Uma pausa no que sempre escrevo, para ser o que sempre serei

Ela me nasceu com três anos, com o cabelo cortado em cuia, feito uma indiazinha.

Parecia um montinho, deitada no banco de trás de um Fusca e o primeiro colo que lhe dei foi dormindo, portanto ela não podia recusar.

E que nunca recusou, mesmo que, aos cinco, pusesse as mãos nas cadeiras e dissesse que eu não era pai dela e que não ia me obedecer.

E, de fato, fui eu que sempre a obedeci, arrebentando os joelhos no chão de tacos, exausto, depois do trabalho, virando o “cavalinho”. Pobre de meu segundo filho, que já encontrou o pai mais atolado na política e com os joelhos baleados. Ainda bem que tem a casca dura e o miolo mole paternos.

Cavalinho também era o Concretex-Redimix (não repare, eu sou doido, mesmo) que fugia, montanha acima, dos caçadores do circo de cavalinhos, até encontrar uma caverna e, no fundo dela, receber o segredo de um morcego chamado Ozzy Osbourne (eu não disse que era doido?), e bater três vezes com a pata numa pedra, redonda e azul, que lhe abriria um vale verdejante e secreto, livre das redes dos caçadores.

Toc, toc, toc…

Trinta anos depois, Clara é uma mulher, já com uns óculos pernósticos, perdida e achada num lugar de nome esquisito – Urbana-Champaign – num estado americano de nome esquisito – Illinois – fazendo um pós-pós-pós-Doutorado numa ciência ainda mais esquisita: Entomologia.

Entomologia, como se sabe, é a ciência que espeta os insetos com um alfinete e estuda as mínimas intimidades dos ditos cujos, o que lhe serve, por exemplo, para descrever “uma nova espécie, Paranagallia takiyae“, com o “primeiro tarsômero da tíbia metatorácica tendo dois platellae”, morou? Se não morou, é o bichinho lá em cima.

Não fui o único, mas tenho parte de “culpa” nisso: juntos laçamos cobras, peguei pelo rabo um tatu ferido que ela tentou curar e que, morto, virou objeto de necrópsia – pai, olha o fígado dele! – , fomos cúmplices na adoção de Gílson, Gervásio e Eustáquio, sapos e caramujo, contribuí para que seu quarto fosse a “Pequena Loja dos Horrores”, cheio de vidros de formol recheados de lacraias e bichos deste jaez.

Está inapelavelmente longe de mim, hoje, horas depois de uma cirurgia que parece ter ido bem e que nos permitirá saber, daqui a alguns dias, se está tudo bem, mesmo.

Ela tem a juventude que já me falta e a juventude é o estado em que somos os queridinhos da Natureza.

E delas, da filha e da juventude, eu me vejo distante, preso a uma paternidade tardia, a de filho.

Filho que nunca foi modelo, nem extremado, mas sabe que deve zelar pelo inverno da vida de sua própria mãe, agora dependente como filha pequena.

Os últimos dias foram de cuidar, cuidar e cuidar, com a dureza inflexível dos que sabem o que têm de fazer, de minha mãe, que de mim cuidou tão bem quando tentei fazer com minha filha e que, à beira dos 80, sofre as consequências de um acidente que pôs termo a um final de vida ativo e autônomo.

Com uma parafernália de parafusos, aros de metal e pesos, se tudo der certo ela ficará pronta para uma cirurgia que há de lhe restaurar algo da mobilidade, da autonomia e da dignidade.

Hoje, num momento de natural depressão, ela pediu-me que lhe dissesse se estava morrendo.

Não está e está, como estamos todos, eu, minha mãe e minha filha, os bilhões homens e mulheres e os infinitilhões de seres vivos deste planeta;

Mas nós, humanos, temos uma vantagem.

