A “tigrada” do Judiciário

Na coluna de Elio Gaspari, hoje, o recém-destronado da condição de “palavra final” sobre a história da ditadura militar diz que o general Golbery do Couto e Silva, eminência nem tão parda do regime, teria comentado sobre um documento palaciano:

“Estamos sofrendo uma ditadura dos órgãos de segurança. (…) toda vez que a cousa começa a acalmar o pessoal decide e cria troço, prende gente. Porque, você compreende, é para permanecer, para mostrar serviço. (…) A verdade é que eles fazem o que querem.”

É quase impossível transplantar a frase para os dias de hoje, substituindo-se o “órgãos de segurança” pelo bolo persecutório formado pelo Ministério Público, pela Polícia Federal e por voluntariosos juízes de primeira instância, à frente o juiz Sérgio Moro.

Como a “tigrada” militar, este núcleo age com a mais completa convicção de impunidade com que a bandeira do “combate à corrupção” os cobre, tal como a do “combate ao comunismo” dava sombra aos  meirinhos da ditadura.

Em ambos os casos, a “causa” dava justificativa “moral” para os arreganhos de poder, as “cognições sumárias” de culpa e para a tortura, certo que de modo “civilizado” ante os paus-de-arara do regime ditatorial militar. Na ditadura judicial, substituiu-se-lhes pelas “alongadas prisões de Curitiba”, que fazem brotar, como então, confissões que, verdadeiras ou falsas, vão possibilitando tramar-se uma teia até onde as desejem as aranhas.

À parte a imperdoável cumplicidade dos chefes do poder militar com esta abjeção, vê-se claramente que os escalões inferiores na máquina repressiva tomaram os freios dos dentes e levaram os seus superiores – a alguns, “com gosto”, inclusive – a referendar obrigatoriamente o que faziam.

Ou vê-se algo diferente no Supremo Tribunal Federal , onde, invariavelmente, legitimam-se os arreganhos de 1ª instância?

Gaspari diz que a intenção de “seletivizar” os assassinatos, submetendo-os à autorização da cúpula formal do regime frustrou-se porque, acostumados ao gosto de carne humana, os tigres não se contentavam em devorar apenas o que lhes fosse autorizado.

Também aqui é notória a dificuldade de livrar deste apetite os que não são “subversivos perigosos”, mas apenas e sempre comedores de migalha do poder empresarial. Quer-se comer também os cachorros e a carne tucana resta como a única que inapetece às feras.

A advertência que o episódio da revelação da chancela presidencial às execuções do regime militar, para Gaspari dirigida, “as vivandeiras [de quartéis] e napoleões de hospício de hoje”  deveria dirigir-se ao cardinalato de toga: “na ditadura praticaram-se crimes, e aquilo que pretendia ser ordem era uma enorme bagunça”.

A tigrada está aí, solta e com apetite insaciável, sob o olhar assustado dos que achavam que poderiam ser seus domadores.

A CIA achou que Geisel dominaria a ‘tigrada’

Elio Gaspari, na Folha

A história do Brasil continua a ser escrita pelos americanos. O documento da CIA que revelou o encontro do presidente Ernesto Geisel com três generais para discutir critérios para os assassinatos de dissidentes políticos avacalha os 40 anos de política de silêncio que os comandante militares cultivam em relação às práticas da “tigrada” dirigida pelo Centro de Informações do Exército, o CIE.

O documento mandado pelo diretor da CIA ao secretário de Estado Henry Kissinger revelou que, duas semanas depois de sua posse, Geisel fez uma reunião com o chefe do Serviço Nacional de Informações, João Baptista Figueiredo, e os generais Milton Tavares de Souza, comandante do CIE, e seu sucessor, Confúcio Avelino. Tavares de Souza, o “Miltinho”, era um asceta, radical, porém disciplinado. Confúcio, um medíocre.

Na reunião, “Miltinho” revelou que já haviam sido executadas 104 pessoas. Segundo a narrativa da CIA, a matança ficaria restrita aos “subversivos perigosos” e cada proposta de execução deveria ser levada ao general Figueiredo, para que ele a referendasse. Esse projeto de controle do Planalto sobre o CIE ficou na teoria, ou na imaginação da CIA.

No dia 11 de abril, quando o telegrama foi transmitido a Washington, circulava no Planalto um documento desconhecido, do qual sabe-se apenas a reação do general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil de Geisel: “Estamos sofrendo uma ditadura dos órgãos de segurança. (…) toda vez que a cousa começa a acalmar o pessoal decide e cria troço, prende gente. Porque, você compreende, é para permanecer, para mostrar serviço. (…) A verdade é que eles fazem o que querem.”

