Os que brotam do impossível chão, por Marceu Vieira

morroagudo

Um dos sinais de degradação de um organismo social é a perda dos seus cronistas.

Pois o cronista é pessoa de poucas certezas e  imensas dúvidas, que enxerga o grande pelo miúdo, adivinha o enredo pela cena, reconstrói na cabeça o que lhe entra pela visão ou pela memória – e sempre passando pelo coração – de um instante do presente ou do passado.

Não é um professor, embora nos ensine, muito menos um sociólogo, embora como poucos seja capaz de falar do agir e do sentir das pessoas no lugar social, emocional, físico onde estão e, sobretudo, onde se sentem estar.

O cronista não tem que ter final, feliz ou trágico, pois o cronista não conclui. Porque khrónos, o tempo, não começa nem termina, a não ser nos frios cadernos da ordem: o da escola, o do contador, o dos diários.

Mesmo quando se serve da memória, o cronista não retrata um tempo morto, mas o que vive e viverá.

É por isso que uma coletividade que perde a delicadeza perde seus cronistas.

Sempre os invejei e nunca me achei capaz de ser: a mania de meter-me  a entender de tudo – a meio metro de profundidade, que seja – sempre me tirou este magnífico dom da perplexidade, que é origem e produto do artista.

Mas só a metade dele, porque sobrou-me o prazer de vê-la ser sentida, tornada texto e presenteada a quem não se brutalizou.

Por isso, confessei outro dia aqui a minha admiração pelo amigo – mais de sentir do que de conviver – Marceu Vieira e recomendei o seu blog, recém inaugurado por teimosia de muitos amigos que lhe reclamavam tal prazer.

Para os que não viram, e para os que, como eu, acham que a vida é muito mais que fuçar sujeiras, à procura do que há de pior nos homens, reproduzo outro texto de Marceu, sobre sua terra interior, Morro Agudo, na Baixada Fluminense, um pouco mais longe do que o Realengo da minha infância, mas do qual estar longe  dói igual.

Morro Agudo

Marceu Veira

De um ponto de vista puramente romântico, talvez eu tenha passado em Morro Agudo os dias mais felizes da minha vida. Puramente romântico porque, na verdade, eu não aconselharia nenhum garoto de playground do Leblon a trocar de infância comigo.

Sinto muita falta de Morro Agudo, de seus campos de pelada, de seus botequins com vitrola de ficha e suas ruas batidas de terra, onde ainda hoje parecem zanzar as resignações da minha infância simples, mas feliz.

De todos os lugares que conheci, Morro Agudo continua sendo o mais especial de todos. Menos pelo que apresenta de beleza, que é nada, e mais pela coleção de lembranças que me desperta. Lá, ainda vivem minha mãe, meus tios, meus primos e amigos que vou levar para a vida toda.

Criança, eu não sabia que gostava tanto daquele lugar. Com a inocência de quem via o mundo apenas pela televisão ou pelas fotografias coloridas das revistas, não suspeitava de que um dia fosse mudar de ideia e preferir Morro Agudo à Praça Mauá, por exemplo, para mim um símbolo de progresso e de urbanidade naquele tempo.

Morro Agudo não fica longe nem perto. Depende. Fica muito longe da Pedra da Gávea ou dos quintais floridos do Morumbi, mas está a um pulo da Favela da Rocinha ou das privações da Zona Leste paulistana.

Nunca um presidente da República pisou lá. Nem para pedir voto. Governador do estado só apareceu antes da eleição. E de todos os prefeitos que administraram Nova Iguaçu, sua cidade-mãe, apenas um era de Morro Agudo. Mas antes não fosse, tamanho o desastre que aprontou.

Morro Agudo fica na Baixada Fluminense, capital da indigência do Rio, a uns 60 quilômetros da Zona Sul carioca. É um lugar feio, onde faltam emprego e saneamento, escola e diversão, hospital e segurança.

Mas, apesar disso, foi capaz de dar ao mundo gente como Pedrinho, Totó, Cláudio, Miguel, Fernando, Tono e Tito. Ou ainda como os irmãos portuguesinhos David e Manoel, amigos de escola que me ajudaram a desfazer a impressão infantil de que português já nascia velho.

