O cronista digital, nas suas viagens diante do teclado, foi surpreendido por um novo encontro com a lembrança de Leonel Brizola, desta vez interessado em falar da morte de dona Marisa Letícia, da prisão do ex-bilionário Eike Batista, da nomeação de Moreira Franco como secretário-geral de Temer, da reeleição de Rodrigo Maia à Presidência da Câmara, da escolha de Eunício de Oliveira como presidente do Senado e da indicação de Alexandre de Moraes pro STF na vaga de Teori Zavascki. O ex-governador do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul garante que, em vida, já havia “adiantado algumas destas notas, só agora escritas na partitura da política brasileira”.
Governador, o senhor continua acompanhando o que vai no Brasil?
Veja, Marcel. Como já te disse nas nossas últimas conversas, daqui de onde hoje assisto às coisas, já com a mansidão que a vida terrena não me permitia, eu me encontro, francamente, muito preocupado com alguns fatos que têm ocorrido.
Que fatos?
Primeiramente…
Desculpe interromper, governador. Mas o senhor também chama o Temer de “primeiramente”?
Creias que o meu primeiramente não é nenhuma referência a este Temer. Este Temer, que o grande establishment, não só o brasileiro, mas o establishment mundial, tu podes crer, este Temer, que o establishment mundial impôs ao nosso Brasil, arrancando a presidenta Dilma do seu mandato democrático. Mas, honestamente, não falo dele aqui. Dele, falarei mais adiante. O que é dele está guardado e eu vou dizer. Mas, primeiramente, eu quero é apresentar minhas condolências ao presidente Lula pelo passamento de dona Marisa Letícia, uma grande mulher que foi vítima deste tempo de ódio.
De que ódio exatamente o senhor fala?
A rigor, Doalcei, não apenas do ódio disseminado na internet, este instrumento perverso às vezes.
Desculpe corrigir. É Marceu, governador. Mar-cêu…
Tu me perdoes. Sempre erro teu nome, não é verdade? Desde aqueles tempos em que tu eras repórter jovenzinho do velho “Jornal do Brasil”. Mas veja, Alceu. O ódio de que eu falo é este disseminado não só nas chamadas redes sociais, mas no dia a dia das conversas e do debate político. Dona Marisa adoentada ali, e as almas venenosas alimentando comentários que nem me atrevo a reproduzir, como se quisessem abreviar o fim terreno da grande mulher do Lula. Isto machuca. Francamente, isto machuca! Eu, pessoalmente, me sinto ferido e sinto em mim a dor do Lula. De certa forma, vivi isso aí com a minha Neusa, que hoje está aqui comigo. Hoje, do plano em que estou, consigo compreender o sentido da palavra amor melhor do que quando aí estava. E recito pra ti aqui o lema positivista do francês Auguste Comte, com quem mantive aqui alguns colóquios…
O senhor se tornou positivista? Como é isso?
Não é bem isso o que vos digo. Veja. Em vida, este lema não me cativava, mas hoje confesso que me desperta simpatia: “O amor, por princípio; a ordem, por base; o progresso, por fim.” Francamente, acredito que há hoje uma grande crise de amor na Humanidade. Em particular, nas nações que ficaram pela metade do caminho do desenvolvimento, como o Brasil. Honestamente…
O senhor…
Um instante, tu me perdoes por concluir. Que outra grande carência explicaria tanta perversidade com dona Marisa senão a da falta de amor? Uma mulher simples, livre de luxos, companheira do seu marido e aliada das causas democráticas desde as greves do ABC, citada por esses novilhos do Ministério Público e pelo juiz Moro por causa de titicas comezinhas? Tu me perdoes o termo, Alfeu.
O senhor acredita que a morte de dona Marisa pode comprometer a força política do Lula?
Francamente, não acredito. Acho que o Lula, lá nos seus aviamentos da costura política, tem linhas e agulhas de sobra pra confeccionar a cortina que vai separar o sofrimento privado da sua luta pública. Eu e o Lula tivemos grandes diferenças, tu sabes. Foram grandes diferenças! Mas nunca deixei de reconhecer nele o líder que é e sempre foi. Lula cometeu ali os seus pecadilhos, tisc…, cedeu a encantamentos que nós, a rigor, não cedemos. Mas jamais, jamais, veja Alceu, jamais o Lula deixou de ser o grande homem público com pensamento voltado para o Brasil. As vantagens que pode ter tido ao lado de dona Marisa por ter chegado à Presidência são calamacos e cangalhas. Ou nem isso! Ouso dizer que nem isso! Lula não participou da dilapidação promovida por seus críticos, que posam aí de “moretes”. Muito menos dona Dilma, que conheço bem.
O que são “moretes”, governador?
