Há certas histórias que dispensam a seu contador de explicitar as analogias, tão evidentes elas são.
Ocorre isto nas fábulas, onde se criam situações imaginárias para descrever atos e atitudes do cotidiano, mas menos percebidas na realidade que em sua evidência na narrativa fantasiosa.
Há, também, as fábulas ao avesso, onde uma situação real nos faz perceber os perigos que há em outras, não exatamente iguais nos fatos, mas com inacreditável semelhança nos métodos de proceder que se adota.
Desde os gregos, a analogia é, senão a maior, ao menos uma das maiores ferramentas do raciocínio: chegar a conclusões sobre semelhanças entre os elementos sobre os quais se raciocina, por muito diferentes que estes sejam.
É assim com o artigo publicado hoje pelo advogado criminalista Luís Fernando de Carvalho Filho, colunista da Folha e insuspeito, por sua tradição, de desprestígio à instituição judicial.
Relata a história de um juiz severíssimo, adepto de processos a jato e condenações a granel que, afinal descobriu-se , ganhava dinheiro de “investidores” como recompensa por sua dureza.
Como nas fábulas, é no final que vem a “moral da história”: se aquele juiz tivesse feito todos os absurdos que fez e não tivesse, com isso, ganho dinheiro, seria lembrado apenas como um justiceiro e não estaria preso como está.
O método de agir, não é raro, torna-se mais significativo que as intenções da ação. E leva as boas, as melhores delas, a lotarem, como dizia minha avó, o próprio Inferno.
Propina e ideologia
Luís Fernando de Carvalho Filho, na Folha
“Kids for cash” (“crianças por dinheiro”) é a designação jornalística de um escândalo que abalou a credibilidade da Justiça norte-americana.
Mark Ciavarella, juiz do condado de Luzerne, Pensilvânia, foi condenado em 2011 a 28 anos de prisão por um rosário de delitos: corrupção, lavagem de dinheiro, fraude fiscal.
Enriqueceu à custa de jovens que mandava para estabelecimentos correcionais privados, construídos sob sua inspiração, com o sugestivo nome “Child Care” (algo como “Cuidado Infantil”). Juntamente com o juiz presidente do condado, Michael Conahan, recebeu mais de US$ 2 milhões dos investidores a título de comissão.
Festejado pelo discurso e pela prática de endurecimento penal, foi eleito juiz pelo voto popular em 1995 para um mandato de dez anos e reeleito em 2005. Sob o impacto do massacre de Columbine (em 1999, no Colorado, dois jovens mataram 12 alunos e um professor a tiros), Ciavarella implantaria política de tolerância zero para adolescentes. Michael Moore propagandeou o caso em “Capitalismo: Uma História de Amor” (2009).
Se o propósito era prevenir violência –banir arma, droga, agressão e assédio– do ambiente escolar, conflitos menores, que poderiam ser resolvidos pela direção da escola, também iam parar no juizado. Encarceramento de meninas e meninos com apoio de pais e mestres: um jeito de se livrar de “alunos maus”.
Os réus eram submetidos a veredicto quase instantâneo, depois de, sob pressão, renunciarem ao direito de ter advogado. Em 54% dos casos faltou defesa, o que não chamava a atenção porque, na verdade, o severo juiz internava todos, indiscriminadamente.
A Suprema Corte dos EUA decidiu no ano passado nem analisar seu derradeiro recurso. Por ironia, a mais recente cartada de Ciavarella é tentar anular a condenação por se considerar indefeso, apesar do prestígio dos profissionais que atuaram em seu favor.
O documentário “Kids for Cash” (2014), direção de Robert May, está no Netflix. Destaca o sofrimento e o trauma dos atingidos e a complexidade do tratamento da delinquência juvenil: “crianças não são adultos pequenos”, têm a região cerebral que regula a tomada de decisões e a própria noção de risco ainda em processo de desenvolvimento.
O condado de Luzerne é região de pobreza branca, e o racismo, aparentemente, não era parte da motivação de Ciavarella. Com população de 318 mil habitantes, a maioria é de brancos (92,3% para 4,6% de afro-americanos). Lá, o drama repressivo não era só de negros.
O documentário tem a virtude de difundir a versão de Ciavarella, que sempre negou a troca (prendia por prender, não por dinheiro), confessando só o recebimento da comissão, como intermediação comercial antiética, e a ocultação dos valores: “Não sou tão mau quanto falam”.
Muito além da promiscuidade entre empresários e magistrados, episódio que fere a política de privatização de prisões, fica um sentimento incômodo: caso Ciavarella exercitasse o mesmo rigor punitivo, encarcerando milhares de jovens por motivos banais, mas sem o benefício financeiro, seria lembrado apenas como justiceiro travestido de juiz. Não estaria preso.
Se propina é mal que atormenta, a ideologia também pode ser.
4 respostas
Lá temos a Suprema Corte Americana a quem os ofendidos podem recorrer e não utilizam o “domínio do fato”, e não conheço nenhum caso de algum juiz Americano, amigo da Midia republicana, que se preste ao papel de tentar derrubar o partido democrata, e seja por isso homenageado por um Jornal. Isto jamais seria tolerado. Não se diga que lá não há políticos corruptos. Ao contrário de lá, ninguém se julga dono do país e único herdeiro de suas riquezas ao contrário da oligarquia brasileira.
Fico me perguntando quanto foi que determinado juiz do STF recebeu após o fim do julgamento do mensalão petista.
Será que o apartamento em Miami foi parte do pagamento? e o emprego que a globo deu para o filho?
Porque será que o ilustríssimo se aposentou logo após o fim do processo?
A fábula do rábula.
“Se propina é mal que atormenta, a ideologia também pode ser.”
Quem dera a maioria dos brasileiros pudesse alcançar a profunda verdade desse texto.
Pena que a maioria de nós não domina sequer o conceito, o que vem a ser ideologia e, portanto, jamais entenderá o mal que representa um celerado de toga a promover “justiçamentos” em nome dela.
Em terra de cego, quem tem um olho padece de depressão.