O frio da saudade, o calor da lembrança e a chama para prosseguir

mortbrizola

O diabo do tempo é que a gente pensa que escapa dele e ele, sem-vergonha, nos pega ali adiante.

Eu teria me avisado disso, se soubesse quando era jovem.

E é provável que eu, jovem, não desse a menor bola para o aviso.

Só quando a gente envelhece começa a prestar alguma atenção nestas coisas de datas, como a de hoje, em que se completam dez anos da morte de Leonel Brizola  e dos 23 anos em que aquele guri que o interpelou, cheio de pretensão, numa reunião política num modesto apartamento na Rua Cabuçu, no Lins de Vasconcellos , um subúrbio do Rio de Janeiro.

Curioso, são estas cenas que me vêm, quando relembro.

Aquela, simples, do – para nós –  com “o velho” que tinha a idade que tenho hoje, quase.

E a final, do dia em que soube da sua morte, na véspera da morte oficial, na segunda-feira, 21 de junho.

Porque foi na véspera que percebi sua morte, nos sinais inequívocos do fim que  o convívio íntimo e intenso me anunciaram também com meu avô e minha mãe antes que os médicos o dissessem.

A forma com que nos despedimos – ele, acamado, erguendo o tronco para apertar com as duas mãos a minha mão de adeus – e sua insistência para que eu não deixasse de vir, no dia seguinte, avisaram-me e eu retransmiti em casa:

– Preparem-se, o Brizola vai morrer, e não demora.

Entre uma e outra imagem, um quarto de século dentro da história de meu país.

Não é o caso de repassá-lo, aqui, cada um pode recordar e imaginar o que separa a ditadura militar da eleição de Lula.

Hoje é dia, apenas, de dizer o possível daquela experiência de vida, que é minha própria vida, porque a intimidade tem recatos difíceis de vencer e impossíveis de trair.

Do líder político, de seus acertos e erros, é ocioso e temerário que eu fale.

Porque não vou louvar os primeiros e muito menos condenar os equívocos.

Sou irreversivelmente parcial quando se trata dele.

Direi apenas que Brizola deu-me, ao longo de brigas e discussões que nunca terminaram nem em capitulação nem em rompimento, alguns critérios na política.

O primeiro é o do velho gauchismo da “honra e da dignidade”. Não as entregue a ninguém, não as tome de ninguém.

É curioso, porque as pessoas têm de Brizola a imagem de autoritário e turrão – e volta e meia ele era, mesmo -, mas foi com ele  (e com o tempo)  que aprendi a ser tolerante e a jamais odiar as pessoas, mesmo detestando suas ideias e atos.

O segundo, que está lá em cima, na testa deste blog, é o de nunca abrir mão da polêmica. Como ele dizia, “não somos todos ovelhas bem branquinhas e mansas”.

Porque é a polêmica que politiza o povo, que o faz tomar partido, que filtra, pelo debate, o que é bom e ruim, adequado ou inadequado.

O “pensamento único” que vivemos ao longo dos anos 90 e o “diktat” da mídia mostram que, sem isso, o que sempre prevalece é o conservador, o elitista, a pior corrupção que há,  pior que a  do dinheiro, a do espírito.

Contra esta, mais um príncípio, o da austeridade.

Engraçado, também, que a imagem que se espalhou de Brizola, a de fazendeiro rico, era o inverso de sua realidade, embora é claro que ele não fosse pobre.

Mas não apenas era um pão-duro proverbial como, no exercício da função política, um homem de imensa austeridade.

Pequenos detalhes, pequenas cenas o revelavam sempre, desde não servir uísque e dar exclusividade aos vinhos nacionais no Palácio Guanabara, nos eventos de governo quanto na insólita situação que vivi com ele quando, convidado para gravar o programa de Henry Maksoud, abriu mão do velho e mofado Hotel Jaraguá, em que sempre ficávamos quando íamos a São Paulo.

Afinal, era grátis no Maksoud Plaza, onde ele entrou meio acabrunhado, olhando aquela escultura-troço que vinha lá da imensidão da altura, rumo a uma suíte presidencial que lhe havia sido reservada. Quando entramos no apartamento, com um carpete  que, de tão alto, quase fazia desaparecer os sapatos, ele anunciou que iríamos para o Jaraguá.

Tanto tapete, disse-me , acabava por amaciar um homem.

Peço que me desculpem se falo dos reflexos meramente pessoais em mim de um homem que fez parte da História, porque disto é sempre tempo de falar (e lembrar do que deixou de ensinamentos) na política.

É que hoje é um destes dias em que me encontro com o tempo e os espelhos.

E que me dou os avisos que, em outra época, não escutaria.

Dia de vestir um velho casaco de brim, que ele esqueceu num estúdio, numa gravação e eu surrupiei, confessadamente, há 14 anos.

Desbotado, puído, mas bom para proteger a gente do frio do tempo da saudade.

E manter, guarda-fogo, uma chama que precisa seguir acesa.

 

 

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14 respostas

  1. Ah, se os governos trabalhistas tivessem o mesmo tempo que eles generosamente dispuseram. Talvez tivessem um pouco mais de paciência, na hora de sugerir “mudanças”.

  2. Fernando, sinto uma inveja danada de você por ter convivido tanto tempo com o Brizola. Nunca vi o Brizola pessoalmente, nunca voltei nele (não tinha idade pra votar), mas admiro-o. Obrigado por compartilhar conosco um pouco da sua convivência com o último Caudilho.

  3. Fernando, qual sua opinião do PTB ter se aliada ao PSDB, que vai na contramão de td q o Brizola lutou a vida toda?

    1. Eu tenho a impressão de que veremos Brizola ressurgir através de Dilma no segundo mandato. Livre de certas amarras por conta da campanha à reeleição.

  4. Fernando, como vc se sente com o PTB se aliando ao PSDB, a direita , cuja proposta vai na contramão de td q o Brizola lutou a vida toda?

  5. Tanto tapete, disse-me , acabava por amaciar um homem

    Ótima!

    Tenho 33 anos e pouco me lembro do Brizola, ainda mais por não ser do RJ. Mas o pouco que me lembro faz falta na política brasileira.

  6. Só faltou a Brizola a internet. Se Brizola tivesse vivido na era digital, não teriam (Globo e média entreguista) escondido do povo as maravilhosas qualidades do velho.

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