É essa a “liberdade” que eles querem?

fichados

Nestes dias em que aparecem os imbecis que pedem a volta da ditadura -com o complacente beneplácito de quem acha que pedir a supressão dos direitos alheios é, também, democrático – é importantíssima a reportagem de Mariana Sanches, em O Globo, sobre o livro Infância Roubada, que conta a história das crianças presas e fichadas pelo crime de serem filhas de “subversivos”.

É certo, e ela o relembra, que não chegamos, em geral, aos absurdos argentinos de distribuir bebês às famílias amigas do regime militar.

Mas só fichar como criminosas estas crianças da foto, já é criminoso é, como criminoso é tirar-lhes parte de suas identidades e de sua própria nacionalidades de brasileiros.

Nem é preciso falar nos interrogatórios, nas prisões, na tortura.

É esta monstruosidade que louvam, impunemente,  sob a tolerância de um relativismo moral que passou a considerar “direito do cidadão”  defender um regime destes.

Leia, a história fala por si e pelos traumas que, 50 anos depois, quase, sobreviveram nos sobreviventes.

 

Livro reúne histórias de crianças presas, torturadas ou exiladas durante a ditadura no Brasil

Mariana Sanches, em O Globo

Os cabelos acastanhados desciam pelas costas estreitas até a cintura. Eram a expressão de vaidade da menina Zuleide Aparecida do Nascimento, de quatro anos. E uma das poucas coisas — além de uma boneca de plástico — que Zuleide supunha lhe pertencer quando foi presa por agentes da ditadura militar, em 1970. Talvez por isso a lembrança do corte de cabelo forçado que sofreu no Juizado de Menores seja uma das mais marcantes memórias de Zuleide.

— Aquilo foi uma violência muito forte para mim — afirma ela, aos 49 anos, emocionada.

Zuleide e os irmãos de 2, 6 e 9 anos foram “capturados” no Vale do Ribeira, onde sua família se engajara na luta armada contra o regime. Ali, Carlos Lamarca comandava quadros da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Quando o grupo foi preso, as crianças também o foram. Acabaram fotografadas (Zuleide, na imagem ao lado, já com o cabelo cortado), fichadas e tachadas como “miniterroristas” no temido Dops (Departamento de Ordem Política e Social). E foram banidas do Brasil. Ao lado de 40 presos políticos, embarcaram em um avião em direção à Argélia, e depois à Cuba, em uma negociação da esquerda com o governo militar que envolveu o sequestro do então embaixador alemão Ehrenfried von Holleben. O retorno de Zuleide ao Brasil só seria possível 16 anos mais tarde.

— Sou uma pessoa sem identidade. Fui alfabetizada em espanhol. Meus documentos foram cassados, nem sei que dia nasci. Me sinto mais cubana do que brasileira — diz.

A história de Zuleide e de outras 39 pessoas que hoje têm entre 40 e 60 anos e foram crianças durante o regime militar estão contadas no livro “Infância roubada”, recém-lançado pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. O material é uma tentativa de rememorar, a partir dos relatos das vítimas, como o Estado militar tratou os filhos de seus inimigos. São narrativas inéditas de um dos trechos menos conhecidos da história nacional. Em pouco mais de 300 páginas, ilustradas com fotografias e documentos históricos, há depoimentos e contextualizações dos casos.

“Infância roubada” tem valor historiográfico por sugerir um certo padrão de tratamento dispensado pelos militares às crianças. Além de serem banidas, ficaram presas com os pais, participaram de sessões de tortura das mães, como espectadores ou como alvos das sevícias. E tiveram a própria existência ameaçada. É o que relata Paulo Fonteles Filho, nascido em 1972, em um hospital militar. Seus pais foram presos por atividades comunistas. Fonteles conta que o pai assistiu a torturas da mãe, Hecilda, grávida de cinco meses. Antes do nascimento da criança, os agentes teriam dito a ela que “filho dessa raça não deve nascer”. Depois do parto, os militares teriam demorado a entregar o bebê para a família de Hecilda porque não encontravam algemas que coubessem nos pulsos do recém-nascido. “Eles deviam me achar bastante perigoso!”, ironizou Fonteles em seu depoimento.

