Quixotes e quixotesas

 

Confesso que, apesar do prazer de analisar e escrever o que penso, dá um desânimo danado em cuidar do dia a dia da política no Brasil.

Acontecimentos que seriam dramáticos em qualquer país com um mínimo de normalidade institucional, aqui, viram banalidades, que não merecem interesse mais profundo da imprensa e de seus analistas.

Não estou sendo dramático, não. Convenha, chegamos a um quadro em que olhar para o cotidiano é um exercício de resistência à repugnância que, porém, não pode fazer com que achemos normal a monstruosidade medíocre em que se converteu a vida pública brasileira.

É banal que um presidente de extrema-direita se eleja e, antes de se completarem 11 meses, sai do partido pelo qual se elegeu e anuncia que vai montar uma agremiação de cunho familiar, presidida pelo filho metido num escândalo de rachadinhas e milícias e liderada pelo ex-futuro embaixador que deseja a volta do AI-5?

Como encarar o fato de um presidente dizer que “casou errado” com seu vice, flerta com um sujeito que se autodenomina príncipe – pois não há nobreza a dar-lhe este título -, enquanto este é atingido por uma história sórdida de ter sido “queimado” politicamente por fotos de uma suposta suruba gay, invadindo a sua vida privada, a única sobre a qual ele deve ter poder imperial? E a isso, o ex-ministro chefe do Governo desafia o chefe da Nação a um teste de polígrafo, o popular detetor de mentiras?

Não, não é uma piada, é uma torpeza.

É certo que os direitos sociais e o progresso econômico construídos ao longo de um século de História sejam desmanchados em meses, por simples decretos e sob os aplausos de uma classe dominante que, em sentido nada amoroso, gostaria de entoar a marchinha do “ai, meu deus que bom seria, se voltasse a escravidão”?

A verdade é que, como dizia Cartola, quando a gente entra no “inverno do tempo da vida”, embora se possa contentar com uma espécie de autofelicidade, fruto de sua trajetória e dos seus próximos, dói ver seu país tomado por esta mediocridade boçal e violenta, para a qual regredimos com tanta rapidez e da qual só nos curaremos lentamente.

Nem mesmo consola olhar para fora, pois se vê os pobres, de todas as cores e de todos os pobres tornarem-se os “judeus do século 21”

O fato é, porém, que esta é a realidade e de nada terá valido ter sido de uma geração que amou reconstruir a liberdade e o convívio se, a esta altura, não estivermos dispostos, com todas as dores e canseiras, a recolher seus cacos e de novo soldá-los ao ambiente social, não apenas às nossas vidas pequeninas.

Anos atrás, em algum lugar, escrevi que o que nos faz vivos, a qualquer ser, é a capacidade de absorver e sintetizar. Enquanto pudermos fazer isso, poderemos olhar para o futuro. Mas se criarmos uma crosta que não permita mais, como à cigarra, trocar de casca sem deixar de cantar o verão, aí, o inverno terá vencido e a espécie humana será fria, insensível, antissocial e, por isso mesmo, já não merecerá o nome de humanidade.

Fernando Brito:

View Comments (27)

  • É impossível, para mim, não encher os olhos de lágrimas.
    Texto primoroso e triste.
    Parabéns caro Fernando.

  • Quem mora na reaça cidade de São Paulo e convive com a probraiada nas ruas e nos transportes públicos da periferia constata que não são apenas os ricaços que estão aplaudindo as barbaridades do "governo".
    Penso que aqueles de nós, mesmo não fazendo parte dos povos nativos da América ou sendo descendentes deles, tomamos seu lugar como novos "índios" a serem submetidos ao domínio da metrópole através dos modernos interventores e vice-reis. Somos hoje aquilo que foram os "índios" dos séculos 16 e 17. Infelizmente entre nós existem muitos que traem o próprio povo. Nos governa um monte de gente que se acha branca como aqueles canalhas que faziam o serviço sujo para os gringos em Bacurau.

  • Sr.Fernando.Já me repetia um conterrâneo,de larga idade e,por isso mesmo,alguma experiência,que a escravisão,quando consumada,torna-se IDEOLOGIA DOS ESCRAVOS.Afinal,será dos DESVALIDOS,o areino do céu.Não lhe suscita, lembranças,tais SENTENÇAS?Pois volta e meia na HISTÓRIA,tal sentença,se confirma.E ,a despeito de nossas decepções,torna-se ORDEM DOS DIAS.Ainda assim,vale a PENA,nossas lutas e quem sabe,no futuro,que custa a vir,consigamos vislumbrar ILUSÕES.

