Não se publicou, neste blog, a foto do menino sírio morto na praia da Turquia por algum purismo, mas por um prurido pessoal.
Pude furtar-me ao dever jornalístico de mostrar a cena chocante não apenas porque a imagem já foi vista por todos – mostrada por quem sinceramente ajudou a chocar o mundo com aquela barbárie, seja quem o fez levado por certa morbidez.
Por isso, atendi a uma razão pessoal: já ajudei a vestir para o caixão um menino como aquele.
Aconteceu há quase vinte anos, e o que matou aquela criança não foram as águas, mas uma meningite que não se diagnosticou, o que pode ocorrer, e que foi tratada – ou não tratada – por um pseudo-profissional da medicina que, indiferente, não teve, ao menos, a humanidade de reter num hospital, numa noite de carnaval, uma criança doente, filha de mãe pobre e moradora nas lonjuras que, de volta para casa, só horas depois encontrou ajuda para voltar a buscar assistência, quando já era tarde demais.
Não importa muito o caso, do qual talvez apenas eu e seus pais – ele, servente de pedreiro; ela, caixa de uma padaria – nos lembremos.
Importa que uma criança morreu e uma criança morrer ofende a espécie humana.
Seja branquinho, como o menino da praia turca; seja aquele mulatinho, da Várzea das Moças, aqui em Niterói, sejam os negros do Sudão; sejam os palestinos, os haitianos, sejam os vietnamitas queimados pelo napalm, sejam de onde forem e como forem.
Não é justo que morram pela mão do mar, da doença, da fome, se fomos nós que os colocamos ao alcance destas mãos.
Não é aceitável que se permita à barbárie – que os interesses da geopolítica estimularam para destruir a Síria, ou para encher de conflitos o Sudão, ou para afundar no atraso o Haiti libertário, ou para cercar como bichos os palestinos – levar assim crianças à morte e não haja a indignação da comunidade mundial.
E não há, o provam as portas fechadas aos refugiados desta selvageria, como mostra em reportagem a BBC, com honrosas exceções, como a de nosso país..
Mas antes desta crueldade há outra, pior: a de alimentar fanáticos quando fanáticos podem servir aos propósitos de gente muito bem posta e poderosa.
É por isso que os integrantes do Estado Islâmico desfilam com armas poderosas e reluzentes 4 x4, novinhos.
É por isso que nazistas ucranianos desfilam suas suásticas.
É por isso que fascistóides, aqui, pedem golpe, morte, forca.
E é por isso que não pode haver indiferença diante do que é monstruoso.
Começa-se pregando a intervenção sobre a vida dos povos em nome da liberdade econômica (a humana vale tão pouco…), da “civilização” , da “guerra ao terror” e, logo, a pureza amanhece morta nas areias de uma praia.
Não foi o mar que matou aquele menino, como não matou o pobre guri que vesti para o túmulo, nem mata, mata, mata crianças em todo o mundo.
Somos nós, que não proclamamos seu direito de viver, o direito de todos viverem e aceitamos que se façam golpes, guerras, diásporas sob mil pretextos “razoáveis” e nenhum deles digno de valer a vida de um pequeno ser humano.
View Comments (12)
Clap, clap, clap. Excelente texto.
Fernando, bom dia.
Impossível não se indignar com o que esses interesses estão fazendo no nosso mundo.
Para eles não importa quantos estão morrendo...vale só o que vão lucrar!
Para entender melhor o que está acontecendo, leia a matéria do site resistir.info, Guerras Híbridas, http://resistir.info/russia/guerras_hibridas_ago15.html
Bom dia,
mas essas crianças que morrem pelos confins do mundo só é o retrato de décadas de colonização de seus países ou de ditadores ali colocados pelos Estados Unidos e U.E. O retrato dessa calamidade que esta ocorrendo, são eles que criaram e continua a criar por cede de petróleo, desumanidade e falta de respeito ao ser humano. O mundo matou seus descendentes agora seus filhos no mar. Poderia dizer que a criatura virou-se contra o criador que o criador fecha os olhos para seu filhos por serem de outras nacionalidades. Até quando?
Veja as guerras programadas pelos Estados Unidos que foram colocadas em prática.
https://youtu.be/sCDRWEpz5d8
Chorei muito ao olhar para a foto do menino. Quando a notícia se repete na TV ou na internet desvio os olhos. Simplesmente não posso mais olhar a cena do menino morto na praia. Sinto vergonha da humanidade. Sinto vergonha de mim mesmo. Sinto a impotência de não poder mudar o que temos. Somente resta chorar. E eu choro de novo...