Depois de abril, pelo menos 15 guerrilheiros do Araguaia foram mortos, e tanto Geisel como Figueiredo, “Miltinho”, Confúcio e Golbery sabiam que essa matança estava em curso desde outubro de 1973. (Executavam-se inclusive os jovens que atendiam ao convite de rendição e colaboravam com a tropa.)

Em janeiro de 1974, Geisel ouviu de um oficial do CIE uma narrativa das operações no Araguaia, onde haviam sido capturados 30 guerrilheiros. Geisel perguntou: “E esses 30, o que eles fizeram, liquidaram?” Resposta do tenente-coronel: “Alguns na própria ação. E outros presos depois. Não tem jeito, não.”

Semanas depois, ao convidar o general Dale Coutinho para o Ministério do Exército, ouviu dele que “o negócio melhorou muito, agora, melhorou, aqui entre nós, foi quando nós começamos a matar. Começamos a matar.” Geisel respondeu: “Esse negócio de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser.”

A metodologia narrada pelo serviço americano foi seguida no extermínio da direção do Partido Comunista Brasileiro. Antes de 1974 os comunistas eram perseguidos ou presos, mas não eram assassinados. Em abril, três dirigentes comunistas haviam sido capturados e mortos pelo CIE. No ano seguinte, outros sete.

Com a destruição das siglas metidas em terrorismo, o CIE neutralizou a única organização esquerdista que agia na esfera política. Para isso, dispunha de pelo menos uma preciosa infiltração e conhecem-se casos de tentativas de recrutamento, pela CIA, de capas-pretas que viviam na clandestinidade.

À falta de dirigentes, em 1975 a “tigrada” continuou matando militantes em sessões de tortura. A ideia de controlar o CIE colocando-o sob a supervisão do Planalto simplesmente não funcionou.

Em 1976, depois da morte do operário Manoel Fiel Filho no DOI de São Paulo, Geisel demitiu o comandante do 2º Exército, general Ednardo D’Ávila Mello, e defenestrou Confúcio. Mesmo assim, só restabeleceu o primado da Presidência sobre as Forças Armadas em 1977, quando mandou embora o ministro do Exército, Sylvio Frota. (No dia da demissão de Frota, doidivanas do CIE pensaram em atacar o Palácio do Planalto.)

Para as vivandeiras e napoleões de hospício de hoje, o documento da CIA ensina que na ditadura praticaram-se crimes, e aquilo que pretendia ser ordem era uma enorme bagunça.

Fernando Brito:

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  • Esqueçam o 1%, esqueçam os 15% a única coisa que vai mudar esse país vai ser a ação dos outros 85% restantes de brasileiros, os eternos silenciados da nossa história. Quem conseguir seu silêncio ou ao contrário sua justa reação ganha a parada. Ou eles se mexem ou vamos ver outros 100 anos de República oligárquica.

    • Curioso que você não se incluiu nem no 1%, nem nos 15 e muito menos nos 85 (101%?)! Quando você diz "Ou ELES se mexem..." Será que não era pra dizer "Ou NÓS nos mexemos?". Ou você é gringo e está só observando a tragédia desse distante país conhecido pelo exótico nome de Brasil, tomado por uma neutra curiosidade assim, digamos, sociológica?

      • 1º) matemática: 14% +1% = 15% e 15% + 85% = 100%.
        15% é a soma do que eu gosto de chamar de "mínima" "classe média" brasileira ou, para melhor exemplificar, a tal "abominação" de que nos fala Marilena Chaui, mais os muito ricos.
        85% da população brasileira é formada por miseráveis, muito pobres, pobres e a verdadeira classe média que todos e em seu conjunto formam por sua vez a classe trabalhadora brasileira de que fazem parte também, e para espanto deles, uma parte expresiva da daqueles 14% da "mínima" "classe média". Mas sabemos se existe muita diversidade mesmo no 1% existe muito mais ainda nos 99% restantes da população, seja em termos de renda, padrão de consumo, formação cultural, consciência política etc etc etc. Mas é fato que o pais foi construído com essa dicotomia, com esses dois paises que convivem milagrosamente (mas sabemos como e a que preço!) no mesmo território, sob uma mesma bandeira, com o mesmo idioma comum e muitos desencontros, muitos desenganos, muitas esperanças defraudadas.