  • A familícia Bozo traiu o partido que o elegeu. Se o Bozo lesse algum livro, além do escrito pelo Ustra, encontraria em Dom Quixote essa pérola de sabedoria, escrita pelo brilhante (que não é, certamente, o Ustra), Miguel de Cervantes:

    "Entre os pecados que os homens cometem, ainda que afirmam alguns que o maior de todos é a soberba, sustento eu que é a ingratidão, baseando-me no que se costuma dizer, que de mal agradecidos está o inferno cheio."

  • Estou com receio de virar essa cigarra que não troca mais de casca, mas vou prestar atenção, afinal tenho um filho de 21 anos ainda e fico olhando para ele e os amigos aqui em casa e pensando em como será o futuro deles, então, vamos que vamos.

  • a noite escura é necessária para que venha o devir. combatamos o bom combate, já que os ventos do norte não movem moinhos.

  • O Fernando tá certo, pra variar. O momento é de amargura, até mais que de dor, por constatar uma obviedade que sempre evitamos ver: A brutalidade das elites latino-americanas, em especial a brasileira. Mas, radicalidade por radicalidade, resta entender os movimentos da História para saber que a intensidade do pêndulo levado a um extremo, vai corresponder um retorno de mesma magnitude no sentido contrário. Não perdem por esperar.

  • Entramos por uma noite escura e horrenda, em que, do seio das instituições, tomadas pelas sombras, surgem, a cada momento, mais pessoas que ainda se mantinham com alguma compostura, evitando urrar sua incivilidade, seu racismo, sua prepotência - agora não mais. E do povo, o mais oprimido, o mais desvalorizado por essa gente (será mesmo gente?), levantam-se as vozes que sustentam esse desvario, como cães, guardados em pátios gradeados, ferozes e incapazes de perceber que, além das grades, além do ambiente malcheiroso em que são mantidos e da ração pútrida com que são alimentados, há um mundo bom, com possibilidades que vão além de um Jesus fascista, pintado por vigaristas e lavadores de dinheiro que não se envergonham de usar Seu nome sagrado, de um suposto livro "sagrado" de abominações, violência, preconceito e reprovações, disfarçado na cantilena doentia de "amor divino". Tenho vivido angustiado e me inclino a abandonar de vez este país lamentável. De onde saíram essas bestas, de onde saiu essa parcela enorme de gente sem noção, sem respeito até pelos que virão depois da sua passagem miserável.

  • "... pois se vê os pobres, de todas as cores e de todos os pobres tornarem-se os “judeus do século 21”"
    A filósofa Adela Cortina criou uma palavra para explicar isto: Aporofobia.
    Nos vídeos a seguir, ela explana essa categoria que explica a essência dos celerados que ascenderam na cena política atual, no Brasil e no Mundo.
    “No se rechaza al extranjero, sino al pobre”. ? https://youtu.be/Kc92s05D8L8
    Aporofobia, el miedo a las personas pobres ? https://youtu.be/ZODPxP68zT0

  • O que está a acontecer na Bolívia e também no Equador é mais um capítulo da guerra entre brancos colonizadores e índios americanos colonizados. Os criollos, que ao tempo de Bolívar se levantaram cheios de patriotismo e enfrentaram uma guerra de independência ultra-sangrenta, hoje se bandearam despudoradamente para o lado dos colonizadores, justamente no momento em que os índios deixam suas cartolas tribais para vestirem terno e gravata, frequentarem universidades e até participarem dos governos, o que é insuportável para certos criollos que aspiram a ser chapetones, os brancos privilegiados. Guardando as devidas reservas, o mesmo acontece aqui. .

    • Que bela porcaria de texto que arrebenta a corda do lado mais fácil. Veja o Haiti que deu guarida para Simon Bolívar e depois foi traído pelo próprio, quando as nações européias impuseram um bloqueio econômico que asfixiou o país, deixando-o à mercê do abutre americano, mancomunado com a dinastia Duvalier. No Brasil, todas as revoltas comandadas pelo povo foram retiradas dos livros e ementas e programas de história, que esconderam subsidiariamente a carnificina preta que ainda hoje põe sob o jugo da bala, cuja alegoria é a arminha do Bolsonaro, a pobreza, que além do mais, sempre levou a culpa de tudo, porque o racismo estrutural torna tal discurso mais fácil até para os revolucionários vanguardistas retóricos.

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