Fala-se muito em revisão do arcabouço fiscal e da legislação trabalhista a partir de 2023, admitindo-se, claro, que o atual Presidente da República não seja reeleito. Perfeito. Mas não vamos esquecer que seria preciso rever também o arcabouço monetário. Muita barbaridade foi feita nessa área nos últimos anos. (Aliás, em que área não?!)
Passaram a boiada. Não só no tema ambiental, como no campo da moeda e do câmbio. Vou ser modesto, leitor. Nem quero discutir hoje a autonomia do Banco Central (BC), que prevê mandatos fixos e não coincidentes com o do Presidente da República para o presidente e os demais diretores da autoridade monetária. Se for de fato eleito, Lula herdará, para a fase inicial do seu governo, o presidente e a maioria dos diretores indicados por Bolsonaro/Guedes. Porém, Lula e seus porta-vozes já deixaram claro que pretendem conviver com isso. O candidato não tem ânimo ou não se sente em condições de políticas enfrentar essa parada.
Mesmo assim, há muito que pode e deve ser feito na área monetária. Refiro-me a dois temas interligados: a) a composição do Conselho Monetário Nacional (CMN); e b) a lei do marco cambial.
Ampliação do Conselho Monetário Nacional
O CMN é o órgão que dá instruções ao BC e toma outras decisões importantes. Fixa, por exemplo, as metas de inflação para o BC e orienta o sistema financeiro. As dificuldades aqui residem, por um lado, na composição inadequada do CMN e, por outro, no seu esvaziamento por decisões recentes.
O CMN tem atualmente apenas três membros: o Ministro da Economia, o Secretário da Fazenda do Ministério da Economia, subordinado ao primeiro, e o Presidente do BC. O Ministro da Economia preside o CMN e a sua secretaria é exercida pelo BC. Quem tem o mínimo de traquejo sabe que exercer a secretaria de um órgão dá controle da agenda e do encaminhamento dos temas, conferindo muito poder e influência. Assim, o BC tem um dos três votos e o comando da agenda. Na prática, dá instruções a si mesmo.
Desde o Plano Real, o CMN era integrado pelo Ministro da Fazenda, o Ministro do Planejamento e o Presidente do BC, com secretaria do BC. Lula e Dilma não mexeram nisso. Houve cogitações de ampliar o CMN em 2004 e 2005, com apoio do Conselho do Desenvolvimento Econômico e Social, da CUT, da Fiesp e da CNI, mas o assunto acabou não avançando.
Com a fusão dos ministérios da área econômica no governo Bolsonaro, o que era ruim ficou pior. Desapareceu não só o Ministério do Planejamento, mas também o da Indústria e Comércio e até o do Trabalho.
Imagino que um eventual governo Lula desfaria essa ineficiente centralização da área econômica nas mãos de um ministro só, recriando os ministérios da Fazenda, do Planejamento e da Indústria e Comércio. O do Trabalho já foi recriado nesse meio tempo.
Pois bem, porque não incluir no CMN, além do Planejamento, os ministérios da Indústria e Comércio e do Trabalho? E, quem sabe, também o da Agricultura? E porque não tornar o CMN ainda mais representativo, incluindo um representante da área empresarial e outro dos trabalhadores e, talvez, alguém da área acadêmica? O governo eleito conservaria a maioria, mas daria voz e voto a representantes da sociedade. O CMN passaria então a ter oito ou nove membros. Para evitar um possível viés inflacionário, pode-se prever que a secretaria continue com o BC e que o Ministro da Fazenda, além de presidir o CMN, tenha um papel claramente preponderante, algo como o poder de vetar determinadas decisões, por exemplo.
Lembro que na época da ditadura, nesse ponto mais democrática, o CMN era muito mais amplo. Desde os tempos da sua criação em 1964 até 1994, o CMN contava com a presença de ministérios setoriais, de presidentes de bancos públicos e de representantes do setor empresarial e dos trabalhadores.
Reverter o esvaziamento do Conselho Monetário Nacional
A ampliação do CMN não seria suficiente, entretanto. Ocorre que, no governo Bolsonaro, o CMN foi esvaziado com a transferência de funções estratégicas para o BC. Veja o absurdo, leitor. Decisões estratégicas foram transferidas para um BC autônomo em relação ao governo eleito.
Pelo novo marco cambial, aprovado praticamente sem discussão pelo Congresso em 2021, o BC ficou autorizado a liberalizar as transações internacionais de capital, a seu critério, podendo no limite decretar a conversibilidade plena da moeda nacional. Ora, medidas desse podem ser defensáveis ou não, há controvérsias entre economistas, mas são inegavelmente de enorme importância, de difícil reversão, e não podem ficar nas mãos exclusivas da combinação de financistas e tecnocratas que costuma comandar o BC – agora com mais independência em relação ao poder político.
O BC ficou também autorizado a ampliar as hipóteses de uso interno da moeda estrangeira, recebendo carta branca para regulamentar contas em moeda estrangeira, inclusive quanto aos requisitos e procedimentos para sua abertura e movimentação. De novo, cabe frisar, a seu critério exclusivo, sem passar pelo crivo do CMN ou de mais ninguém. O risco é que a economia brasileira possa ser paulatinamente dolarizada, seguindo o caminho infeliz da maior parte dos países latino-americanos.
O BC merece respeito, tem um bom quadro de funcionários e, regra geral, desempenha com competência e seriedade suas atribuições. A lei do marco cambial tem certamente aspectos positivos, de modernização e simplificação das transações com moeda estrangeira. Mas é preciso separar o joio do trigo. Manter as mudanças que trazem eficiência, abandonar as que criam vulnerabilidades para a economia brasileira e trazem o risco de dolarização.
Por competente que seja, o BC não deve poder tomar decisões monetárias e cambiais que afetam o futuro do País, de forma profunda e difícil de reverter, por decisão autônoma, à revelia do poder político eleito. Não funciona assim em parte alguma do mundo, até onde sei.
Caberia devolver, portanto, a um CMN ampliado e mais representativo, as responsabilidades indevidamente transferidas ao BC. Essa revisão do arcabouço monetário seria um passo importante para corrigir distorções introduzidas no passado recente.
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Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista “Carta Capital” em 27 de maio de 2022. O autor é titular da cátedra Celso Furtado do Colégio de Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, começou a circular em março de 2021. E-mail: [email protected]