Se Gil Vicente aparecesse por aqui, como seria seu “Auto da Barca do Inferno?”

No início dos anos 1500, mal pusera aqui os pés Pedro Álvares Cabral, Portugal descobria o seu maior dramaturgo. Gil Vicente faz encenar o seu Auto da Barca do Inferno, que se passa em um porto imaginário, onde duas barcas preparam-se para partir: a do Inferno, cuja tripulação é o Diabo e a Barca da Glória, tendo como tripulação um Anjo.

Cinco séculos depois, nascendo aqui nestas tataranetas das terras lusitanas, é capaz que parisse o texto abaixo:

No presente auto, pressupõe-se que, no momento em que acabamos de morrer, chegamos subitamente a uma espécie de rodoviária, a qual, por força, teremos de embarcar numa das duas conduções que estão estacionadas.
Uma vai em direção ao paraíso e a outra para o inferno. Cada uma tem os seus comandantes na porta: a do paraíso um anjo, e a do inferno um comandante infernal e seu parceiro.

O primeiro interlocutor é o Usurário. O comandante do Inferno começa o seu pregão assim que o vê se aproximar, agarrado a um pato.

DIABO
Quem vem lá? Diga daí, pois é por aqui que se chega lá.

USURÁRIO
Olá. Sou do bem. Um cidadão do bem. Tive morte súbita o que é um disparate. Veja bem, seu, seu… Qual é mesmo a sua graça?

DIABO
Pode me chamar de Diabo, Reis dos reis, Príncipe dos infernos, Capeta, Coisa ruim, Besta…

USURÁRIO
Sim, sim. Seu Besta. Como estava dizendo. Sou pessoa importante. Tenho negócios a fazer e o país precisa de mim. Dou empregos de montão e, portanto, não poderia me substituir algum colaborador ou, quem sabe, algum assessor meu?

DIABO
Chega de conversa. Isso aqui não é plenário, nem fórum da liberdade. Embarca logo e deixa de prólogo.

USURÁRIO
E pra onde vai essa condução? A algum aeroporto?

DIABO
Vai pros quinto, tá ligado?

USURÁRIO
Ora, lamento declinar de seu convite. Prefiro aquele outro ali, do box ao lado.

USURÁRIO se dirige ao Ônibus do Anjo.

ANJO
Pois não. O que deseja?

USURÁRIO
Venho em nome da Federação das…

ANJO
Pode voltar. Isso aqui não é comarca de togado comprado. Volta pelo mesmo caminho porque nesse busão não entra achacador de trabalhador, especulador de gente humilde nem barão sonegador, que paga por fora, pra se livrar das garras do leão.

USURÁRIO faz-se de desentendido e sai de fininho. Retorna ao Box do Diabo

USURÁRIO
O senhor sabe com quem está falando? Veja-me, ao menos, um bom assento, prefiro janela.

DIABO
Sei com qual praga falo. Aqui no coletivo do inferno, nem assento tens. Leva essa bunda gorda, pois já na viagem paga os pecados que deixara. Vá de pau-de-arara, como nele veio o que quiseste destruir em vida. E leva teu pato, que pato um holandês antes já mo deu.

Aproxima-se uma menina. Ela não leva bagagem.

DIABO
Ora, ora. Quem vem lá?

MENINA
Bom dia, seu moço. Não sei onde estou. Nem sei de onde vim. E sempre foi assim, nem meu pai sei quem foi. Eu andava nas ruas da vila quando a PM apareceu. Não perguntaram nem nome, saíram logo atirando. Tiro pra todo lado. Me acertaram a queima-roupa, não sem antes me bater. Deixaram o meu corpo em ferida e falando em bala perdida. Me diga, moço. Pra onde vai o lotação?

DIABO
Vai a lugar parecido. Não vai nem estranhar o caminho. Sobe bem de mansinho, que o destino de gente assim é sofrer mesmo depois da morte. Não te cobro bilhete, hoje é teu dia de sorte.

A menina se dirige à outra condução

ANJO
Quem vem lá?
Ai, meu Deus. Não diga nada não. Assim como você, aqui surge milhões. São todos pobres, pretos, pardos … todos tão maltratados mesmo antes de nascerem.

MENINA
Não tenho pra passagem, o moço ali do lado ofereceu viagem de graça.

ANJO
Venha, menina. Já pagou teus pecados em vida. Não pode tanta tristeza não servir de nada. O que é a morte se comparada a essa vida sofrida?

Logo que a Menina entra no ônibus do Anjo, apontam, na entrada da rodoviária, quatro homens da lei, combatentes do mal que assola o país: a corrupção

Antes de dizerem qualquer coisa, o Diabo se antecipou. Mandou seu parceiro embarcá-los à força.

1º HOMEM DA LEI
Mas o que significa isso?

PARCEIRO DO DIABO
Condução coercitiva, saca?
E para com essa voz esganiçada. Fale que nem homem.

1º  HOMEM DA LEI
Deixa eu falar, pois …

DIABO
Hi hi hi. Que te pareces uma delação premiada? Poderás delatar à vontade. Sou todo ouvido. Mas, antes, quero te deixar confortável numa cela bem quentinha. Vais delatar no inferno e pagar a tua continha! Hi hi hi

2º  HOMEM DA LEI
V.Ex.ª está equivocada. Somos os arautos da justiça…

DIABO
Ora, ora… sim os arautos da justiça! Bravo, bravo! Veio sem seus capangas?  Suba e traga junto seu beiço.

3º  HOMEM DA LEI
Ô parceiro! Não vá assim com tanta sede ao pote. Lembra que tenho teu rabo preso.

DIABO
Cunha, solta de meu rabo. A gente conversa depois lá embaixo. E quanto ao 4º  HOMEM DA LEI ? Já não nos vimos antes?

4º HOMEM DA LEI
Prezado Diabo. Pela importância de vosso cargo, sugiro uma conversa amigável. O senhor precisa de alguém de confiança. Afinal, como cuidar sozinho de todas as tarefas de um inferno inteiro? Precisamos de governança. Se julgar oportuno, posso ser seu vice.

DIABO
Prezado traíra, o que mais tem por aqui é gente feito tu. Vou te responder em latim, serve? Verba volant, scripta manent. Traduzindo: Perdeu, playboy!

Todos pra caçamba. E aos costumes.

E assim embarcaram.

FIM