Estamos vivos e estaremos sempre enquanto lutarmos e desejarmos, enquanto sonharmos e fizermos, enquanto formos capazes de ter dor e não indiferença, humanidade e não egoísmo, enquanto formos capazes de entender a palavra que, tiranamente, obriguei minha querida a ler o verbete que lhe cabia no dicionário:

Compaixão: s.f. Sentimento de pesar que nos causam os males alheios, bem como uma vontade de ajudar o próximo. Sentimento de simpatia ou de piedade para com o sofrimento alheio, associado a vontade ou ao desejo de auxiliar de alguma forma.

Todos os bichos têm sangue, mas acho que só nós temos lágrimas, não é?

Por isso, peço licença para pular a política, com “p” minúsculo, e soltar um pouco do carinho que não tem como se fazer em toque, mas que algumas vezes pude fazer em texto, para minha filha.

Como o que fiz, antes de o século virar, quando ela praguejava contra os temas das redações do vestibular – no qual começaria seu caminho de vitórias, ainda que tenha ouvido um ou outro dizerem para que “fizesse odontologia, que dá dinheiro”.

Escrever é só que sei fazer, ainda que mediocremente.

É, portanto e apesar disso, o que melhor tenho a dar de presente e, como os peixes de Milton Nascimento, dou de coração a todos os que vêm aqui buscar sinceridade e alma no que se diz.

E porque eu vim ao mundo para dividir.

Escrito sobre a caneta

Para minha filha

Disse a você que cabia um mundo dentro de qualquer pequena coisa, um simples objeto do dia-a-dia.

A caneta estava à mão e – que malandragem a minha! – a escolhi como tema.

Caneta é fácil!

Inda se fosse um prego, uma tampa de lata, um pedaço de biscoito, talvez precisasse ser poeta. Mas caneta?

Caneta cabe um infinito dentro!

Mas a se a caneta é fácil, não é óbvia.

Não é uma caneta e pronto!

Um pedaço de plástico, com um canudo também de plástico por dentro, cheio de tinta, com uma ponta roliça – feita daquele palavrão, tungstênio – e uma tampa, é claro, pra tampar.

Não, isso seria fazer pouco caso da caneta, como quem olha uma pessoa e diz: olha, lá estão cabeça, tronco e membros!

Caneta tem jeitos, intimidades, profundezas.

Está vendo esta da qual falamos?

Aparentemente transparente? Pois ali dentro estão terras e mares, pessoas e bichos, amores, ódios, tristezas e sorrisos, como numa Arca de Noé onde sobrevivem à nossa falta de tempo.

Estão ali apertados, presos, olhando invisíveis, como que nos pedindo para que os libertemos, para voltar a ser m-a-r, a ser g-a-t-o, a ser c-ã-o, a serem os nomes que se confundem com eles próprios.

Veja aquela coluna azul, esta atmosfera de tinta onde estão estes viventes dos três reinos (quem disse que pedra e água não vivem?) .

Para que eles sobrevivam, a caneta deve ser azul como um céu carregado de ar profundo.

Caneta que não é azul, é arremedo de caneta. Perde a vida profusa que toda ela deve conter.

Caneta preta? Cor de máquina, de computador, de letra de forma pré-moldada, de documentos e jornais, de verdades absolutas que não querem resposta, contestação. Preto é letra de forma, certa demais.

Vermelho é o contrário, cor de coisa errada, de nota baixa, condenação de nosso próprio escrito.

Roxo? Verde? Funéreo, um e plácido o outro, ambos demais. Já imaginou uma declaração de amor, um carinho, em roxo? Uma saudade, um adeus, em verde claro?

Azul, tem de ser azul a minha caneta, azul profundo e discreto, para que quem brilhe e chame a atenção seja a palavra escrita.

Além da cor, é importante para a boa expressão o estado da tinta. Como ensinam os professores de física, todo líquido toma a forma daquilo que o contém.

E o que contém a tinta deitada sobre o papel é a palavra, se amoldando, líquida, ao que se quer dizer, sem faltar pedaços ou se derramar pelas bordas, deitada ou de pé conforme o talho do escrevinhador.