Zuleide partilha com Fonteles a mesma impressão:

— Tratavam-nos como se o comunismo fosse uma doença hereditária, sem cura. Como se fosse uma praga que pudesse se espalhar pela sociedade. Éramos um risco.

Apesar das semelhanças entre os regimes militares brasileiro e argentino, as narrativas sugerem uma diferença fundamental entre eles no tratamento dispensado às crianças. Se, na Argentina, os militares entendiam os filhos de inimigos como uma espécie de riqueza nacional, uma matéria bruta valiosa a ser moldada para a construção da sociedade que desejavam, no Brasil, o Estado, de inspiração fortemente positivista, foi para o lado oposto. As argentinas presas grávidas eram tratadas com cuidado até o nascimento da criança. Casos de aborto eram raros e acidentais. Depois de nascidos, os bebês eram entregues a famílias da elite militar ou a seus apoiadores. O resultado foi mais de 500 crianças sequestradas e adotadas ilegalmente.

Já as forças repressivas brasileiras parecem ter revivido uma inspiração lombrosiana. O cientista italiano Cesare Lombroso fez sucesso entre a polícia nacional nos séculos XIX e XX ao defender que características físicas hereditárias — tais como o formato da orelha — eram capazes de predizer se um sujeito era louco ou bandido. Ao tratar o comunismo quase como doença congênita, os militares parecem ter flertado com a estapafúrdia teoria. Esta hipótese, discutida por especialistas, ainda demanda estudos mais profundos para ser comprovada ou descartada. A tarefa deve ser facilitada quando forem publicados os relatórios das comissões da verdade em curso.

O segundo trunfo de “Infância roubada” é dar voz a pessoas cuja dor nunca havia sido abordada. Muitos dos que se dispuseram a falar jamais tinham revelado completamente seu passado. É o caso de Eliana Paiva, cujo pai, o ex-deputado Rubens Paiva, foi morto em tortura pela ditadura. Eliana passou 24 horas presa. Durante metade do tempo, teve que usar “um capuz fedorento” que a sufocava. Aos 15 anos, foi chamada de comunista, levou cascudos na cabeça, apertões nos seios.

— Conforme o tempo passava, os agentes diminuíram a agressividade no interrogatório. Intuí que meu pai já estava morto — conta.

Sua prisão, o desaparecimento do pai e o sofrimento contínuo da mãe marcaram sua vida:

— Nunca tinha conseguido contar tudo sobre a prisão. Nem para marido, nem para terapeuta. Mas, aos 59 anos, quero resolver algumas coisas. Falar pode ajudar.

Facebook
Twitter
WhatsApp
Email

21 respostas

  1. Se o Holocausto ocorrido na Alemanha tivesse sido aqui, fico imaginando certo pseudo-cantor reacionário que costumava cantar sobre invasões de praias e galinhas marilus, dizendo às vítimas (homens, mulheres, idosos, crianças..) e seus familiares que “só aconteceu porque ficaram fazendo merda”…

    é lamentável…

  2. Que a Comissão Nacional da Verdade publique seu relatório inicial em dezembro, como previsto.
    .
    E que seja em seguida transformada uma Comissão Nacional Permanente da Verdade, para continuar no seu trabalho.
    .
    Juntamente com as comissões estaduais e todas as outras a ela relacionadas.

  3. Fernando, a verdade é que quem pede a volta da ditadura militar não se sensibiliza com isso. Estão pouco ligando e, como se não bastasse, sentem saudade do “milagre econômico” ocorrido na época da repressão (claro que não usam este termo, porque não reconhecem que tenha havido “repressão”), justificando tudo o que houve. São calhordas!

