim, é certo que a esquerda, ao deixar-se levar pelo engano de colocar as “pautas modernas” – identitárias, ecológicas, sexistas, todas importantes, sem dúvida – à frente das econômico-sociais, criou certa orfandade  naquelas massas, absorvidas pela cooptação que transformou em “malditas” as ideias do século 20 sobre justiça social (impostos, salários, direitos trabalhistas, redes de proteção social) e sobre a prevalência do interesse social com algum grau de regulação dos capitais, o que vem de antes, até, da famosa Lei Anti-Trust norte-americana.

Mas a essência deste movimento está na financeirização completa do sistema econômico, que já bem pouca ligação tem com as estruturas produtivas – quem é o dono de que, na produção? – e que se rege apenas por um jogo que envolve especulação e controle da tecnologia. Não há mais a ideia do “lebensraun” – o espaço vital das nações, expresso pelos nazistas, mas desde antes praticado, notadamente com a expansão dos EUA, no século 19, com o nome de Doutrina do Destino Manifesto, que guiou a triplicação do território norte-americano.

O território, hoje, é o capital volátil.

Olhado de per si, o governo Bolsonaro seria algo incapaz de se sustentar até antes de sua posse. Mas é deste aparentemente “Verão da Estupidez” que a “Primavera dos Imbecis” prenuncia que ele obtém ambiente para, mesmo com toda a inorganicidade que revela, alcançar algum grau de viabilidade, ao menos por algum tempo.

Veremos retrocessos por toda a parte e que ninguém se iluda com a “resistência” que lhes poderemos opor. Não há argumento que possa se confrontar com o núcleo de boçalidade que se despertou na sociedade com a transformação da Justiça em órgão impugnador do pensamento de matriz humanista e de justiça social. E não serão – como não foram na eleição – as pautas “identitárias” que nos darão força capaz de enfrentá-los.

Ou alguém pretende travar uma discussão séria com gente que, hoje, lota os comentários dos grandes portais a dizer que o caso dos “coletes amarelos” da frança é uma reação ao “comunista” Emanoel Macron, que meses atrás era apontado como modelo mundial por gente – se me perdoam a força de expressão – como João Dória?

Os obstáculos são outros.

Em primeiro lugar, a impossibilidade de qualquer progresso harmônico, no Brasil e no mundo, que não passe pelo distributivismo e pela inclusão. A população do mundo desenvolvido, mesmo desconsiderando as populações marginalizadas dentro deles, não chega a 20% do total do planeta. Em segundo lugar, a dificuldade de se sustentar a unipolaridade da hegemonia dos EUA, esta que o energúmeno elevado a chanceler brasileiro professa como fé, contra as resistências, de maior ou menor grau, da velha Europa, da China, da Rússia e da Índia.

Em nosso “front” interno, não se sabe se o governo Bolsonaro conseguirá os frutos de alguma parca recuperação superficial da economia, que não é impossível diante da longa recessão que vivemos. Talvez nem isso, dado o nível de improviso e selvageria que nos virá. Mas, se chegarmos ao médio prazo, é do agravamento maior da concentração de renda que virá a erosão deste pavor que se vai erguendo no horizonte do país.

É impossível governar o país sem algum projeto de construção de justiça social, exceto pela força. E força, hoje, não basta para legitimar governos, até porque a própria direita acabou com a sacralidade de respeitá-los.

A história dá voltas, está longe de ser uma linha reta. Mas, como um rio, ainda que com seus meandros, desloca-se na direção do progresso humano.

Fernando Brito:

View Comments (27)

  • Lamentavelmente, a esquerda se permitiu pautar por bandeiras que a direita sinalizava e permitiam embates, enquanto eles sobraçavam no campo econômico e social. A esquerda nunca percebeu que era na informação o grande campo de batalha para que não deixassem todo esse espaço aberto para a direita se emponderar. Foi aí que a mídia e as seitas evangélicas deitaram e rolaram, até tomar o controle remoto na mão.
    O Brasil tem o povo mais esperto do mundo, ou seja, o mais burro e preparado pra que não passemos nunca de meros cucarachas ou vira latas. Deixamos de ser um país e nos transformaram apenas num quintal.
    Eu só sei, que o sentimento no meu peito é de luto e muita perda.
    Dá uma tristeza imensa, em sentir a perda de afeto por pessoas antes que me eram tão caras... tempos modernos das informações que alienam e deformam caráter.
    Não sei, mas tenho clareza que não desistirei das minhas certezas, por saber que elas são honestas e justas. Espero um dia, resgatar dentro de mim o bom sentimento que antes tinha por pessoas do meu círculo de amizades.

