Na véspera do lendário concerto em Berlim, em 1987, David Bowie passou o dia no lado oriental. Não tínhamos a menor ideia do que ele tinha ido fazer lá, do outro lado do muro. Aliás, naquela época, ninguém imaginava que algo, um dia, pudesse demover aquela estrutura de concreto bem armado que dividia o mesmo povo em dois mundos. Muito menos que a queda se desse de forma tão inusitada.
A propósito, desde a fundação da primeira Berlim, em 1237, na parte onde está a ilha dos museus (Museusinsel) e sua fusão, setenta anos depois, com o lado norte do rio Spree, quando se formou a cidade dupla, as histórias que compõe a História das Berlins se dividem em trágicas, cômicas e, também, inusitadas.
Depois de passar por vários distúrbios sociais, acrescidos de pestes, guerras e incêndios, a cidade iniciou sua ascensão quando se tornou capital da Prússia e residência oficial do rei. Friedrich III, que era um reles príncipe, conseguiu a promoção após sua autocoroação, transformando-se em Friedrich I, o rei da Prússia. Mas o cara não estava ali para brincadeira. Iniciou um processo de desenvolvimento da cidade, construindo grandes jardins públicos, avenidas (como a famosa Unter den Linden) e, antes de bater as botas, passou o bastão para outros Friedrichs.
Seus sucessores não só deram continuidade à ambiciosa intenção, como ainda, de lambuja, a transformaram na cidade industrial mais importante da Prússia. Além disso, os investimentos em ciências, artes e cultura fizeram com que Berlim passasse a ser o centro do iluminismo. Por esta razão, pensadores, artistas e arquitetos eram atraídos para lá. Nas décadas posteriores foram construídos por Schinkel edifícios dum classicismo pomposo.
Também Lenné criou jardins públicos de um valor artístico esplendoroso. Não fosse outro ambicioso melar os planos, um cara chamado Napoleão, que invadiu, bateu e mandou prender, a fundação do Império Alemão poderia ter demorado menos. Mesmo assim, em 1871, Berlim se tornou a capital desse império e os Friedrichs, que agora eram Wilhelms, acabaram se metendo numa encrenca das grandes: a primeira guerra mundial, cujo desfecho todos nós conhecemos.
Mas depois da divisão da Alemanha em oriental e ocidental, que resultou na construção daquele muro horroroso que cercava a cidade de Berlim, incrustada no meio da Alemanha oriental, outras histórias passaram a compor a Crônica Alemã. Muitos escritores tiveram que produzir no exílio, outros permaneceram em solo comunista, cujas primeiras produções se baseavam em romances dedicados às tragédias da guerra e, também, temas que idealizavam o universo do trabalhador.
Nos anos 60 a produção literária passou a contar com obras mais realistas, que tentavam superar a dicotomia entre trabalho manual e intelectual. Mas foi Christa Wolf quem tematizou, pela primeira vez, a divisão alemã em O Céu Dividido (1963) e Jurek Becker se dedicou à crítica ao cotidiano da Alemanha oriental.
Na década seguinte ainda haveria o subjetivismo de Sarah Kirsch e Stefan Heyn, mas os anos que antecederam a queda, os não menos tumultuados anos 80, eram tempos em que a roqueira Nina Hagen frequentava um bar chamado Risiko e que o monomotor do jovem Mathias, de apenas 19 anos, pousou em plena praça vermelha, diante do Kremlin, num rasante que decepou as cabeças mais altas dos mais altos generais russos.
Naquela noite de sete de junho, o camaleão do rock subiu ao palco, que tinha como fundo o majestoso parlamento alemão – Reichstag, para fazer história. Eu e outros sessenta mil jovens nos espremíamos naquele gramado da Praça da República para ver e ouvir um Bowie que – presença de palco – parecia ter três metros de altura.
De repente a música parou, começou-se a ouvir um ruído que parecia uma espécie de protesto. A gritaria vinha do outro lado do muro, que ficava imediatamente atrás do Reichstag. No lado oriental, outra multidão ouvia Bowie, mas não podia vê-lo. Aos gritos de “O muro tem que sair” e “Nós também queremos ver”, pessoas eram contidas por soldados que não hesitaram em usar a força para tentar dissipar os fãs, que não se intimidaram.
Nesse instante, Bowie virou-se para o lado do muro e, antes de iniciar a próxima canção, disse: “Essa é pra vocês!”.
Cantou a clássica música que conta a história de dois amantes que se encontram no Muro de Berlim: “Heroes”. Todos nos sentimos heróis por um dia.
Tempos depois, se soube que havia equipamentos (caixas de som) virados, estrategicamente, para o lado oriental e também que no dia anterior, Mr. Bowie, havia se encontrado e articulado o ‘movimento’ com jovens alemães orientais. Ele não tinha ido a passeio.
Naquele dia, o muro começou a cair.
8 respostas
Não sabia desse evento ocorrido com Bowie em Berlim. De fato, foi fantástico, principalmente, levando-se em consideração a data, 1987.
Tijolaço também é cultura!
Tijolaço é cultura sempre!
Golaço do Jari da Rocha!
Excelente informe de bastidores do sempre inusitado David Bowie.
Saudações!
Acredito que pode ter sido mesmo dentre tantas, uma contribuição para que o murro viesse abaixo. Penso que chega de muros, chega de divisões, não somos um ilha e podemos sim vivermos livres, unidos, respeitando as diferenças.
Me lembrei do filme Christiane F. ,que no filme era fã do Bowie , essa divisão, o muro, e Bowie também foram abordados. Não me lembro de quase nada do filmes, mas a presença do muro e de Bowie no filme foi marcante.
Que texto grandioso!!! Uma bela homenagem !
Grande perda. Pena ele não ter feito o mesmo no muro que separa judeus e palestinos em Israel. Muro bem mais alto que o de Berlin. Também poderia ter tentado fazê-lo no muro de 3000 Km separando dois países capitalistas Estados Unidos e México .