Um dia depois das fanfarras mundiais com o início da vacinação no Reino Unido, a contagem de mortes diárias nos Estados Unidos – mais de 3 mil – deixa evidente que a aprovação, a disponibilização e a aplicação dos imunizantes ao coronavírus deixou, definitivamente, de ser uma questão científica para assumir inteiramente seu lado político-comercial.
Os países capitalistas trataram esta questão como um assunto de mercado: quem terá para vender, para entregar, quando e a que preço?
A própria Covax – iniciativa conduzida, em parte, pela Organização Mundial de Saúde – tem uma meta insuficiente, que, se cumprida, daria para vacinar apenas um em cada cinco habitantes do planeta.
Mas, em marcha batida rumo aos 2 milhões de mortes até o final deste ano, o mundo grita por vacina já e, neste contexto, à ciência e aos órgãos reguladores, num processo conduzido essencialmente por empresas privadas, com gigantescos interesses comerciais, pouco sobra senão dizer sim às primeiras vacinas que surgem.
Tudo em flagrante desequilíbrio entre as nações.
A primeira questão é o bolso: países ricos têm contratos de compra prefirmados que lhes dão o direito de comprar várias vezes o necessário para imunizar suas populações e têm, sobretudo, a força para impedir que outros recebam os excedentes antes de suas necessidades estarem totalmente satisfeitas.
A segunda, é a política. Que governantes vão “faturar”com a primazia da vacinação vê-se claramente nas pressões (frustradas, aliás) de Donald Trump em licenciar uma ou mais vacinas antes das eleições presidenciais norte-americanas foram escancaradas.
É certo que as instituições sanitárias, lá, resistiram mais e, ainda agora, o Food And Drugs Administration (FDA)não se afoba em licenciar, sem segurança, a própria vacina da Pfeizer aplicada aos ingleses, e muito mais ainda a da Astrazêneca (a dita “de Oxford”) por conta das distorções evidentes da amostra usada em sua fase de testes clínicos.
Distorções que, para não parecer azedume deste blogueiro, se descrevem na própria página da universidade inglesa, que transcrevo e sublinho:
“Dos 11.636 voluntários no Reino Unido e no Brasil incluídos nesta análise inicial de eficácia, a maioria está na faixa de 18-55 anos (Reino Unido 87% e Brasil 90%), com aqueles com 56 anos ou representando 12%. Como apenas cinco casos incluídos na análise primária ocorreram em pessoas com mais de 55 anos, a eficácia da vacina em grupos de idade mais avançada não pôde ser avaliada, mas será determinada em análises futuras depois que mais casos tiverem ocorrido nessa faixa de idade.”
Não é a única ressalva assumida por Oxford:
“Os pesquisadores também investigaram o potencial da vacina para prevenir doenças assintomáticas, por meio do uso de esfregaço semanal por voluntários do estudo no Reino Unido. Esses dados indicam que a vacina de dose baixa / dose padrão pode fornecer proteção contra infecção assintomática, mas enfatizam que esses dados estão em uma fase inicial, com um nível de incerteza muito alto para ter certeza de que essa vacina protegerá contra infecção assintomática.”
Nem é preciso explicar que, como praticamente toda a vacinação possível, ao menos no primeiro semestre de 2021, se daria em pessoas de mais de 55 anos, grupo mais vulnerável à letalidade da doença, o teste de fase 3 neste grupo restringiu-se a 1.200 pessoas, aproximadamente, o que é quase nada para um ensaio de vacina a ser aplicada em um bilhão de pessoas em todo o mundo. E que se estaria aprovando um imunizante com dados “em uma fase inicial, com um nível de incerteza muito alto para ter certeza de que essa vacina protegerá contra infecção assintomática” (isto é, que deixaria infectados assintomáticos continuarem a ser vetores de disseminação do vírus).
Isso quer dizer que ela é ruim? Não, mas indica “muita calma nesta hora”. Ontem, o The New York Times publicou uma longa reportagem sobre os percalços nos testes da “vacina de Oxford”, Asneiras minaram a confiança dos EUA na vacina que liderava as pesquisas, e hoje é o inglês The Guardian que O FDA está cético sobre a vacina da Astrazêneca.
Ocorre que a ideologização da vacina, com o movimento de fanáticos que a recusam e veem a pandemia como uma conspiração chinesa, faz com que toda a reserva científica com que se encarem os imunizantes seja, ao mesmo tempo, um fator negativo gravíssimo para a vacinação, graças ao alto grau de desconfiança que se verifica por causa deles.
E vacina, exatamente porque seu sucesso não é, essencialmente, a imunização do indivíduo, mas o bloqueio das cadeias de transmissão, ou é para (quase) todos ou não é nada.
Some-se a isso o fato de que a militarização do Ministério da Saúde e a colocação de um almirante à frente da Anvisa bolsonarizam os dois órgão responsáveis pela decisão.
Quanto à vacina chinesa licenciada para o Instituto Butantan, há muito para saber, ainda. O plano de vacinação apresentado por João Dória, embora formalmente correto, não tem detalhamento além do powerpoint usado na apresentação feita pelo governador de São Paulo na segunda-feira. Foi, claro, um evidente artifício para forçar a aprovação rápida pela Anvisa do imunizante mas, apesar disso, é, até agora a hipótese de vacinação que temos mais próxima.
O resto é a improvável “sobra” de algum lote de vacinas da Pfeizer que Pazuello consiga arranjar de favor e que se prestaria apenas para uma “imunização cenográfica”.
Seria, aliás, com os números apavorantes que estamos vendo nas estatísticas de casos e morte o corolário neste impensável rumo que tomou a vacina contra a mais terrível provação da humanidade em um século, o da “saúde de mercado” e não de Estado.
O American Way of Death.