A manchete da Folha, hoje, bem poderia ser Bolsonaro impulsiona retrocessos civilizatórios, em lugar do “Bolsonaro tenta emplacar pautas de costumes no Congresso” que o jornal estampa em sua capa.
Os dois projetos que o jornal destaca (há outros, sim) são dois ícones do atraso e da brutalidade.
O primeiro é liberação do porte de armas para uma lista imensa de pessoas, militares, policiais, agentes penitenciários, advogados, guardas municipais, segurança de casas legislativas, entre outros, que poderão comprar até dez armas de fogo de uso permitido ou restrito, até agora, às Forças Armadas, e portá-los quase que à vontade.
Há algum tempo, eu acreditaria que o absurdo monstruoso que isso representaria, a certeza de que seria um retrocesso de mais um século e uma jaguncização do Brasil nem precisaria de argumentos para ser visto. Agora, porém, que o número de armas vendidas no varejo vai caminhando para 150 mil por ano e que a pistola Glock tornou-se o símbolo de afirmação da mediocridade dos marombados, sinto-me desanimado a fazê-lo, de tão doloroso imaginar que possamos passar a viver com medo desta inflação de homens-pistola nas ruas.
O segundo, aparentemente inocente e o cume da “liberdade da família” é o tal “homeschooling”, o direito de que os pais não matriculem seus filhos numa escola regular, pública ou privada, e optem por “educá-los em casa”.
Este é retrocesso de quase dois séculos, ao tempo dos preceptores, que os nobres e ricos, em geral, colocavam como criados cult a ensinarem seus filhos. Nada mais de socialização das crianças – parece que socializar e sociedade viraram, na cabeça deste gente, “comunismo” – , nada de convívio, nada de regras comuns a todos, nada de liberdade de cátedra (porque serão os pais ricos que escolherão o que deve ou não ser ensinado).
Que pai ou mãe não viu a angústia de seus filhos, nesta pandemia, de serem postos em isolamento doméstico, longe dos colegas, privados da irreprimível vocação de “bando” que as crianças sadias têm?
Claro, haverá logo explicações de que isso poderá ser suprido pelos pais, como se estes, hoje, não passassem dez ou doze ou mais horas por dia trabalhando e que, é obvio, não têm meios de pagar quatro ou cinco horas de um professor particular e muito menos ainda conhecimento e paciência para transmitir conteúdos.
Vamos nos aproximando da lei da selva, onde prevalecem os mais fortes, seja com canos de pistola ou sacos de dinheiro.
Os estúpidos, os brutos, os ignorantes vaidosos de sua ignorância estão prevalecendo e talvez não vejamos exemplo mais gritante disso que os precoces gritos de que não se tomará – por não ser “bundão” ou ter “histórico de atleta” a futura vacina anti-Covid.
Nós? Ah, nós estamos ocupados com a onipresença do “lugar de fala”, negando, em nome da identidade tribal a identidade social que a humanidade vem construindo ao longo dos séculos, com dores, sofrimentos, mas também generosidade, fraternidade e a ideia de que o bem coletivo importa tanto ou mais que o individual e que este, se não estiver mergulhado na felicidade coletiva soa como escárnio ou hipocrisia.
Toda a minha formação política foi sofrer a discriminação por querer que todos, sem diferença na pele, no sexo ou no bolso, fossem igualmente respeitados, porque não há outra forma digna de viver.
O verso de Tom Jobim não entrou pelos ouvidos de muitos: “é impossível ser feliz sozinho”.
Não há segurança com armamento geral, não há educação sem escola, não há saúde sem vacinação em massa, não há democracia quando nos discriminamos e achamos que a política pode ser praticada quando se é capaz de ser de todos.
Estamos, porém, imobilizando-nos em nossos labirintos, de forma a não ir a lugar nenhum no futuro.
Enquanto o passado, sem a menor cerimônia, avança a passos largos e cruéis.