    Fernando Brito, espero que já estejas melhor e melhorando, pois aqui podemos ancorar o nosso barco com segurança.

    • A esquerda percebeu que o grande campo de batalha era a comunicação, mas não tinha dinheiro para montar uma Rede Globo. Mas de boca a boca se vai ao longe, embora mais devagar.

    • Ainda que respeito a questão sentimental em relação as antigas amizades ,permita-me discordar no que vc imagina que perdeu.
      Não se sinta triste,as pessoas que vc pensava diferentes ,na verdade mostraram a cara ,caiu a máscara é isso têm o valor de não desperdiçar nem um segundo com aqueles que não merecem sua preocupação ou afeto.
      Continue com suas certezas ,tenho esse mesmo sentimento, aquele que a gente sabe ser o melhor PARA TODOS

    • Belo comentario, que todos nos consigamos um dia curar, superar este momento ruim por que passamos.

    • Sinto exatamente o que você sente.
      Há uma tristeza ao perceber que pessoas que eu considerava boas não eram tão boas assim.
      Mas o que está me chateando mesmo, me fazendo literalmente perder o sono, é a MALDADE que estão fazendo com o ex-presidente Lula.
      Para mim está claro que o judiciário brasileiro está querendo assassinar o ex-presidente. Quem deu a ordem?

      Que interesse o judiciário brasileiro está defendendo? Certamente não são os nossos.

  • Adaptando o que me falou minha filha um dia desses: os acontecimentos que me parecem tão antigos, aka Collor, e os de hoje, aka Bolso (minha vida adulta se passou entre o primeiro e o segundo), provavelmente estarão achatados no mesmo evento histórico quando vistos por um estudante daqui um século. Acho que ela queria me ver sofrer menos ao redimensionar o tempo nessa escala.
    . . .
    Talvez não seja exatamente um "engano da esquerda" se deixar levar pela pauta "moderna" e sim uma conveniência de uma direita humanamente pra_frentex. Essas questões comportamentais podem ser fortemente defendidas por expedientes na cultura de massa (aka globo ou netflix) como alto avanço e ainda assim deixarem um vácuo absoluto no campo sócio-econômico e no entendimento da política como meio válido e possível de obtenção de justiça social.
    . . .
    O que resta para pequenas e breves formigas observadoras diante de fluxos tão grandes é persistir abrindo espaço para o que parece melhor do que o que tem hoje, de preferência sem se magoar muito diante de frustrações e injustiças que também fazem parte do mesmo riozão da história. Como cantou a outra filha para quiçá também me consolar, "sempre pode piorar".

    • Se a história vem em fluxo e refluxo como quer a Marieta Severo, e acredito que ela esteja certa, então podemos fazer um gráfico de avanços e recuos do país, onde algum imortal tônus nacional, guarani, bragançabourbongaribalditupinagô, segue uma curva que tem seus mergulhos rasos para baixo, mas que termina sempre ascendente e com uma inconfundível estruturação brasílica sempre presente nos períodos de crescimento para balizar tudo. O Brasil sempre teve de tudo um pouco, por isso não se apavora com nada: Balão, avião, rádio, gado, moda, vacina, átomo, domador de rios gigantes. Martinellis e mini-Empire-States. Carnaval e futebol, que agora conseguiram matar temporariamente. Por isso tentam sempre destruir a educação brasileira antes de tudo. Transformam Paulo Freire e Anysio Teixeira, educadores das classes baixas, em demônios terroristas. Por isso decidiram intervir com as quatro patas quando perceberam que uma montanha de dinheiro tão alta quanto o Himalaia, vindo do pré-sal, iria todinha para a educação pública, e que em duas gerações transformaria o Brasil numa estrela de primeiro mundo bem mais brilhante que as outras. Mas o Brasil continua a avançar. Este novo mergulho no mar do atraso já não poderá ser tão duradouro nem tão profundo como os outros. E dele o Brasil sairá bem mais forte.