Além do estado físico adequado, deve a tinta gozar de bom estado de nervos.

Fria e esquecida nas gavetas, ela resseca; quente demais, tem o mau hábito de estourar, de preferência no bolso das camisas novas, de vez que canetas devem ser conduzidas sempre perto do coração.

Agora tratemos das vantagens da caneta sobre o lápis na escrita, na qual reina absoluta, deixando ao seu primo o império dos desenhos.

A tinta é indelével, como diziam as embalagens engraçadas dos tinteiros de antigamente, enquanto o grafite se apaga com a borracha.

De um lado, isso condena o arrependimento e o erro com a punição do rabisco evidente, envergonhante.

De outro, dá-nos a sensação de eternidade: risco na pedra, entalhe na árvore, destinados a sobreviver ao escritor e seus sentimentos.

Todos nós queremos ser vistos, queremos ser lembrados. Quem não quer uma máquina fotográfica, uma filmadora? E como, por nascimento ou idade, uma certa hora acabamos sendo mais bonitos por dentro que por fora, a caneta acaba nos dando os melhores retratos, os mais expressivos, os mais verdadeiros.

Canetas têm múltiplas utilidades. Além de escrever, servem para tirar cera do ouvido, emprestam suas tampinhas para esgravatar a sujeira das unhas e transmudam-se em zarabatanas para os moleques atirarem bolinhas de papel na nuca dos professores. Mas, além disso, já foram – ainda são – tantas outras coisas…

Já foram espadas, flechas de Cupido, cetros de reis sábios, chicotes de tiranos, serviram de grades de prisão, alfanjes no pescoço dos condenados, chaves para algemas de presos, tanta coisa…

São objetos poderosíssimos que, com um ajuste ali, outro aqui, vêm desafiando os séculos.

Dizem até que são encantadas, varinhas de condão detentoras do poder misterioso de materializar os nossos sonhos.

Termino aqui esta minha ode à caneta, que escrevi com uma delas, no ônibus, e passo a limpo no computador. Corrijo, assim, discretamente, as vacilações da mente e a insegurança das mãos humanas.

É que a caneta, ela sim, é uma máquina perfeita, delicada demais para um bruto como eu.

Fernando Brito:

View Comments (58)

  • Quase chorei..
    Caro Fernando, espero que sua mãe se recupere e possa voltar às atividades que hoje lhes parecem distantes. Que esteja tudo bem com sua eterna pequena indiazinha e que você compartilhe conosco sempre mais do grande homem que és, seu nobre caráter, seu profundo saber, sua experiência, sua lucidez e sua tocante humanidade.
    Um grande abraço, meu caro Fernando brito

  • Muito lindo, emocionante esta pausa na politica com polemicas....

  • Boa sorte e obrigado por dividir com nós a sua brilhante mente.

    • Alberto, compartilho com vc os seus votos. Realmente, a mente do Fernando, além de brilhante, está inspiradíssima! Abs.

  • Um belo texto que exprime o sentimento, a sensibilidade, a alma do homem Fernando Brito em um momento difícil porém passageiro.

    Força e esperança. A análise política pode esperar um pouco.

  • Caro Fernando:
    Admiro muito o seu trabalho e essa admiração só aumenta conhecendo seus sentimentos pela sua mãe e filha.
    Hoje aos 63 anos, ainda tenho ainda a felicidade de estar próximo da minha mãe, retribuindo um pouquinho todo o sacrifício que ela teve para criar e educar 4 filhos.
    Eu sei que a gente nunca vai "pagar" o que nosso pais fizeram, mas quem ainda tem essa oportunidade, deve fazê-lo, sem pestanejar - não deixe para depois... pode ser tarde demais!

  • Felizes sentimentos fortes de cumplicidade e solidariedade que fazem a vida valer a pena.

Related Post