    1. Os imbecis que pedem a ditadura deveriam fazer isto em Miami, para ver o que eles iam levar no itaú.

  4. Outro dia falei com um amigo sobre como a gente sabe as ‘grandes histórias’ da ditadura, mas não as menores. Como a da minha mãe, que era alheia a política e dava aula em escola do estado, onde um dia em reunião foi contra uma punição severa a alunos que haviam pichado o muro. Foi denunciada como “subversiva” e teve que prestar depoimentos ao delegado Fleury. Ela saia com as mãos tremendo. Depois disso abriu os olhos e despertou para a política. Velhinha, ainda fazia boca de urna para o PT, rs. E eu estudei na escola pública inovadora, Vocacional do Brooklin que foi invadida pela polícia do exército em 1968, os professores ficaram presos numa sala, helicóptero sobrevoava a escola e eu, com 13 anos, entrei nela por um corredor de policiais do exército com metralhadoras. Isso aconteceu no mesmo dia e hora nas outras 5 unidades (do interior). Não dá para esquecer, mas os jovens desconhecem, as escolas não ensinam direito, não transmitem o que foi

  5. Em uma sexta feira, pós golpe de 64, vieram de Juiz de Fora vários soldados chefiados por um tenente. Foram direto à casa de uma família para prender o filho porque o pai já havia sido preso por ser diretor sindical. Nós, da rua, vimos tudo. O rapaz foi pego no forro da casa e jogado dentro de um jeep. Nunca mais tivemos notícia dele e muito menos do pai. Antes de saírem fizeram questão de quebrar toda a mobília da casa na presença da esposa e filhos menores. A empregada levou apenas um tapa na cara. Até hoje ela reza para que alguma desgraça aconteça com seu agressor.
    As pessoas que pedem retorno de militares deveriam rever seus conceitos. Foi um período de atraso mental, econômico e social que o país passou. Foi tão grande o acontecido que não restaram forças para a sociedade prender os responsáveis.

  6. Isso é que é aberração! Um retrato da Ditadura para pôr na sala dos coxinhas para seus pais e avós apreciarem e perceberem que produziram bestas humanas, toupeiras.

  7. Sr.Britto.Pessoas idênticas aos relatados acima,os POLICIAIS E MILITARES descritos,existem aos milhares ou milhões pelo país afora.Noutros países também.São pessoas que tem ódio de classes e que somente atingirão a cura,se houver,com o respectivo ódio de classes que faz a roda da história girar.Se enxerga isso,por todo o lugar e mesmo que muitos defendam a vida em harmonia,esse ódio persiste e persistirá,até que se consume a sociedade sem classes.Sei que muitos sabem disso,e não expõe seus saberes,não sei o porque,mas todos o sabem.Somente a revolução soluciona isso e mesmo que todos o saibam,convém sempre enfatizar tais constatações,por mais pueris que possam ser.Não existem outras alternativas,a história esta ai,pra que todos assistam.Somente a REVOLUÇÃO!O resto,é COLHER PUPUNHAS EM PAQUETÁ,em noites sem luar!

  8. Perguntem aos militares do BRASIL a que Polícia/País/Regime de Governo obedeciam as ordens contra seus próprios de mesma nacionalidade? Sempre foram e sempre bem mandados dos de SEMPRE! Perguntem aos militares-torturadores qtas medalhas os PATRÕES lhes agraciaram por estes atos de bravuras? Perguntem a esses militares-golpistas qtos colegas de farda que, só porque foram contra o golpe foram taxados de COMUNISTAS/DESPOJADOS das DIVISAS e REFORMADOS (sem honorários)/DESTITUIRAM SUAS MEDALHAS PARA AGRADAR OS “PATRÕES”/SUAS FAMÍLIAS FORAM PERSEGUIDAS, QDO NÃO SUAS CASAS FORAM ASSALTADAS/ROUBADAS/VIGIADAS. Se o Duque de CAXIAS-Luís Alves de Lima e Silva voltasse ao BRASIL por instantes perguntaria aos comandantes militares se ainda tinham dúvidas sobre suas NACIONALIDADES, de acordo com a resposta estariam dirimidas todas as dúvidas sobre o comportamento dos mesmos com seus Compatriotas, como se não bastassem os crimes de CANUDOS.

  9. A Lei 7.716/89 prevê no seu artigo 20 que a apologia ao nazismo é crime.

    Mas, qual é a lei que criminaliza fazer apologia a golpes de Estado?

    E quanto ao fascismo ? E quanto ao niilismo ? E quanto ao integralismo ?