  • Acho que o Boisanado irá assumir e se afastará e por consequência do seu mal não voltará mais. Aguardemos o próximo Janeiro!!

  • Não é segredo nem para os mais adeptos desta turma que foram eleito de que o Boi Sanado não terá apoio para Governar. Falta-lhe credibilidade. Esta conversa fiada de sair dando tiros por ai de nada irá ajudar. Q que vai acontecer será o seguinte: Este turma ai que foram eleitos fará de cara tantas lambanças que o nome das Forças Armadas é que terão de carregar o ônus das lambanças. Então como sempre não havendo hegemonia entre eles e quando a coisa se complicar haverá aquela frase tão em voga: Fio feio não tem pai!! "Toma que o fio é teu"

  • á um perigo de se ter um "crescimento" do PIB, que será sempre em proveitos dos mais ricos, como foi na época do Médici e isso sacramentar um apoio maior da sociedade. Embora seja complicado comparar fatos históricos com eventos e épocas diferentes, não custa lembrar que Hitler deveu muito de seu sucesso, entre outras coisas, à redução drástica do desemprego e à melhora na vida do cidadão totalmente destruída após a quebra da bolsa de N.Y.

  • Lucido, como sempre.
    * O inimigo só pode ser compreendido no cenário global, mas a luta é local.

    Os movimentos sociais, principalmente o MST, a resistência internacional, o PT e aliados são a UNICA frente de resistência, e a LUTA é #LulaLivre

    * O resto é bomba de fumaça

  • ....e era tão insignificante qto o coiso, vem crescendo a passos largos rumo á presidente: João Dória.
    É melhor, tbem, Jair combatendo ????????????

  • Caro Fernando:
    Você disse:
    1. "Ou alguém pretende travar uma discussão séria com gente que, hoje, lota os comentários dos grandes portais a dizer que o caso dos “coletes amarelos” da frança é uma reação ao “comunista” Emanoel Macron, que meses atrás era apontado como modelo mundial por gente – se me perdoam a força de expressão – como João Dória?"
    2. "Mas, se chegarmos ao médio prazo, é do agravamento maior da concentração de renda que virá a erosão deste pavor que se vai erguendo no horizonte do país."

    Um padre francês chamado L.J.Lebret, autor de vários livros, dizia há mais de 60 anos que a próxima guerra não será entre Capitalismo x Comunismo e sim entre ricos e pobres. O caminho está sendo preparado para isso, só não vê quem não quer.

    "Contrastando com a escola de Chicago cujos "garotos de Chicago" tiraram suas idéias, vamos descobrir que a maior influência veio de um punhado de estrangeiros, todos imigrantes da Europa Central:
    Ludwig von Mises, Friedrich Hayek, Joseph Schumpeter, Karl Popper e Peter Drucker.
    Von Mises e Hayek foram os destacados avós da escola de Checago de economia de livre mercado. Schumpeter ficou mais conhecido por sua entusiástica descrição dos poderes "criativos e destrutivos" do capitalismo; Popper, pela defesa da "sociedade aberta" e artigos sobre totalitarismo. Quanto a Peter Drucke, suas publicações na teoria e na prática dos negócios nas décadas posperas do boom do pós guerra.Três nasceram em Viena, o quarto (von Mises), em Lemberg, Áustria-Hungria, hoje Lvov, na Ucrânia, e o quinto -Schumpeter - na Morávia, alguns quilômetros ao norte da capital imperial. Todos os cinco sofreram um abalo terrivel com a catástrofe que atingiu sua terra natal, a Áustria, no intervalo entre as duas guerras", extraido do livro O MAL RONDA A TERRA , Tony Judt, Ed. Objetiva.
    E nós copiando o modelo que não deu certo em outros paises, haja vista a concentração de renda e aumento da desigualdade social e da precarização.

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