O auditor da Receita Federal Allan Patrick escreveu para o blog Escreva, Lola, escreva o mais meticuloso e detalhado texto que já li – com o perdão dos advogados – sobre o caráter kafkiano do que se desenvolve na suposta “investigação” contra Lula.
É longo, mas simples, claro e objetivo.
Argumentos para entender e explicar como o que se passa é inexplicável e, ainda assim, assume nos jornais e na TV os foros de “verdade”, “legalidade” e “moralidade”.
Leitura imperdível para quem pensa.
Lula e a Lava Jato
Allan Patrick, Auditor da Receita Federal
Já que Lola é Professora de Literatura, eu poderia começar e encerrar este post dizendo que uma resposta curta e precisa, em apenas um parágrafo, às suas indagações sobre essa operação poderia se resumir a um personagem, Josef K., e à obra por ele protagonizada, O Processo, de Franz Kafka.
Aparentemente, Lula é acusado de receber por palestras fantasmas, de receber demais por palestras, de ser contratado para palestras em mais de 30% dos casos por empresas que já tiveram negócios com o governo, de ter montado um instituto de fachada para lavar dinheiro sem pagar imposto, de ter um sítio ou ainda por ter um apartamento no Guarujá que não está em seu nome.
Ao ver isso no noticiário, o leigo pode pensar que a investigação está se aprofundando, quando na realidade ela está perdida porque, uma após outra, as acusações são rebatidas pela defesa. É incrível como a situação de Lula na Lava Jato se encaixa à perfeição na breve sinopse que a Wikipédia em português apresenta sobre O Processo:
“Sem motivo Josef K. é capturado e interrogado em seu aniversário de 30 anos. As circunstâncias são grotescas, ninguém conhece a lei e a corte permanece anônima. A ‘culpa’, descobre Josef K., torna-se-lhe inerente, sem que ele possa fazer algo contra isso. Obstinadamente, mas sem sucesso, ele tenta lutar contra o crescente absurdo e envolvimento, ignora todo aviso de resistência e é por fim executado um ano depois nos portões da cidade.”
Porque de antemão A Corte não acredita que alguém pagaria por uma palestra dele.
A Corte também não admite as provas em contrário apresentadas por Fernando Morais ou quem quer que seja.
Afinal, se Bill Clinton veio a Natal/RN em 2010 palestrar para promover a empresa americana que adquiriu a maior universidade particular do estado, então estamos diante de um evento lindo e maravilhoso! Clinton sim é um verdadeiro estadista.
Enfim, A Corte não admite que o Instituto Lula não seja uma organização criminosa.
Se o Instituto não foi usado pra lavagem de dinheiro ou pra pagar despesas pessoais de Lula, então A Corte entende que mesmo assim ele é um crime, pois no Código Penal anotado pela Corte constitui propina doação a um mausóleo de adoração soviética do “grande líder”.
A Corte descarta qualquer evidência em contrário. A construção dos “Diálogos Africanos”, debates sobre os imigrantes no Brasil, a visita a refugiados ou a elaboração do Memorial da Democracia não são evidências aceitas por Ela.
(Desculpem o breve desvario kafkafiano, mas é assim que a mente passa a funcionar quando imersa n’O Processo).
No meu meio social, classe média alta de uma capital litorânea, é comum alguém emprestar uma casa de praia ou de campo a um parente ou amigo próximo em troca de reparos ou de sua manutenção.
Mas essas são práticas costumeiras de quem pode. Isso não é pra qualquer um, muito menos um peão. Aliás, se for um peão fazendo isso, deve ser crime.
Lula é uma pessoa querida e amada por muitos. Se queremos nos embrenhar nos intestinos da Lava Jato, temos que falar de pessoas de reputação incógnita, já que exercem atividades normalmente execradas pelo público.
Vamos falar, por exemplo, do marqueteiro João Santana. Sobre ele, parece (afinal, estamos falando d’A Corte onde corre O processo e lá a defesa é sempre a última a conhecer o teor da acusação) que pesa a acusação de ter recebido um depósito em conta no exterior por uma atividade realizada no exterior (segundo o próprio João Santana) ou no Brasil (segundo A Corte).
Como Lola me apresentou, eu sou Auditor Fiscal, trabalho na Receita Federal, e entre outras atividades que já exerci na instituição, uma delas foi a de fiscalizar contribuintes que não tinham cumprido suas obrigações tributárias corretamente.
