Sou, com enorme orgulho, ex-aluno do Cefet do Rio de Janeiro, naquele tempo Escola Técnica Federal Celso Suckow da Fonseca.
Ainda ontem mostrei para meu filho, coitado, sem nada entender do pai, um velho livro de Metalografia da Editorial Mir, russo, em espanhol, porque os em português, da americana McGraw Hill eram muito caros e não dava para comprar.
Foi uma escola que nasceu para filhos de operários, para formá-los técnicos, como Escola Técnica Nacional, uma das poucas vitórias da derrota de Gustavo Capanema, ministro da Educação de Vargas, para Euvaldo Lodi, que imporia um sistema de ensino técnico “terceirizado”, via sistema S (Senai, Sesc, Senac) onde as federações empresariais davam a palavra, o currículo e o limite: não era mesmo para passar do técnico. Na ETF, íamos a cálculo diferencial, que demolia todos os calouros de Engenharia, na faculdade.
Devo ao Cefet, como abertura de horizontes de conhecimento, não hesito em dizer, mais que à faculdade, que me deu o igualmente precioso convívio e participação.
Foi onde aprendi também o que depois confirmaria com Darcy Ribeiro, que escola não pode ser uma porcariazinha: tem que ser ampla, gostosa, bonita, agradável. Tem de ser o céu.
Por isso, sinto um aperto no coração ao ler, no Facebook, o depoimento de Elika Takimoto, uma professora do Cefet (tenho dificuldade em não escrever mais Escola Técnica), sobre a chegada e o triunfo dos cotistas ali. E, ao mesmo tempo, um imenso orgulho de saber que a minha querida escola agora pode, de novo, ser parte do meu querido país, quando ainda tinhamos ali – e cada vez menos, porque a qualidade do ensino atraía a classe média, mais bem preparada para as provas, os filhos do povo trabalhador para quem ela foi criada há 74 anos.
“Professora, como é estudar? Me ensina?”
Elika Takimoto, do Cefet
Há quatro anos, tivemos no CEFET/RJ nossos primeiros alunos cotistas. Para entrar lá, os jovens fazem uma prova de seleção. Naquele ano, 50% das vagas foram destinadas para alunos negros, de escolas públicas e com renda baixa.
Lembro-me que levei um susto ao entrar em sala. Havia negros e alunos extremamente diferentes na forma de se expressar. Eu simplesmente não sabia como lidar. Pensei em escrever uma carta para Dilma reclamando. Se esse governo quer colocar cotistas em sala, que ao menos nos dê uma certa infra-estrutura para recebê-los! Psicólogos, pedagogos, assistentes sociais… cadê esse time para nos ajudar? Nada? Como assim?
Da mesma forma que sempre fazia com a minha turma, eu mandava o meu aluno estudar. Dizia que se ele não fizesse a parte dele, não passaria porque bababá bububú… muitos alunos cotistas não mexiam o dedo mesmo eu repetindo o discurso: você tem que estudar! Você tem que estudar!!!
Percebi que muitos não sabiam o que era “estudar” porque, meodeos, nunca haviam estudado. Era como eu virar para qualquer outro na rua que nunca, por exemplo, estudou música e falar: você tem que treinar piano! Você tem que treinar piano! O cara ia sentar em frente ao piano e fazer o quê? Não saberia nem por onde começar! Quando percebi isso entrei em desespero porque o problema era muito maior do que pensava…
O que fazer? Desistir? Deixar que todos repetissem? Mas seriam muitos! O desespero une os seres humanos que estão sob o mesmo inferno. Nós, professores, fomos conversando e juntamente com parte da equipe pedagógica, criando subsídios para esses alunos.
A ficha caiu quando um menino de boné e cordão prata veio até mim e falou: “Professora, você fala que eu tenho que estudar. O que seria exatamente isso? Eu não quero perder essa oportunidade. Me ajuda…”
Esse menino mal sabia pegar no lápis por falta de hábito…
Tivemos que lidar também com tensões e preconceitos que existiam entre eles. Por exemplo, alguns alunos que vieram de escolas particulares com família bem estruturada não entendiam por quê o colega não fazia o trabalho direito. Inicialmente, houve, em algumas turmas, segregação. No jogo de xadrez, por exemplo, onde temos peças pretas e brancas, eles perguntavam quem seria os cotistas e os não-cotistas…
Sei que criamos aulas de atendimento… preparamos nossos monitores para atender a esse novo perfil de aluno. Ensinei a aluno segurar no lápis e organizar o raciocínio para aprender física e fazer problemas de IME e ITA como fazia em todos os outros anos e dá-lhe conversas com todos os demais privilegiados para entender que não é excluindo que incluímos ninguém. Não é fazendo o mal que faremos um bem…
O que nenhum professor do CEFET admitia era baixar o nível de nossa instituição. Eles, os alunos cotistas, teriam que alcançar os demais. Foi preciso muita dedicação, hora extra, mais avaliações para o aluno ter oportunidade de recuperar a nota – dentre outras coisas maiores como, por exemplo, amor ao próximo e empatia à causa – para que o equilíbrio, enfim, fosse alcançado.
Foi preciso muito mais trabalho…
Fizemos um forte levantamento sobre o rendimento desses alunos. Quanta emoção ver as notas deles no segundo semestre se igualando aos demais colegas que tiveram muito mais oportunidades e condições para estudar. Quanta emoção… conseguimos, gente, conseguimos… estamos conseguindo…
Percebi claramente que falta de base nada tem a ver com capacidade intelectual e me surpreendi muito quando vi minha cara se esfarelando e a poesia sambando na cara do meu preconceito ou melhor, do meu desespero – no sentido, aqui, de negar a esperança.
