Sim, são uma rima e, ao contrário do versos de Drummond no seu Poema de Sete Faces, são também uma solução.
Sem atos como o de ontem, não poremos fim nem ao (des)governo Bolsonaro e também não à descrença dos brasileiros. Ou queremos ser o país onde as maiores atrocidades são cometidas e a prostração fatalista eram respondidas com ralas “notas de repúdio”?
Não, é preciso manifestações – lá fora mais propriamente chamadas pelo que são: demonstrações – da sociedade, que sejam visíveis e audíveis na rua, que reacendam nossa confiança em as forças populares são maioria neste país e não apenas resistentes, em guetos de sanidade em meio à loucura fascistoide em que mergulharam nosso país.
Não é apequenar a resistência, ao contrário, ela é a própria sobrevivência, mas é tensa e limitada. Já a ofensiva é alegre, generosa, é ímã que atrai e arrasta.
Mas os atos políticos derivam ou reagem aos fatos. E os fatos estão surgindo: chocantes, repugnantes, sórdidos, tudo numa crueza que envolve dinheiro e morte, em situações que demonstram não só indiferença à vida dos brasileiros – o que já é monstruoso – mas também o aproveitamento da abjeta “oportunidade” de lucrar com a doença e com as perdas do país.
O horror é magistralmente definido na foto de Daniel Arroyo, da Ponte Jornalismo.
A desimportância – e até rejeição – com que o governo tratava a compra de vacinas já estava evidenciada, mas o indício de corrupção foram demolidores, porque a população compreendeu, numa “tacada” a razão das políticas do governo.
Janio de Freitas, na Folha, resume bem este processo:
Os fatos em apuração pela CPI foram agora levados ao encontro de sua origem e fins. Da verdade por trás de Bolsonaro: a corrupção.
O crime de desmatamento e o contrabando de madeira movem muito dinheiro, aqui e fora. Bolsonaro veio proporcionar-lhes proteção contra ações repressivas. De graça? O garimpo ilegal e a extração clandestina de minerais preciosos movem fortunas imensas. Bolsonaro veio lhes assegurar o afastamento dos obstáculos legais e a tranquila exploração em reservas indígenas. De graça? Com o controle dos recursos policiais e militares, completado pela ação corrosiva de marginais como Ricardo Salles, o projeto Bolsonaro não foi investigado e exposto.
A CPI inaugura a rota: descobre a milícia da Covid. A rede de patifarias que recusou vacinas e esbanjou dinheiro público em cloroquina, vista como expressão do negacionismo ideológico-religioso, teve a mesma sede e as principais figuras da gigantesca falcatrua construída, e já engatilhada, para compra de vacina Covaxin com o mais alto custo por dose.
Atos e fatos estão à mesa da realidade palpável e é preciso que a eles se juntem aos pratos vazios de uma população à qual só por escárnio se pode dizer que o Brasil está em forte “recuperação econômica”, mas que não vê cair o desemprego e que, por isto e por outras razões, como uma inflação anual que já vai perto dos 9%, vê cair sua renda e seu poder, já mísero, de compra.
Tanto é assim que o suporte ao bolsonarismo depende cada vez mais das classes médias que não sofre esta corrosão – a renda dos que ganham mais de 10 salários mínimos cresceu 7% em um ano, enquanto a dos que ganham abaixo disto decaiu 5,2% .
O povo mais pobre, ao contrário, sente a necessidade de mudar e é por isso que o recall da figura de Lula é tão forte entre os de menor renda: 62% de intenção de voto entre os que ganham até o salário mínimo, uma vantagem de quase 4 por um em relação aos que escolhem Bolsonaro.
Sim, esta é a memória do prato, do trabalho, da vida, a memória do sonho que não se esvai.
“Colar” o inseparável – democracia e justiça social – é a tarefa essencial, agora.