        2º) Se coloquei a ênfase no ELES é porque ELES, os 85%, SÃO a maioria da população e o ponto que queria justamente chamar a atenção era para essa MAIORIA ora silenciosa ora silenciada cuja voz não foi ouvida ou quando ouvida foi desconsiderada a expressão dos seus anseios de sua VONTADE. Primeiro, porque olhe-se por onde se olhe a história brasileira sempre foi caracterizada pelo domínio inconteste pelo monopólio do poder pelas diferentes oligarquias (que um famoso escritor chamou de os donos do poder) e pelo predomínio de uma forma de poder político autoritário, anti-democrático e anti-popular. Segundo, porque em democracia a regra mais básica mas ao mesmo tempo mais fundamental é a regra da MAIORIA e para um regime político ser considerado democrático, a vontade geral expressa nas urnas em eleições livres tem que representar a vontade de número maior que 50%+1% da população que pode exercer o direito ao voto. Portanto, a presença dessa maioria como sujeito histórico depende de uma forma política democrática, que nunca foi totalmente aceita pela MINORIA.

        3º) quanto a MIM posso dizer que você erra em gênero, em número e em grau. E nem EU e nem VOCÊ individualmente podemos alterar sozinhos esse quadro, agora não me sobra nenhuma dúvida de que NÓS podemos sim fazer muito.

  • Gaspari testemunha ocular dos crimes . Provavelmente em seus livros sobre o assunto , não transparece nada neste sentido . Ele vai explicar qualquer coisa , neste caso específico ele esquece que o " domínio do fato " é concreto .E que a cadeia de comando era muito próxima e tinha os relatórios e reuniões semanais com Golbery . Se teve a trigada ontem , a de hoje segue o mesmo mantra . O apoio dos superiores .

    • TESTEMUNHA OCULAR E ESTIMULADOR DOS ASSASSINATOS ATRAVÉS DAS SUAS MANIFESTAÇÕES MIDIATICAS!
      ESSE AÍ TEM AS MÃOS MANCHADAS COM O SANGUE DE TORTURADOS...
      JÁ SERGINHO MORO É OUTRO CASO.... É CASO PARA O TRIBUNAL DE DIREITOS HUMANOS DA ONU...
      SERGINHO VAI ARRASTAR TODO O JUDICIÁRIO E COMPARSAS (MPF, PF,...) PARA O LIMBO!
      CEDO OU TARDE PAGARÃO PELOS SEU ATOS!

    • Domínio de fato de quais superiores ? além dos os ''gringos'' e suas petroleiras, banca e mídia? Existem outros? Quais?

      • Quem a NSA não pegou com dossiês, nem as malas de dinheiro convenceram, o avião cai e o sujeito suicida. O poder das corruptor das corporações é o supremo.

  • Domínio do fato para o Gaspari só vale para o Lula .

  • Será que vamos ter de esperar outro tanto tempo, até que a CIA libere as informações sigilosas, para sabermos dos crimes cometidos pela "tigrada" de hoje ? Corrijo, para a confirmação oficial, pois desta vez já sabemos.

  • Triste. muito triste! Aos poucos vão se revelando as sujeiras daquela época.

  • Triste, não descobrir, pois qualquer um com uma inteligência mediana já sabia, mas ver provas da subserviência de nossos generais de 64, que apenas eram traidores a mando da CIA, serem santificados por uma imprensa laranja. Mas e hoje? Como será que estamos? Eles precisam provar portanto seu lado nacionalista, no entanto abraçam mais um golpe nitidamente regido pela CIA. Ora companheiros, juízes formados em Harvard, procuradores formados em Harvard, essa lambança no judiciário que comente crimes já reconhecido pelo STF e continuam a cometer, e vem general ameaçar o STF de cumprir a lei? A mando de quem? Cantar o hino nacional em dias de jogos não faz ninguém ser nacionalista. Duque de Caxias tem se revirado, desde 64, em seu túmulo heróico, só de costa ele toleraria isso.

    • Caxias heróico? Grande piada. A Revolução Farroupilha (na qual levamos um pau mas comemoramos mesmo assim) foi de latifundiários, que eram escravagistas da mesma forma que o poder imperial. Alguns queriam dar alforria aum grupode grandes lutadores, os "Lanceiros Negros". Mas Caxias combinou com David Canabarro para desarmar os negros e mandá-los acampar no Cerro de Porongos. Para lá Caxias mandou Chico Abreu "atacar os revoltosos mas poupar os brancos e os índios". FRancisco Abreu atacou os negros desarmados e assassinou cerca de 800.

  • Sendo a narrativa expressão da verdade, no Brasil o povo só a fica conhecendo, através de outros Países.

  • Se um dia pudêssemos levantar a cortina e ver quem dava as ordens em 64 e agora veríamos que quem comandava verdadeiramente a tigrada de ontem e de hoje era a mão de Washington.

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