Neste momento, havendo dúvidas razoáveis sobre a legalidade do ato, provavelmente será aberto um procedimento fiscal. Aberto o procedimento fiscal, ele é distribuído a um servidor público ocupante do cargo de Auditor Fiscal. Essa pessoa intimará o contribuinte a prestar esclarecimentos e buscará, por meios lícitos de prova, informações que comprovem ou desmintam a versão que o contribuinte apresentar para o depósito vultoso.
Havendo a autuação, o contribuinte tem direito a contestar o resultado do Auto de Infração. Se assim o fizer, esse Auto será revisto internamente numa unidade distinta daquela onde o Auditor Fiscal que o elaborou trabalha, chamada Delegacia de Julgamento, também composta por Auditores Fiscais.
Se esse Conselho finalmente entender que aquele depósito é um ilícito tributário, o Auto de Infração retorna à unidade de origem sem mais chances de ser revisto administrativamente e pronto para cobrança.
Mas atenção: nesse caso o STF já pacificou jurisprudência no sentido de que, se o contribuinte pagar os valores relacionados no Auto de Infração, extingue-se o processo penal e o contribuinte não responderá pelo crime de sonegação.
Eventualmente, se durante o procedimento fiscal, o Auditor descobrir indícios que apontem para a origem ilegal desse depósito na conta do contribuinte — que não a mera sonegação de tributos — pode encaminhar de imediato Representação Fiscal para Fins Penais ao Ministério Público Federal que, usualmente, solicitará à Polícia Federal a abertura de um inquérito para apurar informações que complementem essa representação e, se entender cabível, ao receber de volta o inquérito preparado pela PF, apresentará uma denúncia perante um juiz.
Comparemos esse roteiro tradicional com o que aconteceu com João Santana. Ele foi preso de cara lá no momento inicial, quando num caso normal tem início o procedimento fiscal na Receita Federal. Ou seja, a situação dele é excepcionalíssima quando observada lado a lado com possíveis ilícitos similares.
1) Supõe-se (lembrando que n’A Corte acusações são sempre mutantes, portanto no condicional) que ele está sendo acusado por fazer campanhas eleitorais para Lula e o PT em troca de dinheiro oriundo de propinas, mas não estamos em campanha eleitoral, ou seja, no momento é impossível a continuidade delitiva
3) Aí resta, para justificar o aprisionamento, a acusação de destruição de provas, a qual não faz sentido porque se houvesse qualquer preocupação com isso A Corte não estaria há mais de uma semana vazando que João Santana seria alvo de uma operação — ao mesmo tempo em que recusava pedido feito por ele para depor espontaneamente!
Será que João Santana apagou alguma coisa dos seus computadores? Bom, depois que houve um vazamento sobre brinquedos sexuais de um réu numa recente operação do MPF em Brasília, isso seria estranho?
Qualquer Estado Democrático de Direito digno de tal denominação não pode tratar de forma desigual, perante a lei, pessoas em situação semelhante.
Além da desigualdade de acesso ao direito, pesam desconfianças sobre a imparcialidade da Operação. Só Aécio Neves, por exemplo, já foi citado por três delatores. E, embora ele tenha foro privilegiado, as pessoas do seu entorno não têm. E elas não foram abordadas. Uma Justiça que não trata a todos com isonomia não representa um Estado Democrático de Direito.
Ao que parece, existe um Direito Penal para um setor da sociedade, onde se incluem Fernando Henrique Cardoso, Aécio Neves, Eduardo Cunha, José Serra, dentre outros, e um segundo Direito Penal, o Direito Penal do Inimigo, tal como concebido por Gûnther Jakobs, que se aplica ao “Outro”, ao “Petralha” ou qualquer um que a estes possa ser associado, e que os sujeita a: (a) antecipação da punição e (b) desproporcionalidade das penas e relativização e/ou supressão de certas garantias processuais.
Em paralelo, me causa espanto que o escândalo seja conhecido como da “Petrobrás”, a empresa vítima do esquema, e não da Samsung, a empresa que teria praticado a corrupção ativa e incentivado diretores da Petrobrás a trair os interesses da estatal em troca de propinas. Mas isso seria tema pra outro post.
PS do Tijolaço: E como se não bastasse, em outro texto, publicado ontem, Patrick se dedica, com didatismo e paciência, a responde e esclarecer todas as dúvidas e lugares-comuns sobre Guarujá, sítio, pedalinhos e outros “escândalos” que envolveriam Lula. É preciosamente claro. Boa sugestão para quem puder fazer um “Perguntas e Respostas”.