Com todo o respeito ao excelentíssimo juiz Moro, que faz lá o seu trabalho, mas muitas vezes parece inebriado pela fama e levado pelos arroubos da juventude, o que se vê aí é um desfile de “moretes”, uma legião de puxa-sacos que têm a barra das bombachas, eles sim, mais sujas do que bucho de barrasco, porque estão enterrados no lamaçal até os joelhos.
O que são “moretes”?
Veja, Orfeu. É só tu leres os jornais e assistires ao noticiário na TV, e não é só a Globo, que tanto me perseguiu. A imprensa parece dobrada de joelhos diante do golpe estabelecido. Nada é questionado com o rigor que deveria. Nada! A rigor, nada. A imprensa é comandada pelo Estado policial em que o Brasil se transformou. E mais. Basta pesquisar as fotografias recentes em que o juiz Moro aparece ao lado desta gente do PSDB e do PMDB. O PSDB é gado encaronado! Aliás, não é nem gado! Eles se dizem tucanos, mas são pavões! Basta ouvir um elogio que abrem suas plumagens e caminham balançando a cintura todos frajolas pra onde se aponta estar o melhor da festa. Na verdade, o PMDB é o líder da manada que desgraça o Brasil desde o fim da ditadura militar. São os filhotes da ditadura! São o entulho acumulado depois da obra feita! Os tucanos são a ala sofisticada do desfile, nada mais.
Mas o senhor não acha que…
Permita-me concluir, Nereu. Mas mesmo muitos destes “moretes” estão aí agora a prestar contas dos males que produziram. As prisões estão bem frequentadas, não é verdade? Este crédito eu dou ao juiz Moro. Não há dúvida. Mas faltam lá alguns destes “moretes”. No PSDB há alguns já borrados de medo do Moro, e por isso se comportam como “moretes”.
Do PMDB, o senhor fala do Sérgio Cabral e do Eduardo Cunha? E no PSDB? Não pode dar nomes?
Nomes quem deve dar é a Justiça. E tu é quem estás nomeando. Não sou eu. Mas que há outras batatas assando, ha-ha!, isso há.
De quem o senhor fala?
Não me queira mal por insistir em concluir meu raciocínio, Vizeu. Veja o caso do Moreira Franco, o gato angorá felpudo, acarinhado pelas elites do Rio de Janeiro no tempo em que nós éramos tão questionados. Este eu conheço bem. Ouço dizer que o Moreira teve o nome citado 34 vezes numa só delação de um diretor da Odebrecht nesta Lava-Jato. Veja, 34 vezes! Trinta e quatro!!! Francamente, vi como um escândalo a nomeação dele com status de ministro pelo Temer, livrando o amigo das garras do juiz Moro e lhe oferecendo o foro privilegiado do Supremo Tribunal. Sobretudo agora, com a indicação do careca para a vaga que foi do ministro Teori Zavascki, que é quem cuidava da Lava-Jato no Supremo.
O “careca” é o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes…
Sim. Nada contra os calvos. Eu mesmo perdi boa parte dos cabelos. Este Moraes eu não conheci aí, mas sei que é tucano e personagem secundário da intenção de uma nomeação política para o STF em meio a tudo isso que aí está. Outro dia, este Moraes estava aí a cortar pés de maconha como o capataz de um circo a ajeitar o terreno onde o seu patrão vai alçar a lona! O Brasil que sonhamos desde que calçamos nossas primeiras botas não admite uma nomeação assim para o Supremo Tribunal Federal. Honestamente, vejo como um insulto ao povo brasileiro! Francamente, tisc…, um insulto.
O que o senhor achou da prisão do Eike Batista?
A rigor, acompanhei com muita preocupação. Conheci o pai deste Êike, o Eliezer, engenheiro como eu, que presidiu a Vale, foi ministro do Jango e depois do Collor. Nunca dividimos a mesma cuia de mate. Mas, francamente, se este Êike transgrediu a lei, cedendo aos achaques da quadrilha de corruptos cuja chefia se imputa ao menino…
Menino?…
O menino Cabralzinho, que, até outro dia, estava aí, pimpão, homenageado pelas manchetes da imprensa. Olha, se este Êike fez o que dizem, que pague! Sinceramente, que pague! Mas, honestamente, acho que houve ali, na prisão dele, um certo excesso preocupante.
Como assim, governador? O senhor foi contra a prisão do Eike?
Veja, Eliseu. Fui governador três vezes, como tu sabes. Enfrentei com tranquilidade esses desafios e saí da vida pública mais pobre do que quando entrei. Mas ouvia aqui e ali os relatos do canto do pássaro, tudo entendes? Companheiros me diziam, com alguma tristeza, que, de cada 100 grandes empresários, 90 já haviam sido forçados a pagar ou quiseram pagar comissões para obter favores dos governos. Não sei se foi o caso do Êike. Isto o Ministério Público e juiz Moro terão de dizer e provar. Mas prender só ele, e agora que se confessa arruinado?! Francamente! E da maneira humilhante como foi exposto?! A rigor, vejo a democracia já aviltada em perigo ainda maior. De minha parte, sempre estranhei a ascensão meteórica deste Êike e sua compulsão por se tornar cada vez mais rico. Sempre estranhei! Sempre estranhei! Era outro apresentado como herói pela imprensa. Talvez ele devesse ser investigado de outro modo. Mas tenho minhas dúvidas em relação à prisão dele da maneira como foi feita.
O senhor acha que ele não deveria ser preso? É isso?
Tu vais me perdoar, mas não é isto o que eu te disse. Se tu achas isso, escrevas tu. Não sou eu quem diz. De minha parte, acredito que ele e outros devessem ser punidos exemplarmente com o confisco de bens, a devolução de cada centavo tirado do povo e o banimento da vida pública. O banimento radical! Radical! Que o seu Êike, se for provado o já dito, não possa jamais abrir outra empresa ou fazer negócios com governos. E que nem conta em banco possa ter!
O que o senhor achou da reeleição do Rodrigo Maia como presidente da Câmara dos Deputados e da escolha do Eunício de Oliveira pro comando do Senado?
Uma lástima. Francamente, uma lástima. Este Rodrigo eu conheço desde que era um piá. Vivia ali, miúdo, barreando as calças do pai. É filho do César Maia, um ex-companheiro nosso que costeou o alambrado até se lanhar na cerca e bandear pro lado de lá e se assumir de direita. O outro, este Eulício…
Eunício, com “n”…
Que seja. O outro é um senador sem expressão, que, francamente, só está lá pra servir a um governo golpista. Não terá sequer o nome na História. Mas podes ter certeza de que a batata deles também vai assar. Na verdade, o que ocorre hoje no Brasil nós já há muito tempo prevíamos. Eu mesmo, quando aí estava, quis dizer isso ao Lula, que ele tomasse cuidado com esta elite incomodada com a ascensão dele. Infelizmente, ele não pôde me ouvir. Eu cá, com a minha viola, já havia tocado estas notas, compreendes? Eu cá já havia adiantado algumas destas notas, só agora escritas na partitura da política brasileira.
Como assim, governador?
Tu deves conhecer aquela cantiga, que diz: “Eu tirei o dó da minha viola, da minha viola eu tirei o dó.” Pois eu tirei o dó da minha viola. Tudo isso que hoje está aí configurado nós prevemos. Com toda a humildade, nós prevemos. Lula e Dilma não foram fortes suficientemente para impedir a volta dos que não foram, hoje liderados pelo Temer, que, a rigor, é um fraco, um produto raso do mal maior, um fantoche das elites e que só por elas vai agir.
Chamou a atenção seu comentário sobre o amor e o positivismo de Auguste Comte. O senhor poderia falar um pouco mais a respeito?
Com prazer, Perseu. Vejo que te interessou o tema. Deves estar apaixonado…
Quem falou de amor foi o senhor, governador.
Eu continuo sendo um homem apaixonado pela beleza no seu sentido mais amplo, nas relações políticas e também pessoais, e, especialmente, um apaixonado pelo Brasil. Parti daí, creias, Pitolomeu, amargurado com o que via, mas esperançoso no futuro. E assim me mantenho. Falei da carência de amor ao me referir aos maldizentes e aos malédicos de dona Marisa. Lula e dona Marisa viveram uma história de amor pessoal e pelo país onde nasceram. Meu coração já parado mantém aqui no meu peito o desejo do entendimento pelo bem comum e a indignação com a injustiça e o mal-entendido. Gostaria muito que o Lula recebesse meus sinceros sentimentos e soubesse do meu engulho com a injustiça perpetrada contra dona Marisa, a quem espero ver em breve e dizer isto pessoalmente.
Obrigado por mais esta entrevista, governador.
Eu que te agradeço. Morfeu.
PS do Tijolaço: Já que meu amigo Marceu Vieira, que conversa de vez em quando com o espírito de Leonel Brizola, resilveu, de novo, ousar – com mais delicadeza do que eu faria – aventurar-se no que estaria pensando o velho líder e lembrou do “o amor por princípio”, tomo duas liberdades. A primeira, a de indicar outra crônica dele, delicadíssima como o autor, e a segunda, sem consultar, a de mudar o título do texto para “Xineném”.
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O texto consegue nos trazer até mesmo o sotaque de Brizola.
O texto não é do Alceu, é do velho Leonel, nascido Itagiba, que não morreu, encantou-se e vive hoje borboleteando pelas entranhas desse "nosso" Tijolaço, tão seu, às vezes deixando-se entrevistar pelo Alceu, outras vezes, mais, dando palpites e conselhos ao Brito, durante o expediente.
Mais que ótimo, excelente, Marceu.