    Por que “skin head” pode fazer filme de You Tube, dando a entender que quer matar a Presidenta e nada acontece ?

    http://www.brasil247.com/pt/247/poder/106293/O-fascismo-mostra-sua-face.htm

    Por que, apesar de eu mesmo ter sido uma das pessoas que compareceram à PGR para denunciá-lo, o homem do filme não foi preso?

    Ele foi identificado, a polícia federal obteve o endereço, houve a tipificação de crime de ameaça e/ou incitação ao ódio e Scarpelly não foi preso.

    Pior que isso. O filme só saiu do You Tube, porque ele mesmo o retirou.

    Nem a retirada do filme se conseguiu.

    O Procurador de então, Roberto Gurgel, “não viu indícios” de crime no referido filme.

    A denúncia foi arquivada.

    Quem sai pelas ruas, pedindo golpe de Estado comete, sim, crime contra a ordem democrática.

    1. Sergio, provavelmente ele deve pertencer à maçonaria, ou aos iluminatis, ou à TFP, ou é militar. Como você deve saber, eles podem tudo. Abraços.

  10. Mas…. Temos uma mídia forte e enormemente contrária a um governo social e progressista. Os jovens de classe média para cima não saberão o que ocorreu aqui porque seus pais não vão relatar e também não saberão pela mídia. Daí o produto é semelhante àquela que disse que votou no aér.. para nos tirar da merrr. Ou seja, ignorância total sobre o país e sua história.

  11. Tenho uma leve desconfiança que essa demora que o Brasil está colocando na inevitável lavagem de roupa suja com seu passado ditatorial seja fruto de algum acordo entre cavalheiros… Os criminosos já estão velhos demais para pagarem ou já morreram. Vítimas são indenizadas, mas ZERO prisões até agora. Acordo ou covardia? A Argentina já se resolveu, e nós?

  12. Há oito anos atrás, quando conversava com um pai de um dos meus alunos. Este muito simples, honesto mas muito revoltado. Revelou sua história que até hoje quando me lembro me arrepio. Houve, em Ipatinga um massacre de militares aos trabalhadores,que invadiam casas, destruíam tudo e levavam alguns prisioneiros. Pois bem, a casa dos pais desse senhor foi invadida e durante a truculência, um dos militares estuprou sua mãe. Ele é fruto desse estupro e foi a vida toda rejeitado, maltratado e humilhado pelo suposto pai, coisa que ele não conseguia compreender, pois o pai travava os outros irmãos de forma diferente. É um lutador, mas traz consigo problemas que afetam sua vida e de seus filhos. Ele precisa de um tratamento psicológico, mas não tem condições e nem apoio de alguém para orientá-lo.

  13. Esses idiotas da estirpe de LOBÃO que estão querendo a volta da ditadura, estão sob o EFEITO DA MACONHA e outras coisas! não tem outra explicação. Os incentivadores, os reconhecidos apologistas das drogas onde estão? E não precisa ser inteligente, nem ter grande memória para lembrar-se dos fatos!!

  14. Assisti ao depoimento de alguns desses, hoje homens e mulheres, que relataram o que sofreram dentro das prisões ao lado dos pais. Acho que foi a RECORD quem fez uma sucessão de matéria sobre os fatos, com depoimentos. De tudo, o que mais me chocou foi ver que essas crianças assistiam às torturas dos pais. Ao mesmo tempo, os torturadores prometiam matar seus filhos na frente deles.
    Quem quer essa miséria de novo, como Agripino Maia (apenas um exemplo), o faz porque enquanto essas pessoas sofriam, o pai dele foi privilegiado, por exemplo como Presidente do IPASE, e toda a família só ganhava poderes no RN, como políticos biônicos. Por isso, um sujeito desse não teve a menor vergonha de tentar emparedar Dilma no Congresso, chamando-a de mentirosa quando fora interrogada pelos militares. Bolsonaro deve ser outro, como aquele Tuma, filhote de outro torturador disfarçado de gente do bem (pras negas dele).

  15. É isso que esses miseráveis da direita defendem?
    É isso que prega o Malafaia?Até quando os evangélicos vão serem
    conivente com esse ser ignóbil,foi isso que Jesus ensinou ?

  16. Isso que dá quando se desvaloriza a história. Do que adianta ter internet acessível a todos quando busca-se apenas redes sociais e notícias fúteis?

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *