Os mortos, os vivos e os mortos-vivos

Só os homens e mulheres  que se dedicam aos seus sobrevivem à morte.

Comece onde sua memória alcance e verá que é assim.

Para o resto, “sic transit gloria mundi” e um nome de rua.

Ah, sim, também uma herança a ser dissipada em vidas inúteis…

Como não vou descer ao meu tempo mental, fico nos exemplos que testemunhei.

Nasci quatro anos após a morte de Getúlio e, já na adolescência descobri que ele estava vivo.

Verdade que paradão, ali no “retrato do velho” do velho avô, mas vivíssimo na casa do IAPI, na sua dignidade de trabalhador, na identidade com seus vizinhos, operários também, até o “seu” Caiafa, por conta de quem volta e meia tinha tinha de cortar os galhos do abacateiro que bombardeava com seus frutos o telhado de um puxadinho atrás de sua casa.

Não era bem verdade aquele “o povo de quem fui escravo jamais será escravo de ninguém”, mas era a mais pura realidade “quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação”.

Anos depois, em ponto menor, conheci Leonel Brizola.

Jovem esquerdista, era dos que achavam que o parco marxismo respondia a tudo, tentei torcer o nariz para ele. “Populista”, “conciliador de classes”, ultrapassado por dizer que nossos impasses essenciais eram os mesmos de há vinte anos, etc…

Mas como a casca ideológica nunca foi grossa a ponto de me impedir de sentir o que era e de onde vinha, a maré brizolista tragou-me. Lembro-me de um diálogo que minha querida amiga Heloneida Studart onde ela se surpreendia com as “ilusões” que ouvira de uma moradora do Morro da Formiga, na Tijuca, de que “Brizola ia tirar dos ricos para dar aos pobres”.

Claro que isso não ia acontecer (ou melhor, aconteceria apenas dando um pouco menos aos ricos para dar um pouco mais aos pobres), dizia ela. E eu lhe respondi: “Heloneida, o milagre não é este, o milagre é que esta mulher pela primeira vez está falando isso em voz alta.”

Veio Lula, depois, com quem tive alguns poucos contatos e, é lógico, não reencarnava Brizola, como este não reencarnou Getúlio.

Mas encarnavam – cada um ao seu momento, o parágrafo inicial do curto texto que resume as tragédias políticas deste país:

Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.

Francamente, não sei como alguém pode achar este texto, de mais de 60 anos, velho, arcaico, inservível para a análise de nossa ruína da política e nosso mergulho, insano, neste novo “abolicionismo”: abolição dos direitos, abolição do Estado, abolição da liberdade, abolição dos sonhos coletivos e a transformação da vida em um exercício mesquinho, individual e perverso de ganhar dinheiro (os que podem), “se dar bem” (os que sabem) e o desprezar seus irmãos.

Mesmo na dita “esquerda” sobrepõe-se o  sentido de “tribo” – grupos iguais –  ao de povo, unidade de diferentes com uma essência comum.

Aboliu-se o mundo dos mortos, o das identidades, das memórias, o que pode nos fazer um povo e um país pelo mundo dos “vivos”, ou muito vivos, que só pode fazer negócios e negócios da falsa esperteza, que rendem muito de imediato e são um desastre quando passam os dias.

Para fazê-lo. porém, é preciso apelar para outra categoria, a dos mortos vivos.

Gente como Michel Temer e Fernando Henrique Cardoso, nos quais a traição foi a escada que lhes permitiu chegar, a um só tempo, a condição de reis da pompa e príncipes da bajulação. Ter traído e se oferecido ao que diziam renegar foi seu passaporte para o poder  é seu prazeroso pacto de Fausto, sem que lhes doa a entrega da alma, o que lhes mantém como uma espécie de fantasmas a arruinar o país do qual, afinal, não se sentem parte.

Há os mortos que sobrevivem no amor ao futuro e os vivos que já morreram e fazem de tudo para nos levar de volta a um passado que é inviável, porque a História, como se disse antes, só lhes deixará, talvez, um nome de rua e, certamente,  a maldição do povo brasileiro.

Fernando Brito:

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