Razão para viver

 

À medida em que envelhecemos, começamos a santificar os mortos – o que é prudente, pois estamos diariamente mais próximos de entrar no grupo – e a dizer que os vivos não valem lá grande coisa, como a desdenhar as uvas verdes, que vão ficando mais distantes.

Não é fácil fugir disso, carece de fé na humanidade – a em Deus é fácil, já que nos dá um lugar para ir – e carece de fatos, que andam escassos nesta época de mediocridade crescente e delicadeza minguante.

Carece, sobretudo, de um exercício de humildade, em tempos de arrogante vaidade, onde as celebridades de 15 minutos, os “selfies”, a auto-exposição dominam corações, mentes e faces.

Tempo em que trocamos o “vai, Carlos, vai ser gauche na vida” do Drummond pelo “só quero saber do que pode dar certo, não tenho tempo a perder” dos Titãs.

Como escapar à ditadura de nossas próprias sedes de viver outonais, que já não são as de pular, dançar, correr? Ou a de amar alguém, ou a de fazer uma vida?

Sobretudo, como fugir à compulsão de ser amado, reconhecido, elogiado, estes mesquinhos desejos humanos  que a a gente nega, mas existem?

E resistir ao nervosismo, à impaciência, e tolerar  ideias que o tempo e a vida já nos fizeram desmontar e ver que são ocas, vazias, tolas, mas verdadeiras para quem as assimilou?

Só encontrei uma forma, falha e mambembe, que foi ter causa.

É preciso ter uma razão para viver e esta razão será muito pequena se ela for você mesmo, ou seus filhos, amigos, por mais queridos que sejam.

Ou uma igreja, um partido, um país, ainda assim serão pequenos.

E você, portanto, ainda será grande demais para que possa entender que não é nada, embora seja tudo o que pode dirigir por sua própria vontade.

Só existe uma maneira de sentir o minúsculo e o imenso em si mesmo: é sentir-se igual a toda a humanidade e desejar a ela tudo o que você tem.

Homenagear nossos mortos também é assim: é desejar dar o que eles nos deram aos que vivem e aos que viverão.

E numa manhã chuvosa de Finados – quem disse que o tempo não tem suas lágrimas? – sair por uns minutos deste clima de ódio em que nos mergulharam e olhar a vida como aquele bolo que vai ficando mais saboroso quanto mais mingua no prato.

Que a gente repetiria, se pudesse.

 

 

Fernando Brito:

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  • COVA DA ALMA
    by Ramiro Conceição

    (Nos pingos do sonho,
    uma criatura estranha
    insiste em visitar-me).

    “Filho, acorda… Sou eu!”
    “Pai, você tá aí? Tô chegando.”

    (Começo a desabotoar a cova
    da alma).

    “Anda logo! Anda logo!
    Estou sob a transitória saída.”

    “Tô chegando! Tô chegando!
    Estou sobre a entrada da vida.”

    (É, dentro dos vivos,
    os mortos clamam!).

    • QUEM É QUE SABE?
      by Ramiro Conceição

      Lá, no rio do outro lado,
      talvez algo esteja alegre
      e cante à tristeza de cá.

      Lá talvez comece a lucidez
      que lave a insensatez daqui.
      Quem é que sabe?

      É interessante, não importa o lado,
      no início se pousa cá ou lá calado.

      • Quando diante da morte, diante da vida se está...

        QUANDO SE ESQUECE
        by Ramiro Conceição

        Com vagar, esquecer-me-ei
        de quando meu filho riscou
        na clara partitura da sala
        seu andamento primeiro...
        Sim, suavemente esquecer-me-ei
        de quando decifrei aquela equação
        de Einstein; e aos poucos também
        das vezes que ouvi aquelas vozes
        de Bach.
        Evoé! Parece que nasci
        para sentir a passagem
        do vento…
        (tal qual diiisse o poeta).
        Evoé!
        Lentamente esquecerei até quando
        d e f i n i t i v a m e n t e se esquece.

        FAROL
        by Ramiro Conceição

        O rever de amigos antigos
        é semelhante aos barcos
        à noite, no entorno de um farol:
        não se sabe ao certo o porquê daquilo ter chegado
        a isso, após o mar bravio; nessa hora, não importa
        se ruim ou boa, acender as luzes de popa a proa
        pra que se enfeite o tempo com uma beleza à toa.

        MORANGOS SILVESTRES
        by Ramiro Conceição

        É, meu caro, o que pensaste-sentiste é o paulatino caminhar à tua saudade… Te lembras dos “Morangos Silvestres”? Pois é. Eles resolveram florescer e crescer em tua maturidade… Sem dúvida, é uma dádiva.

        Se porventura fores ateu, desejo-te um silêncio musical, à noite, quando na cama uma cálida lágrima germinar…, a percorrer o abismo entre o teu olhar e a planície do travesseiro… Aí, meu caro, o efêmero som abafado é o sagrado, sem qualquer teologia à salvação, mas que salva… porque dá a dimensão do nosso efetivo tamanho.

      • Quando diante da morte, diante da vida se está...

        QUANDO SE ESQUECE
        by Ramiro Conceição

        Com vagar, esquecer-me-ei
        de quando meu filho riscou
        na clara partitura da sala
        seu andamento primeiro...
        Sim, suavemente esquecer-me-ei
        de quando decifrei aquela equação
        de Einstein; e aos poucos também
        das vezes que ouvi aquelas vozes
        de Bach.
        Evoé! Parece que nasci
        para sentir a passagem
        do vento…
        (tal qual diiiiiiiisse o poeta).
        Evoé!
        Lentamente esquecerei até quando
        d e f i n i t i v a m e n t e se esquece.

        FAROL
        by Ramiro Conceição

        O rever de amigos antigos
        é semelhante aos barcos
        à noite, no entorno de um farol:
        não se sabe ao certo o porquê daquilo ter chegado
        a isso, após o mar bravio; nessa hora, não importa
        se ruim ou boa, acender as luzes de popa a proa
        pra que se enfeite o tempo com uma beleza à toa.

        MORANGOS SILVESTRES
        by Ramiro Conceição

        É, meu caro, o que pensaste-sentiste é o paulatino caminhar à tua saudade… Te lembras dos “Morangos Silvestres”? Pois é. Eles resolveram florescer e crescer em tua maturidade… Sem dúvida, é uma dádiva.

        Se porventura fores ateu, desejo-te um silêncio musical, à noite, quando na cama uma cálida lágrima germinar…, a percorrer o abismo entre o teu olhar e a planície do travesseiro… Aí, meu caro, o efêmero som abafado é o sagrado, sem qualquer teologia à salvação, mas que salva… porque dá a dimensão do nosso efetivo tamanho.

        • Não sei dizer se foi o texto do Fernando ou seus versos, o mais bonito! Obrigado!

  • Beleza de texto! Aproveitemos da melhor maneira possível o tempo que temos por aqui para honrar aqueles que vieram antes de nós e nos deixaram saudade...

  • Que texto! Belíssimo, Fernando. A mim, que cheguei aos 66 e já assisti a partida dos meus pais e de alguns grandes amigos. A mim, que tenho um casal de filhos muito jovens, mal saídos da adolescência, e que vivem a mais de 700 km de onde estou (Pirapora, MG) no Rio de Janeiro. A mim, que acordei hoje com um sentimento bem parecido. A mim, o seu texto tocou de modo especial. E profundamente! Para nós, que vivemos num País tão pobre de utopias, é sempre bom encontrar referências que nos permitam perceber que não estamos sozinhos!

  • Também há um provérbio chinês com este sentido e diferente escrita.

    A pessoa que não escolhe as palavras e fala uma asneira após outra, o dia todo, é a que mais vezes fere o próprio ouvido, pois as que passam ouvem uma só asneira de cada vez, mas quem as diz, as ouve o dia inteiro.

    Quem escreve também.

  • Fernando, dos blogueiros, você é o mais elegante. A elegância se vê mais nas palavras do que no vestir. Nunca vi nenhuma imagem sua e talvez não precise. Sua contribuição de hoje já encheu muitos corações de delicada poesia. O meu foi um deles. Obrigada.

  • Texto bonito, questionável apenas na citação de Drummond, como se ser gauche fosse algo valoroso. Mas em uma coisa tenho que concordar com os demais. Você tem talento pra escrita.

    • Alisson, se você deixar um segundo de lado a discriminação ideológica que o faz classificar as coisas assim verá que "gauche" não é "esquerdista", mas "indivíduo tímido, incapaz, sem muita aptidão para algo". Faz parte do exercício de modéstia do Drummond, para dizer depois: "Mundo, mundo vasto mundo/mais vasto é meu coração". Sabe, cara, o mundo está cheio de gente bem-sucedida que não vale uma pataca.

      • Tinha outra leitura do termo. Me pareceu, no seu parágrafo, uma ode ao coletivismo.

        • E o coletivismo sempre escraviza, é castrador de sonhos, castrador de vida.

          • Se a morte é coletiva ontologicamente, pois tudo que é vivo morre, então por que a vida não o seria, também? Por que, se a morte é intrínseca a todos, a vida humana tornou-se um milenar privilégio de poucos?

  • Muito belo texto. É com alma que se vive e com alma que se escreve, valeu!

  • Excelente texto Fernando Brito, bem reflexivo (...) "Só existe uma maneira de sentir o minúsculo e o imenso em si mesmo: é sentir-se igual a toda a humanidade e desejar a ela tudo o que você tem". É a velha máxima, deseje ao outro o que vc deseja para vc. (...) "Homenagear nossos mortos também é assim: é desejar dar o que eles nos deram aos que vivem e aos que viverão". Essa quase fechando o texto, chorei, pois lembrei da luta dos meus pais, que não estão mais por aqui, para criarem seus três filhos, numa Terra árida do Nordeste brasileiro, a qual na década de 50, era praticamente inexistente para o restante do Brasil, no entanto, mesmo assim num esforço de Hércules nos proporcionaram o melhor que os pais podem deixar de herança p os seus filhos, a Educação, o respeito para com o seu semelhante. Gratidão pelo belo texto e por me fazer viajar num tempo de 58 anos, claro, cheia de saudades, mas sem dor, na compreensão do ciclo da vida num planeta de 3ª Dimensão. Felicidades e vida longa pra vc.

  • Brito mais uma vez na veia de grandes Fernandos: a vida também continua valendo a pena quando a alma não é pequena.

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