Pedrinho, meu primeiro amigo, é um talento desperdiçado. Seu humor fino deveria ser reverenciado na TV. Totó, poeta da geração desbunde, escreveu alguns dos poemas mais lindos que conheço. Um dia, adolescente, encheu-se de coragem e remeteu um apanhado deles ao seu maior ídolo, Carlos Drummond de Andrade. Logo depois, para a surpresa de nós todos, Totó seria recebido pelo próprio Drummond e passaria uma tarde recitando seus versos para o encantamento do ídolo.

Não há como duvidar do Totó. Há uma testemunha. Com ele, naquela visita, estava Cláudio, que ainda hoje confirma a história em nossos encontros cada vez mais raros.

Eu e meus amigos de Morro Agudo não nos vemos com tanta frequência, mas, volta e meia, matamos a saudade em rodas de música e cerveja, e, nas aflições, sempre nos procuramos. É no meio deles que eu me refugio se alguma coisa vai mal deste lado de cá do mundo. E, aí, não dá outra – a gente ri de se acabar das histórias que vivemos juntos. Elas são muitas.

Uma certa madrugada, ali pela primeira metade dos anos 1980, estávamos todos num botequim de Morro Agudo quando, às 2h, 2h30 da manhã, nossa conversa foi interrompida por um sujeito que se apresentava como mágico.

– Estão vendo esta moeda? – o tal mágico perguntou, olhando para a gente.

Nenhum de nós demonstrou muito interesse, mas o homenzinho foi em frente.

– Prestem atenção, porque ela vai sumir! Pronto, sumiu! Mas ela está aqui, ó! – disse, “retirando” a tal moeda da orelha do Totó.

O sujeito quis saber se tínhamos gostado do número, e respondemos que com moeda era fácil. “Moeda é pequena, dá para esconder na manga da camisa”, dissemos.

O homem já atraía a atenção do botequim inteiro. Desafiador, pediu um ovo ao comerciante atrás do balcão e repetiu o número.

– Bom, ovo é grande, não se esconde em qualquer lugar, certo? Vocês vão ver que não é truque, é mágica!

Repetiu, então, os trejeitos e as palavras incompreensíveis do truque, fez o ovo desaparecer e perguntou, pedante:

– Onde vocês querem que o ovo apareça?!

Pedrinho respondeu primeiro:

– Pode tirar da minha bunda, por favor.

O mágico riu da graça do meu amigo e pediu que ele se virasse. Pedrinho obedeceu, empinou a bunda e, quando o mágico já ia enfiando a mão dentro da calça dele, o meu amigo… “Bruuuuuuuuummmm!”, soltou um peido.

O mágico ficou tão passado que deixou o ovo escorregar pela manga da camisa e se espatifar no chão. E ainda teve de limpar a sujeira, porque o dono do botequim não gostou do número.

Do peido na mão do mágico para cá, cada um de nós inventou um futuro diferente. Todos conseguimos atravessar o funil que há entre Morro Agudo e o resto do mundo, mas a coincidência mais relevante entre nós é outra. Continua sendo a da amizade mesmo.

A maioria deles ainda foi mais esperta do que eu e não saiu de lá.  Alguns saem de manhã para trabalhar e voltam de noite. Pedrinho é advogado, Cláudio é médico anestesista, Fernando trabalha com um dos maiores neurocirurgiões do mundo, Miguel é professor de biologia, Tito e Manoel são engenheiros, Tono trabalha com políticos, David é comerciante e Totó, por ironia, comanda as atividades culturais de um Ciep local que leva o nome do ídolo, Carlos Drummond de Andrade.

Um dia eu volto também.

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5 respostas

  1. Que maravilha! Viajei até Morro Agudo apesar de não conhecer, simpatizei com o lugar. Parabéns Fernando Brito por nos apresentar a oportunidade de conhecer essa pessoa de raro talento que é Marceu Vieira.

  2. Pois eu o invejo. Infelizmente aos 67 anos constato que não me resta mais nenhum amigo de infância dos pouquíssimos que fiz então.

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