Tbm chorei, tenho um sobrinho dessa idade e sei que eles só tem inocência e medo, sentem medo de monstros imaginários mas não têm medo de coisas reais. O mais triste na minha opinião é o pavor e desconhecimento do perigo em que estava quando caiu na água, pensava que seria resgatado a qualquer momento pelos pais. E tem a parte triste mas cínica de minha parte, pois sei que acontecem coisas assim o tempo todo e fico pensando o que será de mim se ficar tão emotivo assim? Enfim, entendo que é uma situação muito comovente mesmo.
Abraço
O texto só confirma que estamos cada dia mais cegos, mais surdos e convenientemente mudos. Holocaustos forma muitos desde que o mundo é mundo. Em Minas Gerais, uma excelente repórter conta o holocausto de um manicômio onde toda sorte de excluídos iam além dos considerados loucos, que nem esses mereciam um tratamento daqueles. A grande questão de hoje é que no meio de tantas facilidades de informações, a 'economia enlouquecida', citada por Debord em A sociedade do espetáculo, banalizou as diásporas que assistimos agora. Em hebraico, o termo diáspora, significa exílio compulsório. As guerras sangrentas da nova ordem mundial giram em torno não mais de territórios, mas de produtos e de mercados. Que se exploda o mundo do trabalho, o mundo político, o mundo social, a vida humana. Afinal, tudo agora se resume a valor e a mercado. Hoje são eles, da África destruída e do Oriente destruídos, as imagens distantes de nós, que a farsa da 'democracia da mídia' nos dá para que não vejamos, como bem disse o Brito, a miséria de fatos semelhantes tão perto de nós. O que a mídia faz aparentemente como denúncia, é omitir as condições reais políticas e econômicas que permitem essas tragédias em que somos meros espectadores. Porque assim nada muda ou, se mudar, é porque segue os interesses e as finalidades do mercado financeiro.
Jesus era judeu mas foi renegado pelo seu povo.
Apesar da crise e das dificuldades, devíamos incluir na pauta progressista o acolhimento brasileiro de refugiados, venham de onde vierem. O Brasil tem que entrar nessa e nós da sociedade civil também, organizando comitês, ajudando as iniciativas das igrejas, aqui mesmo em São Paulo, anexo ao Memorial do Imigrante, há um acolhimento desse tipo. Talvez precisem de voluntários, vou verificar.
O que lamento é que muitos, aqui no Brasil, que hoje lamentam a morte desse menino inocente, rejeitariam os refugiados (ex. haitianos).
"Quem arma ou tolera demônios, mata crianças".
Frase forte. Nos faz rever os limites da tolerância, tão evocada em tempos ambíguos e cínicos. Podemos dizer isto àqueles PM's de São Paulo, corrompidos pelo poder do dinheiro, associados ao crime organizado e cooptadores de nossas crianças e jovens? Podemos dizer isto ao Geraldo Alckmin, Governador do caos da Segurança Pública, das negociatas com Marcolas e com o PCC? Podemos dizer do Haddad e seu Secretário de Cultura, que toleram, ou melhor, confundem o direito de livre manifestação com o esquema de cooptação para o crime na periferia, esquema este que também atende ao objetivo de amedrontar e expulsar pela tortura todos que não se deixarem cooptar pelo crime? Podemos dizer da enorme tolerância das esferas Municipal, Estadual e Federal, com relação ao avanço da cultura da violência, do manda quem pode, obedece quem tem juízo? Podemos dizer o mesmo dos que são condescendentes com a violência dos setores mais abastados da sociedade contra os que mau conseguiram sair da miséria? Podemos dizer da imprensa que acoberta com unanimidade a sensação cotidiana de desamparo da maioria dos brasileiros diante do poder do crime e da conivência policial a este?
Vejo isto todos os dias num bairro que sente os horrores de um estado de exceção, em que uma bandeira branca de impunidade flameja abertamente em benefício dos que armam, viciam, matam e aterrorizam, lançando mão justamente da "força da juventude" para tal intento. São meninos descartáveis. Morrem a conta-gotas - um ou dois por semana - e são peças a serem repostas num sistema quase fordiano de comprometimento e lavagem cerebral. Há muitos bairros em São Paulo eleitos para esta finalidade: abrigar o crime, tirar propina e criar o exército. Como disse-me uma vez um oficial: "Aqui é periferia, quem quiser outra coisa tá no lugar errado. Periferia é assim mesmo".
Só os mortos não armam ou toleram demônios.