A cabeça de um líder

Era novembro de 1989.

Excluído do 2° turno contra Collor por apenas 0,5% dos votos, Brizola recolhera-se a sua Casco Viejo, uma pequena casa de pedras e um telhado de amianto pintado de vermelho, sede de sua tão fantasiada fazenda no Uruguai, El Repecho (a colina, numa tradução livre).

Lambia as feridas, para empregar a expressão  que ele próprio costuma usar para o necessário período de restabelecimento, ainda mais depois de ter ficado a pouco mais de 450 mil votos do embate final.

Na tarde de 22 de novembro, uma semana depois do primeiro turno, o telefone – cujo número Ricardo Kotscho, assessor de imprensa do Lula havia me pedido – toca por lá.

Conversa curta, de poucas palavras e amabilidades quase formais.

Os dois combinam de se encontrar dia 25, um sábado, antes de uma “pajelança” – como costumávamos chamar reuniões amplas, com milhares de pessoas – do PDT.

Datas são importantes: faltavam, daquele domingo, ali exatas três semanas para o segundo turno das eleições. 21 dias.

A adesão à candidatura Lula não foi tranquila: o velho leão não entrega sem rugir a liderança ao leão novo, pouco experiente e ainda deslumbrado pela juba negra.

Mais ainda porque as estruturas partidárias e os militantes sempre tiveram rusgas, embate e, ali, ainda havia o ressentimento natural dos que víramos fugir por milímetros a dianteira do combate eleitoral.

Tão difícil era que, sabido, o velho Brizola teve de apelar para afirmação pela negativa,ao recordar a frase com que o general Euclydes Figueiredo, irmão do João  presidente, reagiu à sua eleição sete anos antes ao governo do Rio de Janeiro – “Brizola é um sapo, que a gente engole e depois expele”.

E disparou, sobre uma platéia ainda hostil a apoiar o petista:

– Pois não seria uma maravilha termos de fazer essa gente engolir outro sapo, e um sapo barbudo?

Começava aí uma avassaladora transferência de votos, quase ao ponto de não ficar um de fora: Lula chegou a 73% no Rio e a 68% no Rio Grande do Sul, somando toda a votação de Brizola.

21 dias, repito.

Verdade que o quadro era outro, verdade que Brizola pôde aparecer em comícios e na TV, recomendando o voto.

Mas Brizola e Lula tinham rusgas e “torcidas” bem pouco dispostas  a “vestir a camisa” do adversário de ontem, o que não é o caso de Fernando Haddad, sobre o qual, aliás, exceto o antipetismo, não vejo razões para ter os altos índices de rejeição apresentados em algumas pesquisas- e só algumas delas.

Por esta brutal transferência de votos, não há muitos que questionem a demora de Brizola em apoiar Lula e nem tão poucos que o critiquem por manter a corda esticada com as disputas com José Paulo Bisol, então o vice do petista.

Lula vai passar a Haddad o bastão da candidatura, não o da liderança política e  Haddad sabe que é receber o bastão de candidato é o que lhe dará a faixa presidencial, adiante.

Líder que não preserva sua liderança já não é líder, porque deixou de ser a montanha, a referência da população e, assim, perdeu a capacidade de orientar o povo.

Não é uma questão de generosidade ou desapego pessoal. É uma questão de capacidade de conduzir a disputa política.

E não de ser conduzido por ela.

 

Fernando Brito:

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  • Pois é, naquela eleição eu votei em Lula, mas acho que Brizola poderia ter derrotado Collor. Ou não, porque a Globo poderia ter dado um golpe ainda mais forte em Brizola.

    Hoje a transferência de votos de Lula para Haddad é mais fácil do que foi de Brizola para Lula naquele 1989.

  • Tem uma grande diferença entre o âmbito daquele fato e o de hoje. Acolá pensávamos que estávamos nos livrando da ditadura, agora sabemos que ela permanece instaurada entre nós. Não vivemos tempos de normalidade institucional. Não podemos normalizar essas eleições. Sem Lula, nao tem nenhum sapo para ser engolido, até porque o sapo genuíno permanece vivo a clamar por justiça .

  • Brilhante como sempre, brito!
    Quem achou q lula não seria líder nesse momento de crise, não conhece o sapo barbudo.

  • Ao cabo deste processo. Caso sairmos vitoriosos, como acredito que seremos, é necessário que o Fernando Brito, faça uma compilação de seus artigos carregados de esperança e certamente profético, que antecederam estás eleições.

  • Dizer mais, o quê? Está dito em poucas palavas, com a sinceridade e o brilhantismo de sempre. Isso que aponta, que acontecia entre Lula e Brizola, que tinham muitos pontos convergentes, acontecia também entre Lula e Miguel Arraes.Esses dois velhos políticos diante do ainda relativamente jovem Lula não podiam deixar de afirmar suas lideranças, mas sem ofuscar o novo que surgia.

  • Segundo o TSE, o PT tem até amanhã (11) para substituir Lula por Haddad na cabeça da chapa do partido. Já o PSL tem até o dia 17 para fazer a mesma coisa, ou seja, substituir Bolsonaro ou sair da disputa apoiando o PSDB do Alckmin. O problema está no vice. Será que o general aceita ir para casa? Ou vai impor sua candidatura como cabeça da chapa. Parece que o general tomou gosto pela exposição aos holofotes e vai fazer de tudo para permanecer iluminado. Mas quem seria o vice se isso se confirmar?

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