Onde temos os nossos pés é para onde vai a nossa cabeça

As pessoas da foto, na madrugada fria de ontem no Rio de Janeiro, não são moradores de rua, nem se instalou uma “cracolândia” em Ipanema.

Estes – cada vez mais numeroso aqui e em toda parte – também passavam frio, mas mais adiante, segundo a boa reportagem de Fernanda Rouvenat e Elisa Soupin, no G1.

O bivaque era de jovens que esperavam abrir a loja da Adidas e comprarem um tênis “da moda”, assinado por um rapper, que custa a bagatela de R$ 1.200.

Um sapato, sem dúvida, “descolado”. Descolado de tudo, afinal, de tudo o que tem valor para quem é jovem e, na minha geração, não tinha problema algum em viver com ki-chute e, mais velho, de tênis Bamba.

O máximo de “descolamento” era de umas meninas, que bordavam alguma coisa no Bamba tingido de rosa, até que a fábrica percebesse que elas não usavam mais “sapato-boneca”, de verniz,  e já os fizesse nessa cor.

Claro que estou me lixando por quanto cada um paga por um calçado, embora eu próprio só os calce novos quando os ganho ou quando os velhos “abrem o bico”.

Mas não é possível a um homem da minha geração não se chocar com a futilidade dos desejos de uma geração que aprendeu a desamar o próximo, a simplicidade, a poesia e passa a noite assim, não numa cantoria, com  um pileque de vinho barato. Meninos e meninas que, embora dividam a calçada dura e fria com eles, não possa aprenda algo com o coração e se envergonhe de ver, ao seu lado, gente em farrapos de cobertor e papelão.

Gente que não tem para comer, em dois ou três meses, tanto quanto eles têm para pisar.

E que reclama da violência e da criminalidade, pretendendo que se leve uma guerra aos morros, para enfrentar um exército de garotos que aderem ao tráfico para terem o tênis, o boné, o cordão.

Não, não fomos frios e duros como a calçada e eles também não são assim, ficaram assim.

Ficaram por um sistema que valoriza o mérito – e não é “mérito” ser de família com dinheiro? – e despreza a solidariedade, a fraternidade o irreprimível impulso em reconhecer no outro um ser humano que não foi feito para sofrer, embora quase todos achem que um cão não possa viver largado na rua.

Ficaram assim porque muitos da minha geração esqueceram que foi coletivamente que alcançaram o que têm, porque tiveram um oportunidade (escola é o nome da oportunidade) e mergulharam num egoísmo atroz. E se tornaram pessoas incapazes de transmitir aos filhos os valores humanos.

Esqueceram que foram cabeludos e sonhadores e se tornaram uma classe média que tem um SUV mas não tem compaixão ou identidade com seu país e com seu povo.

 

Aliás, acham o Brasil um pesadelo e o povo, um estorvo.

Fernando Brito:

View Comments (23)

  • Boa tarde,

    Infelizmente alguns dos nossos jovens que não são representados por essa minoria ai não sabe diferenciar o real da ilusão. Mas o futuro mostrará a eles que pagar R$ 1200,00 reais hoje para um americano é sua maior burrice de agora! Enquanto eles boicota nossos produtos, os sem cérebro compra um par de tênis.

    • Genial, Manrel, a sua percepção da indigência moral dessa elite. Meus parabéns!

  • Uma juventude acéfala. É que isto que estes corruptos políticos brasileiros mais querem. Kitchute tb usei e no final de semana virava chuteira por causa das trevas, e o conguinha azul, com bordas brancas, arrasava. Vc quer ver uma coisa Fernando Brito, na nossa época os sandálias havaianas era coisa de pobre, hoje é uma charme.

  • Vamos refundar esse país com o Lula e seu legado. É o único legado no sentido do que vc escreve FB. É claro, tb com o legado das escolas pensadas por Brizola e Darcy Ribeiro. Esse caos nos levará ao enfrentamento rigoroso das narrativas depreciativas sobre os brasileiros humildes. Gente canalha que não hesita em classifica-los como "povo mole, fraco, sem dentes e pobre". Uma colega paulista contava rindo como ela ridicularizava sua empregada pobre, negra e nordestina qdo ela era pequena. Nem escola ou curso superior fora do Brasil teve a menor influência em sua percepção ou sobre sua atitude em relação a essa população. Ela ainda acha engraçado. Lula está correto qdo fala e insiste sobre a questão da autoestima da população brasileira. Ele fez, faz e ainda fará muito pelo Brasil real.

  • Dizem que, de 6 em 6 milhões de anos acontece algo catastrófico, devido à cavalgada do sistema solar pelo "tecido" da galáxia. E que estamos no "pico" de um destes períodos. E que, de 26 em 26 milhões de anos, aproximadamente, o sistema solar dá uma volta inteira na galáxia, sendo equivalente a um ano galáctico. Espero conseguir comprar um tênis (par) adidas antes desse tal evento...

    • Sinceramente, prefiro meu velho, desbotado e indestrutível All Star fabricado no BR. Infelizmente não existe mais o velho Bamba descrito pelo magistral FB, pena.

      Nada contra a Adidas obviamente que vestia muito bem o velho Fidel !!! Quanto a Galáxia, bem que ela podia dar um break, não para um Kit Kat mas para o velho e bom Batom Garoto, vendido até mesmo na inolvidável URSS !!! Good Times !!!

  • Amigos não vamos desviar nosso olhar para imagens como essas, apenas, lamentar que talvez, alguns desses jovens sejam filhos,netos ou descendentes dos rentistas que no próximo exercicio de 2018 receberão juros da União relativos aos pagamentos dos seus rendimentos com os títulos da dívida pública na ordem de R$ 421.9 bilhões. A grande indagação: quantas famílias de brasileiros excluidos seriam tiradas da linha da pobreza. Esse país somente serve para essa elite, miserável, abutre e escravagista, se os mais pobres pagarem com suas vidas, as suas regalias e benesses.Acordem brasileiros e não se acovardem de lutar pelos seus filhos,netos e mais descendentes.

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