Este ano (como em outros nas minhas turmas do primeiro ano), minha primeira avaliação foi coletiva e não individual. Os alunos tinham que fazer um grupo, estudar entre eles e, no dia da prova, eu faria uma pergunta em que somente um deles, sorteado por mim na hora, resolveria no quadro a questão por mim colocada. A nota do aluno escolhido seria a nota de todos os demais componentes daquele grupo. Essa foi uma forma que encontrei de forçar os alunos privilegiados a me ajudarem a ajudar os menos privilegiados.
Para um jovem de 15 anos, isso beirou o absurdo das injustiças. Uma aluna veio falar comigo: “professora, eu vou ter que convencer o outro a estudar como? Eu tô chamando e ele, quando vem, nada fala!”
Com muito amor e já mais experiente e segura, expliquei a ela que estávamos lidando com uma pessoa que vinha de uma realidade completamente diferente e que a forma de incluí-la não seria fazendo um chamado comum porque esse ser já tinha sofrido na pele o diabo da exclusão social e se sentia amedrontado perante os demais. “Você vai ser o diferencial na vida dele. Dependendo da forma em que se chegue a ele, você pode despertar um artista, um sábio, um colega pensante ou minar qualquer coisa boa que possa emergir.” A menina de 15 anos me olhou assustada. Nunca talvez ninguém havia lhe dado tanta responsabilidade. Continuei: “Sim. Temos que, acima de tudo, cuidar uns dos outros sempre. Isso se aprende também na escola.”
A prova foi ontem. Sem querer, escolhi o aluno com maior dificuldade. Ele foi ao quadro e falou com certa timidez natural, mas com uma segurança que eu mesma não esperava.
Ao final da aula, a aluna veio emocionada falar comigo: “Professora, fiz o que a senhora falou. Chamei o menino de outra forma e com jeitinho fui tirando dele o que ele sabia e mostrando a ele como agir. Estudamos a tarde toda. Você viu como ele falou bem?”. Havia o orgulho e a felicidade em ter ajudado o próximo e incluir um que, em outra época, seria completamente jogado às margens da nossa sociedade sendo o que chamamos de “marginal” em sua essência.
Escrevo isso sob uma emoção ainda muito forte. Quando vejo a primeira turma de cotistas se formando com louvor sem nada mais ter do que se envergonhar em termos de conhecimento em relação aos seus colegas, eu devo agradecer por essa oportunidade que esse governo me deu de fazer com que eu fosse uma verdadeira educadora. Devo agradecer pela oportunidade de me fazer unir e dialogar com os colegas e crescermos todos como um verdadeiro centro de ensino. Devo agradecer por ter me feito um ser humano infinitamente mais sensível e melhor.
Reclama da política das cotas quem nunca sentiu na pele e testemunhou o desabrochar da dignidade de um cidadão…
View Comments (23)
Fernando,
também fui aluno de Escola Técnica e fiquei emocionado com as suas colocações e da Professora Takimoto.
Abraços!
Júlio - Salvador
Professora, profissionais como você nos fazem acreditar num futuro melhor para esse país e que isso é possível. É possível recuperar anos de injustiça e preconceito. Isso sim é exemplo de ponte para o futuro!. E o que me deixou mais impressionada é que você não usou a meritocracia como método em sala de aula, que teria anulado as possibilidades dos alunos cotitas, mas trabalhou para que estudassem e ainda envolveu os colegas mais preparados no processo. Aplausos????????
!!!!!
Emocionante o depoimento. Muito bacana. É aquilo que é muito falado e pouco praticado: a escola tem que formar o cidadão e não apenas ensinar conteúdo didático. Daqui a 20 anos a aluna pode não lembrar mais nada da matéria que foi estudada, mas nunca vai esquecer da experiência de ajudar o colega a aprender e crescer.
Professora, profissionais como você nos fazem acreditar num futuro melhor para esse país e que isso é possível. É possível recuperar anos de injustiça e preconceito. Isso sim é exemplo de ponte para o futuro!. E o que me deixou mais impressionada é que você não usou a meritocracia como método em sala de aula, que teria anulado as possibilidades dos alunos cotitas, mas trabalhou para que estudassem e ainda envolveu os colegas mais preparados no processo. Aplausos????????
Esse emocionante relato prova que tem um Brasil que tem brasileiros que funcionam.
Nem todos são.....kunha!
Esse texto me trouxe boas memórias.
CEFET!
O CEFET realmente tem e faz um diferencial muito grande na vida da pessoa. Sempre foi meu sonho estudar lá (desde quando era escola técnica (governo do PSDB), mas o acesso era difícil, complicado não tinha cotas! O PSDB tinha mania de vender tudo e desse dinheiro ninguém sabia. Meus amigos do CEFET me dizem que na época tudo era sucateado mas a qualidade do ensino sempre foi excelente todos estão muito bem de vida hoje em dia. Esse partido também não foi investigado em nenhum momento nesse País. Se não me engane o Delcídio foi quem disse que teve uma corrupçãoZinha no governo deles. Mas, não, só quem rouba mesmo o PT. Mas, foi o governo do PT que expandiu os CEFET´s e entrei lá pelo o sistema de cotas. Se é fato que o PT roubou (e todos estão indo preso) beleza. Agora, vir priorizar que o País fique a frente de um programa neoliberal, conservador é insano.
Fico impressionada com a falta sensibilidade e compreensão da vida de alguns. O PT não tem helicoca, não está no panamá papers, ninguem ficou rico ilicitamente (dúvida? Aponte um...)
Estou com lágrimas nos olhos. Extremamente tocante esse texto.